segunda-feira, 28 de setembro de 2009

UMA ONÇA EM MEU CAMINHO

Zé da Casquinha saía cedinho para pescar. Gostava de percorrer as margens dos igarapés-mirins do Baquiá Grande, lugarejo há algumas horas de barco de Macapá, Capital do Amapá, onde, não raro, matava peixes graúdos que Rosinalda preparava com arte e zelo.
Ele nasceu ali, no ventre da selva. Pais e avós também. Os olhos riscados indiciavam genes europeus, mas, diferente da gente da cidade, disso nunca cuidara. Não lhe retiraria nem traria mais coragem para enfrentar os perigos da floresta.
Quando porreteava cabeça de tucunaré, soltava exclamação de espantar cardume: “Eta, bicho bom! Tu não me escapa, diacho!”
No entanto, ao perder a presa num golpe inexitoso, a fala diferia: “Diabo de peixe! Não me faça perder a paciência, que eu mergulho e te trago a tapa!” A seguir, franzia o cenho e atirava-se às remadas, sussurrando: “Qualquer hora, derrubo um pirarucu daqueles e ponho minha gente a salgá-lo. Então, descansarei por uns dias, comendo peixe com banana verde!”
Oito filhos sob sua dependência, alguns casados, não havia como fugir daquele destino. “Filho é filho, neto é neto e gato-açu é um bicho”, não cansava de dizer. Mas era feliz. Estava onde vivia na plenitude: no meio da selva. Nunca fora mesmo de muita gente à volta que não fosse da família. De vez em quando, rezingava com genro e nora. Também já não lhe davam bolas, de tão acostumados com seu mau humor.
Numa bela manhã, ei-lo feliz nos preparativos para mais um dia de pesca. Agora arrumava a fisga que lhe trouxera de Macapá o sr. Grimaldo, produtor de açaí na região do Baquiá. Sabia que era da necessidade do velho pescador tal instrumento. O pescado representava a base de sustento da numerosa prole.
Já com o pequeno barco em movimento, costeava a margem, dela não se afastando. De repente, sentiu que algo acontecia sob as águas. A superfície borbulhava. Não era cardume de piranha com a voracidade costumeira devorando alguma vítima, mas não era coisa pequena. Abriu um sorriso, pois ali se desenhava boa pescaria, ao gosto de seus sonhos. E logo naquele dia em que levara fisga nova! Logo enxergou o dorso de imenso pirarucu, preparando-se para lançar a fisga. De pé, deslizando o barco silenciosamente, já bem próximo da presa... vupt! Ao tempo em que a fisga penetrava o peixe, Zé da Casquinha ouviu forte rugido vindo da margem, bem próximo dele. Ainda de soslaio, deparou-se com imensa onça - tipo canguçu, a da cabeça grande - que, preparado o bote, lançou-se sobre o barco, garras e dentes afiados à amostra. Ato simultâneo, largou a fisga - cuja corda presa à vara amarrara à canoa -, lançando-se às águas.
O mundo parecia vir abaixo. Ao pular da canoa, agarrou-se na popa, enquanto olhava apavorado para o imenso animal equilibrando-se no meio da embarcação. A onça fitava-o cheio de ferocidade, mostrando caninos sequiosos. Durante bom percurso, este foi o cenário. Barco à deriva, muitos pensamentos convulsos se batoam na cabeça do velho pescador. “Valha-me, São Pedro!”, dizia baixinho aqui e ali.
Como seja quase certo que nenhuma desgraça vem desacompanhada de outra, eis que, da margem oposta, lançaram-se à água vários jacarés-açus, que ali - bela prainha - lagarteavam sob o sol da manhã. Pelo molde de lançarem-se n'água, Zé da Casquinha sentenciou: "Estão famintos!". Aí lembrou de seu pai, que não cansava de avisar: “Meninos, não esqueçam de afastar porcos, patos e galinhas das margens do igarapé, principalmente nas cheias. O jacaré-açu, numa bocada, acaba com a sorte de qualquer ser vivente! Com fome, então, só Deus salva!”
“Estou frito!”, pensou o transtornado Zé da Casquinha, vendo aqueles dorsos escuros e limosos se aproximarem, ao mesmo tempo em que, bem próximo da canoa, centenas, talvez milhares de piranhas iniciavam a devoração do imenso pirarucu. O sonho que o alentara pela manhã esvaía-se nos dentes afiadíssimos do cardume. Sobre a família, fez apenas uma indagação: "O que será de Deusdete, Resolina e Charlenildo, os mais precisados da família?". No mais, não dava tempo para pensar mais nada.
Com o movimento do barco para a frente, levado pela corrente, parte do pirarucu ficou na superfície, preso à fisga. Era imenso! As piranhas provocavam o maior rebuliço, fervendo à volta do peixe, que se debatia para livrar-se de seus devoradores. Inútil. Grande parte de seu corpo fora consumida àquela altura.
Estava certo de que, dali, nem sua alma escaparia. Onça, jacarés-açus e piranhas formavam trilogia diabólica, fatal. Restava rezar, embora nunca aprendera reza que prestasse. A Ave-Maria e o Padre Nosso estariam de bom tamanho, pensou, mas não sabia sequer começar. Imaginou que boas intenções também levavam as pessoas para céu. Por isso, pouco ligou para sua ignorância religiosa.
Como Deus e o Diabo nunca estão muito longe um do outro, diante da movimentação dos jacarés e o barulho originado pelo fervilhamento das agitadas piranhas, a onça não perdeu tempo: saltou para a margem com especial habilidade, safando-se de também ser eventualmente devorada pelos jacarés e servir de sobremesa às piranhas. Talvez não desconhecesse o velho ditado: “Mais vale um passarinho na mão, que dois voando”. Não queria perder, de uma só vez, a presa e a liberdade. Garantiu-se de que, cedo ou tarde, abocanharia pescador menos ágil.
O primeiro impulso de Zé Casquinha, ao ver a onça pulando do barco, foi entrar nele para safar-se dos jacarés e das piranhas, que, àquela altura, já pinicavam feridinhas de sua canela. Decerto, o pirarucu não bastaria para atender a tantos glutões.
Naquele dia, Zé da Casquinha chegou em casa cheio de agrados a genros, noras, filhos e cunhados. Sobre a pescaria, deu de ombros, dizendo-se cansado da lida. Após, alardeou que, a partir da manhã seguinte, cumpriria trinta dias de férias!

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