segunda-feira, 28 de setembro de 2009

UMA ONÇA EM MEU CAMINHO

Zé da Casquinha saía cedinho para pescar. Gostava de percorrer as margens dos igarapés-mirins do Baquiá Grande, lugarejo há algumas horas de barco de Macapá, Capital do Amapá, onde, não raro, matava peixes graúdos que Rosinalda preparava com arte e zelo.
Ele nasceu ali, no ventre da selva. Pais e avós também. Os olhos riscados indiciavam genes europeus, mas, diferente da gente da cidade, disso nunca cuidara. Não lhe retiraria nem traria mais coragem para enfrentar os perigos da floresta.
Quando porreteava cabeça de tucunaré, soltava exclamação de espantar cardume: “Eta, bicho bom! Tu não me escapa, diacho!”
No entanto, ao perder a presa num golpe inexitoso, a fala diferia: “Diabo de peixe! Não me faça perder a paciência, que eu mergulho e te trago a tapa!” A seguir, franzia o cenho e atirava-se às remadas, sussurrando: “Qualquer hora, derrubo um pirarucu daqueles e ponho minha gente a salgá-lo. Então, descansarei por uns dias, comendo peixe com banana verde!”
Oito filhos sob sua dependência, alguns casados, não havia como fugir daquele destino. “Filho é filho, neto é neto e gato-açu é um bicho”, não cansava de dizer. Mas era feliz. Estava onde vivia na plenitude: no meio da selva. Nunca fora mesmo de muita gente à volta que não fosse da família. De vez em quando, rezingava com genro e nora. Também já não lhe davam bolas, de tão acostumados com seu mau humor.
Numa bela manhã, ei-lo feliz nos preparativos para mais um dia de pesca. Agora arrumava a fisga que lhe trouxera de Macapá o sr. Grimaldo, produtor de açaí na região do Baquiá. Sabia que era da necessidade do velho pescador tal instrumento. O pescado representava a base de sustento da numerosa prole.
Já com o pequeno barco em movimento, costeava a margem, dela não se afastando. De repente, sentiu que algo acontecia sob as águas. A superfície borbulhava. Não era cardume de piranha com a voracidade costumeira devorando alguma vítima, mas não era coisa pequena. Abriu um sorriso, pois ali se desenhava boa pescaria, ao gosto de seus sonhos. E logo naquele dia em que levara fisga nova! Logo enxergou o dorso de imenso pirarucu, preparando-se para lançar a fisga. De pé, deslizando o barco silenciosamente, já bem próximo da presa... vupt! Ao tempo em que a fisga penetrava o peixe, Zé da Casquinha ouviu forte rugido vindo da margem, bem próximo dele. Ainda de soslaio, deparou-se com imensa onça - tipo canguçu, a da cabeça grande - que, preparado o bote, lançou-se sobre o barco, garras e dentes afiados à amostra. Ato simultâneo, largou a fisga - cuja corda presa à vara amarrara à canoa -, lançando-se às águas.
O mundo parecia vir abaixo. Ao pular da canoa, agarrou-se na popa, enquanto olhava apavorado para o imenso animal equilibrando-se no meio da embarcação. A onça fitava-o cheio de ferocidade, mostrando caninos sequiosos. Durante bom percurso, este foi o cenário. Barco à deriva, muitos pensamentos convulsos se batoam na cabeça do velho pescador. “Valha-me, São Pedro!”, dizia baixinho aqui e ali.
Como seja quase certo que nenhuma desgraça vem desacompanhada de outra, eis que, da margem oposta, lançaram-se à água vários jacarés-açus, que ali - bela prainha - lagarteavam sob o sol da manhã. Pelo molde de lançarem-se n'água, Zé da Casquinha sentenciou: "Estão famintos!". Aí lembrou de seu pai, que não cansava de avisar: “Meninos, não esqueçam de afastar porcos, patos e galinhas das margens do igarapé, principalmente nas cheias. O jacaré-açu, numa bocada, acaba com a sorte de qualquer ser vivente! Com fome, então, só Deus salva!”
“Estou frito!”, pensou o transtornado Zé da Casquinha, vendo aqueles dorsos escuros e limosos se aproximarem, ao mesmo tempo em que, bem próximo da canoa, centenas, talvez milhares de piranhas iniciavam a devoração do imenso pirarucu. O sonho que o alentara pela manhã esvaía-se nos dentes afiadíssimos do cardume. Sobre a família, fez apenas uma indagação: "O que será de Deusdete, Resolina e Charlenildo, os mais precisados da família?". No mais, não dava tempo para pensar mais nada.
Com o movimento do barco para a frente, levado pela corrente, parte do pirarucu ficou na superfície, preso à fisga. Era imenso! As piranhas provocavam o maior rebuliço, fervendo à volta do peixe, que se debatia para livrar-se de seus devoradores. Inútil. Grande parte de seu corpo fora consumida àquela altura.
Estava certo de que, dali, nem sua alma escaparia. Onça, jacarés-açus e piranhas formavam trilogia diabólica, fatal. Restava rezar, embora nunca aprendera reza que prestasse. A Ave-Maria e o Padre Nosso estariam de bom tamanho, pensou, mas não sabia sequer começar. Imaginou que boas intenções também levavam as pessoas para céu. Por isso, pouco ligou para sua ignorância religiosa.
Como Deus e o Diabo nunca estão muito longe um do outro, diante da movimentação dos jacarés e o barulho originado pelo fervilhamento das agitadas piranhas, a onça não perdeu tempo: saltou para a margem com especial habilidade, safando-se de também ser eventualmente devorada pelos jacarés e servir de sobremesa às piranhas. Talvez não desconhecesse o velho ditado: “Mais vale um passarinho na mão, que dois voando”. Não queria perder, de uma só vez, a presa e a liberdade. Garantiu-se de que, cedo ou tarde, abocanharia pescador menos ágil.
O primeiro impulso de Zé Casquinha, ao ver a onça pulando do barco, foi entrar nele para safar-se dos jacarés e das piranhas, que, àquela altura, já pinicavam feridinhas de sua canela. Decerto, o pirarucu não bastaria para atender a tantos glutões.
Naquele dia, Zé da Casquinha chegou em casa cheio de agrados a genros, noras, filhos e cunhados. Sobre a pescaria, deu de ombros, dizendo-se cansado da lida. Após, alardeou que, a partir da manhã seguinte, cumpriria trinta dias de férias!

domingo, 27 de setembro de 2009

MEU CANTINHO DE ROÇA

Sempre houve tempo de plantação e colheita. Nas piores fases, alguma produção se apurava nos cantos humosos da roça. Na maior parte do ano, havia abastança no paiol. Maxixe, jiló, quiabo e por aí afora. Abóbora de pescoço, nem se diga!, sem falar dos grelos das aboboreiras, essa colheita que resulta num quibebe de dar água na boca. Milho verde e feijão-de-corda enchiam cestos. Variava a verdurama e havia fartura de galinha e ovos. Mamão, mexirica, banana e algumas outras frutas nasciam assim, isto é, como se Deus semeasse.
Setembrina, parideira de primeira - mais pelo marido, porque por ela seria diferente -, descia todos os dias rumo à lavoura. Plantava de tudo. Colhia até arroz do sequeiro, num pequeno reserva-do de terra roxa. Para a lida, ia sozinha, chovesse ou fizesse sol. O trabalho virara hábito sem volta. Antes, porém, de rumar para o roçado, bronqueava com a meia-dúzia de filhos, como medida preventiva. Enxada e ancinho às costas, pequena matutagem para aguentar até o meio-dia, lá ia ela assobiando para espantar a preguiça e cobras do caminho. O marido ficava na carpintaria, confeccionando ou consertando rodas de carroça, atendendo às poucas encomendas. Tinha habilidade para a coisa e recebia elogios pelo exercício da arte. Mas o dinheiro que entrava era curto.
Setembrina não respondia às observações e perguntas do marido, a respeito desse ou daquele trabalho que ele faria naquele dia, enquanto ela estivesse fora. Ele se dava a pedir explicações justamente no momento em que a mulher saía para a lida. Acontece que Setembrina sabia que Nonô aguardava sua saída, para largar o serviço na carpintaria e partir para o mato, atrás de paca, tatu, cotia ou qualquer outra caça que deixasse trilha recente. Todos sabiam que aquele gosto por caçada era troço entranhado em seu espírito. Comia de cuíca a gambá, com maxixe ou banana verde. Até com jiló! Mas - coisa engraçada - não era explícito com Setembrina a respeito de sua paixão por caçadas. Nunca o fora. E precisava? Dizia apenas que era distração. Seu tempo passava sob mesmi-ces inconvenientes, mentiras sem importância, fatos e atos insignificantes. Nonô comia de tudo: rã, muçum, até filé de jibóia ao molho de tomate-mirim. Não era dos que se cutucavam com vara curta, no mister de sobreviver um dia após outro, sem ais e uis. No entanto, sua expansão não passava da cerca, se o embate fosse com a mulher. Coisa de pouco blá-blá-blá, já que não havia discussão séria. Discutir para quê? Havia mais o que fazer naqueles fundões de roça, pensava Setembrina.
Com jeito, de vez em quando comiam abóbora com carne-seca. Queriam mais o quê? O resto era ganância. - Pensava Nonô.
Um dia, a seca bateu forte por aquelas bandas. O tempo passava sem trazer nota de esperança. Parecia guerra, gemeção baixinha pelos quatro costados da morada, no quintal e na varanda. Dava dó ver a criançada se amiudando por falta do que comer. O mandiocal secou; depois, as bananeiras esmirraram!
Era guerra muda, quase silêncio, sem coaxar de sapo e rã, sem zunir de cigarra ou estridência de grilo, estes que, na roça, são prenúncios de chuva. Nonô e Setembrina entreolhavam-se na pequena sala de reza. Mas a água se distanciou e a terra se entregava de vez. Rios, lagoas e
barragens desapareceram da geografia impiedosa. O gado magérrimo entregava-se débil. Os animais do mato batiam em retirada. Pomba de bando, só em sonho! A criançada procurava não chorar, mas quando um começava, a choraminga era geral. Nonô distribuía o cacete. Juntava-se a fome à dor no lombo. Setembrina virava uma jararaca com ele. Acontece que o choro da molecada aporrinhava de verdade.
A coisa enfeou. Já faltava tesão ao caçador, que, com seus botões, se gabava não haver feitiço que o arriasse em negócio de mulher! Talvez essa a razão de Setembrina suportar tal inutilidade ao seu lado.
Os filhos debilitaram, jogados nos cantos da casa. Não era indolência de ociosidade, mas fraqueza por inânia. Em diante, valia tudo, de rato a lagartixa, de cacto a xiquexique. Foi aí que Setembrina fez reunião e lascou desabafo.
- Não aguento mais! Trabalho trabalho, mas continuo na mesma! O que cresceu no cercado foi essa prole sem eira nem beira! Diga-me, Nonô, qual a sua idéia? Você é ou não é o homem da casa?
Ele, mais que depressa, disse que só havia uma saída: subir no pau-de-arara, reto à capital. Chegara-lhe notícia de que lá o leite jorrava das torneiras.
- Deixa de sê besta, homenzinho malandro! Leite só jorra em torneira de trabalhador!
- É verdade, muié! Num tô mentindo não!
- Sinto pena dos meus filhos, com um pai desses! Idéia que é bom não há nessa cabeça de porongo! Está decidido: as meninas vão para a casa do Coronel Raimundo.
- Coroné Raimundo? Esse homem tem má fama. Gosta de se passar com mocinhas.
- Sê besta, Nonô! Se ele mete dedo numa filha minha, é homem morto. Ou você não me conhece?
- E os meninos?
- Eles me acompanham!
- E eu, muié?
- Você... você pode ir para os quintos do inferno! Ou pensa que vou trabalhar pra sustentar um homem que nem sabe pegar na enxada?
- Muié, não façamos dispersão de nossa gente! Sei lidá com roda de carroça, caçá, catá fruta no mato. Rápido busco palmito, mais severo seja o mato.
- Fala isso de pegar palmito na cidade que tu apanha. Mexer com roda de carroça é coisa de interior, Nonô. Não desejo velório de filho. Quero salvá-los. Um dia a gente se acha nesses cafundós.
Assim aconteceu. Severina partiu para a fazenda do Coronel Raimundo. Lá deixou as três filhas em mãos de dona Risoleta, esposa do coronel.
- Elas são prendadas, dona Risoleta. Não se arrependerá.
- Deixa estar, Setembrina. Serão tratadas como filhas.
Dia seguinte, Setembrina partiu com os meninos para a capital. Não demorou para arrumar-se num restaurante. Logo um filho empregou-se como garçom; os outros dois descambaram para a construção civil: ajudantes de pedreiro.
Mulher honesta, nem por isso deixou de sentir comichões. Amiudados os tesões, não se demorou a convocar o marido. A essa altura, alugara uma casinha na periferia da cidade e trazia planos para Nonô ganhar alguns trocados. Em pouco tempo, ele reuniu mais de meia-dúzia de jardins para tratar, quebrando um galho aqui, outro acolá, colaborando de verdade, pela primeira vez, com a economia doméstica. Setembrina labutava de sol a sol, como sempre. Nas folgas do restaurante, empenhava-se nas faxinas.
A cidade deixou Nonô mudado. Passou a beber e a chegar em casa perfumado. Setembrina avisou a primeira e a segunda vez. Na terceira, botou-o para correr de casa.
O tempo passou. Ela se manteve só. Os comichões, recebia-os com jeito e resolvia a seu modo. Chegara à conclusão de que homem era tudo igual. Conversa vai, bateu saudade imensa das filhas. Resolveu buscá-las para o seio da família. Não as via fazia três anos. Notícias, só através de cartas. Chegando à cidade, foi direto à casa do Coronel Raimundo. No portão, a primeira surpresa: Maria da Glória grávida! Não bastasse, servia feijão socadinho com angu ao primeiro filho, que já contava ano e meio. As outras... também grávidas, sendo que, como a mais velha, uma delas trazia um filho ao colo! Quem era o pai? A resposta veio logo: "Um sanfoneiro que bateu por essas bandas numa festa de São João e nunca mais voltou".
- Como nunca mais voltou, se vocês duas, além dos filhos no colo, encontram-se embuchadas? Não me façam de boba!
- Ele voltou sim, mãe, mas...
Ao pé do ouvido, Setembrina chamou-as de safadas, espinafrou-as. Após, reuniu a tropilha e partiu, excomungando o Coronel Raimundo, pois seus netos... ah, sim, seus netos era a cara de um, focinho do outro! Mas, que fazer com um coronel poderoso, latifundiário, cheio de políticos à volta lambendo seus pés, matador até por mau olhado? As Setembrinas do sertão nunca tiveram vez. Só os coronéis! Quem não sabia disso? Por mais jararaca se transformasse, como anunciava, Setembri-na não restauraria a dignidade da família violada.
Em casa, a mãe espalhou as grávidas pelo chão da sala e acomodou os netinhos no quarto dos meninos. Dia seguinte, compraria uma casinha para a família, com o dinheiro da indenização. Nessas atrapalhadas com as filhas dos outros, até que o Coronel Raimundo tinha bom senso; o desgraçado dava teto pros filhos que arranjava com as pobres moças. - Pensava vovó Brina, enquanto pitava seu cachimbinho de barro, sentada no tamborete da cozinha.
Dali em diante, talvez alguma idéia melhor pudesse orientá-la. Quem sabe esquecer aquela gente da cidade, voltar para o sertão, cuidar de seu roçado e se ajeitar nos braços de um homem que aliviasse seus desassossegos nas noites de lua cheia?


O DESPERTAR DO MENINO


Era conhecido como Toquinho, alusão ao tamanho e à idade, em contraste com a gente adulta das carvoarias. Talvez nem lembrasse do nome de batismo. Acostumara-se ao apelido.
Desde cedo, rodeava os fornos montados nos sítios e fazendas do interior do Estado do Rio de Janeiro, envolto na negritude do pó de carvão. Era como tantos outros adolescentes espalhados pelo Brasil. Sofria as agruras e reveses inerentes à atividade laboral, percorrendo as “praças” para servir aos senhores gananciosos.
Representava instrumento de carne e osso, jogado ao léu pelos infortúnios da vida. Muitos enriqueciam às custas da mão-de-obra infantil; pagavam baixos salários ou retribuíam o labor por alimento superfaturado. Quase uma relação escravagista.
No rastro da miséria, sem a justa recompensa, convocavam-no a tarefas sobrecarregadas.
Não descansava o necessário ao abrandamento da fadiga. Atividade ininterrupta, acentuava-se ao se fecharem contratos com estradas de ferro, para alimentação das marias-fumaça, ou siderúrgicas, grandes consumidoras do produto.
Começava com o assentamento dos carvoeiros na mata, munidos de foice e machado. Após limparem o terreno, derrubavam e desgalhavam as árvores. Poucos dias após, secas as folhas e galhos, ateavam fogo nas coivaras de adrede arrumadas. Finda a etapa, partia-se para o corte da lenha chamuscada, amontoando-a em pequenas toras. Quando não em lombo de burros, os meninos faziam o trabalho de formiga, transportando-as para a praça, onde se procedia à queima nos balões. Via-se, então, Toquinho arrastando pesadas peças, visando o rudimentar processo de carbonização.
Versátil, ele se qualificara para quase todas as etapas, desde a colheita e limpeza da matéria-prima, passando pelos balões, até a fase da queima e depuração final do produto.
Trata-se o balão de uma engenhoca com mais ou menos seis metros de circunferência, exigindo habilidade na sua construção, pena tornar-se inexitosa a destinação. Mas aquela gente não errava; o aprendizado acompanhava-a desde a infância.
Primeiro, aproveitam-se as toras menores no preparo do funil, com cerca de dois metros de altura, no meio do que se constituirá o "balão". Ao seu redor, empilha-se a lenha em sentido vertical. No centro fica a abertura denominada "chaminé central". Lança-se, por ali, o fogo que queimará as toras.
Amontoada a lenha, folhas e capim seco envolvem-na, enchendo-se os vazios. Após, faz-se um revestimento com terra. Estará pronto o "balão" para receber fogo.
A queima é lenta, para não perder o trabalho. Leva de dois a três dias. A vigília do balão é obrigatória; tornando-se intenso o fogo, coloca-se pela chaminé pedaços de lenha, reduzindo-se o poder de queima sobre a madeira destinada ao carvão. Denominam-se esses acréscimos de "comidas do balão".
No início, a fumaça é densa e negra. Ao tornar-se azulada, a queima está finda. Aí se afoga a caieira, isto é, tapa-se a chaminé e se aguarda a extinção das brasas. Em seguida, separa-se a terra do carvão com a peneira. O produto é ensacado no local e transportado no lombo dos burros em direção à cidade ou à estrada, onde caminhões ou carroças o recolhem.
Toquinho dominava a arte da carvoaria. Com quatorze anos, domava como ninguém a insurreição das chamas com as "comidas do balão", vencendo, assim, o excesso de fogo.
Abandonado, Toquinho ficou órfão aos seis anos. Sozinho, morou com um casal, cujo marido era carvoeiro. Com a morte da mulher, o menino, com doze anos, acompanhava-o ao trabalho. Foi assim que aprendeu a profissão.
Ele vivia no mato, ao lado de homens rudes, sem nenhuma instrução formal. Moravam em casebres de pau-a-pique, cobertura de sapé. Aos quatorze anos, viu seu protetor morrer picado por uma jararaca. Outra vez sozinho, o sonho se restringia em adquirir mais habilidade como carvoeiro, pois queria sobreviver. Não fazia outra coisa; sequer assinava o nome. Aproximava-o dos civilizados a fé em Deus. O resto, coitado!
Requisitavam-no bastante para o serviço, devido à responsabilidade demonstrada junto às obrigações, em especial no tocante aos "balões", à noite, evitando a violência do fogo. Ao demais, não ingeria bebida alcoólica. A maioria dos carvoeiros gostava de uma cachacinha. Como seria diferente, mergulhados naquela atividade desgastante e desumana?
Os homens não mudavam. Toquinho carvoejava para usinas, marias-fumaça e fábricas em troca de salário indigno. A exploração atingia seu ápice, embora a rijeza das leis, no tangen-te ao labor de menores naquele tipo de atividade lesiva à saúde. Eram vãs as sanções ameaçadoras. Fazendeiros e sitiantes não temiam o regramento jurídico, tocante às proibições e punições.
A lenha esfumadora dos sonhos de Toquinho era a que fornecia luz e calor aos sonhos dos senhores da elite.
Seus pés imitavam os negros pés da escravidão sofrida: ambos pisavam espaço limitado,sob a vigília dos grilhões. Toquinho devia ao armazém da fazenda; esse fato frustrava seus an-seios. As ameaças aterrorizavam as tentativas de fuga. Eram dívidas impagáveis, obrigando os carvoeiros a permanecerem sob o jugo das capatazias desumanas.
As denúncias sucediam-se na imprensa. Sobre o tema, os políticos falastrões da República preferiam o silêncio da omissão. Tudo terminava em fogo de palha.
O corpo de Toquinho não se limpava no intervalo da noite para o dia. O encardido re-crudescia para o sujo, manchas escuras, numa transmudação desagradável.
No suceder do fumo no forame, seguia Toquinho analfabeto, subnutrido, triste, desamparado, sem vontade própria, bicho falante arraigado na faina protagonizada pela exploração.
Entretanto, da mata ceifada sem controle, donde se abatia a riqueza das florestas em favor e a mando de meia-dúzia de depredadores, Toquinho via surgir, embora debilmente, uma estranha luz, que ele imaginava ser a da liberdade. Mas, dos que fariam algo por ele, nada se esperava; todos manejavam a mesma rede opressora sobre a fraqueza dos meninos carvoeiros. Poucos sabiam que o país comemorara quinhentos anos de seu descobrimento. Uns afirmavam que só conheceram anos de violência. O que dizer?
Naqueles fundões do Brasil esquecido, Toquinho soubera, através de um velho carvoeiro, que no tal Congresso Nacional havia muitos fazendeiros, donos de enormes extensões de terra; havia deputados e senadores que, embora não fossem proprietários, mantinham estreitas relações com os coronéis da terra, graças aos quais conquistavam seus cargos eletivos. Cientificara-se, também, de que os sucessivos governos avalentoavam-se contra pobres e miseráveis, porém, contra a aristocracia rural, agiam com tibieza repugnante. O velho falara mais coisas ao menino, que se espantava a cada esclarecimento e denúncia, embora pouco entendesse sobre Congresso Nacional, governos, latifúndios improdutivos, elites e aristocracia rural. Mas captara o bastante para saber-se perdido naquela terra de ninguém.
Certa tarde, deambulando pela mata, impressionou-se com uma cena que mudou com-pletamente sua vida; mudou seu modo de ver e sentir o mundo. Algumas jovens, filhas e parentes do dono das terras, passando férias na propriedade, banhavam-se numa cachoeira em trajes sumaríssimos, a maioria delas com o seio desnudo, algumas em pelo.
Toquinho despertou! Seu sangue ferveu! Sua vontade transcendeu aos sentidos da sub-missão que, até ali, atendera com tanta subserviência.
Em diante, só duas saídas norteavam-lhe os sentidos: ou ganharia o mundo na carroceria de um caminhão, rumo à cidade grande, de onde ouvira maravilhas, ou, numa daquelas madrugadas de solidão amarga, multiplicaria os ventiladores de uma carvoeira, com os buracos virados contra o vento, atiçando o fogo do "balão", e mergulharia de cabeça na chaminé central! No dia seguinte, o carvão de seu corpo se confundiria com o vegetal. Interpretariam sua ausência como a debandada de mais um moleque devedor e fujão. Para Toquinho, depois do que vira, pouco lhe importariam as conclusões a que chegassem sobre seu sumiço.
É como ainda acontece com os meninos carvoeiros, quando algo de extraordinário mexe com seus corpos e suas almas.

DOROTÉIA


A vida tece mudanças, mas certas influências sobrevivem no âmbito do tosco, do bruto, do primitivo. O elementar fica no passado. Das alterações, o noviciado substitui-se à ancianidade, resultado da evolução no interior do homem. A natureza reedita proezas e especializa a raça, dotando-a de novas qualidades e características. No tangente à hibridização, só se compreenderiam à luz de ação milagrosa. Anote-se, como exemplo resplendente, o caboclismo.
A história de Dorotéia é sintomática, mode entender-se a sertaneja. São fatos atuais, correspondendo aos reflexos do processo evolutivo. Mostra o crescimento da mulher, sem que deixe de ser ela mesma em sua essência feminina. Indica sua influência junto ao companheiro e filhos nos tempos modernos, sem se afastar, contudo, das condicionantes milenares, embutidas nas regras impostas pela convivência. Este é um processo vivo que não se perde nunca.
Do futuro, quem conhece?
Do passado, fervem as vísceras nas lembranças mais recônditas, revelando meandros misteriosos, desconhecidos. Para trás, amontoam-se incógnitas. Disso ninguém duvida.
Dorotéia trazia sangue índio e português a morder-lhe as entranhas. Chegara das fraldas da Serra de Ibiapaba, proximidades de Viçosa do Ceará. Exercia a agricultura. Aproximou-se de Sobral, porque os filhos cresciam. Não teriam o destino dos pais. Assentaram-se em Massapê, município do interior, sobre sítio humoso, ao norte de Sobral. Decisão dela, vendo mais longe que o abestiado do marido, cujo processo de miscigenação o degenerara em coisa à-toa.
“A mulher cearense hasteou a bandeira da liberdade, tecida sob a força da fusão genética arrumada pelos avós não tão antigos assim”, imaginava Dorotéia cheia de viço e entusiasmo,rasgando o tempo na roça, sem medo do agora, confiante no amanhã, colocando inveja nos homens quando no trato da enxada e do ancinho.
Desgrilhoada, assumia ferramentas e rompia caminhos, até chegar à várzea para lavração. Levava as coxas molhadas e íntimas, passos curtos em roçar de ânsias, como uma deusa a processar desejos.
Mulher séria, fiel, dona das ancas mais cobiçadas do sertão. É maneira de dizer, porque deixava os homens com as idéias vacilantes. Qual outra despertou cobiça tanta naqueles fundões?
Um dia, acordou de ventre aceso, esfogueada. Volteou pelo terreno formigando de prazer, bufando libido pelas ventas arfantes. O andejo lhe dava agradável sensação. Não tivera sonho ruim naquela manhã, mas sono inteiro nos braços de homem irrequieto, diferente do morcego de tapera roncando ao seu lado todas as noites, soltando puns, cheio de pesadelos. O ente onírico não era seu marido! Era graça pousada em madrugada de paz, dando asas a desejos não cumpridos.
“O que há igual a beijo, se o desejo rasga caminhos em direção a lábios de fogo? Mas, ah, desgraçado! Por que viras fumaça ao amanhecer, enquanto minha carne trema e minha alma prossiga em chamas?”
Ficava assim, entre perquirições e desconsolos, apaixonada e sonhadora, doando-se às fantasias da imaginação. Dizia aos botões ao fim dos ais e respiração ofegante:
“A paixão pode tudo, eis o perigo. Os nós mais difíceis se desamarram sem esforço.”
Mas era mulher honesta! “E o respeito, sô?” - Indagava, logo se livrando da possibilidade de pecar em ação e pensamento, este muito recorrente, só que, dessa vez, chegara com intensidade inaudita. Dorotéia não era boba. Sabia que coragem de amor desanda em imprudência.
“Minha luta, fui eu quem lutei. Por isso, sei dos meus limites e das minhas chances de errar.” - Dizia, ao embaralhar-se nas encruzilhadas, saindo fora de compromisso demeritório.
De manhãzinha, feijão-de-corda na caldeira, carne-de-sol pronta para o fogo e batata-doce cozida; após, determina a hora para o quiabo e a macaxeira frita. Retornaria pouco antes do almoço, cansada, suada, desarrumada, barro, terra e tabatinga seca e rachada nas canelas, cor de inhame cozido. Era assim todo dia. Mas sempre trazia boa intenção para o tempero da comida. Acebaldo era o pai daquele mundéu de crianças, quase todos com nome emprestado e sem rumo.
Quando a matança de jegues estava no auge, ele comandava como chefe de família. Depois, entregou-se a falar mal dos negócios, resmungar, botar defeito em tudo! Andava como coisa sem valia pelos cantos da casa. No entanto, seu sangue permanecia nas veias das crianças.
“Naqueles sertões, sonho era sonho! A verdade morava nos dias claros, onde as ex-clamações se sucediam, desanuviando espíritos e aliviando pecados”. - Pensava a bela mulher, cabecinha cheia de artes, molejos e intenções. Mas nunca passou disso.
Para falar o certo, quando nada se queria, o sonho era estorvo. O importante estava em casa, para quando a comichão batesse entre as coxas e o ventre. Não era coceira de barro seco na pele, mas coisa de dentro, do instinto, tipo cio rompendo a pele como lava fervente, descendo e subindo pelo abdome. Era de fechar os olhos e pensar no sanfoneiro da cidade, que tocava forró no salão paroquial nos fins-de-semana, sem, contudo, dar atenção às mulheres do lugar. Daquelas bandas de Dorotéia, nem se diga! O padre conversara ao pé da orelha do músico, dizendo-lhe do recato das paroquianas. Avançando sinal, o músico não mais seria contratado para as quermesses! Quanto mais indiferença, mais as mulheres grudavam o pensamento no pecado. Coisa de mulher! Mas pecado com sanfoneiro o padre sabia já no dia seguinte, no primeiro ato de confissão.
Terminada a festa, a imaginação ganhava espaço e mundo, levando o mulheril a traquinar sob sentidos de lascívia proibida. Eram pensamentos antigos, egressos das idéias das parteiras. A cada parto, monte de recomendações caprichadas enchia a cabeça das parturientes. Bem que Dorotéia reservava-se em devotado respeito; não construía culpas para não sofrer; mas trazia tratados de fantasias na memória, alegando para si que era “coisa dos antigamentes”, tipo avós deitados nas alfombras com índias dispostas, ou guerreiros atraídos por européias carentes, ou europeus atazanados de luxúria, diante da nudez singela, ingênua e livre das mulheres cor de canela.
Fosse Dorotéia mais estudada, falaria em memória genética. Após os sonhos, ela entesava na imaginação. Ao fim dos pensamentos, obrava em solidão dolorosa, rendida à sublimação, levitando e afastando de uma vez por todas as peripécias da libido maculadora. A filharada ajudava nesse processo de resfriamento lascivoso.
“Não fosse a força de vontade, andaria de olheiras para lá e para cá!”, pensava Dorotéia.
Nos sítios isolados e tranquilos, macega alta, bananeiras e coivaras para mais de metro, não era de se duvidar. Não só isso. Havia outros recursos!
Dentro daquele corpo, mil capetas brandiam lanças e tacapes. Sua resistência conhecia abismos. Para ceder, bastava um relampear. Era fechar os olhos e socar a vergonha num caritó do rancho. Mas Dorotéia era forte, aliás, era mulher e meio no desiderato de superar obstáculos.
Pois bem! Naquele dia, almoçaram rapidinho. Não havia tempo para conversas. O arado e a terra aguardavam-na. Acebaldo rabiscava-lhe o olho. Getúlio, Cosme e Dodô acompanhavam a mãe pela manhã. À tarde, estudavam. O restante da prole ficava em casa, formando barafunda, cagança e aporrinhação para quando a mãe chegasse do roçado ao anoitecer.
Acebaldo vivia de empreitadas de pouco futuro. Dentre outros bicos, catava lenha e caçava. Dentro do mato, era homem doido, trincando dentes e apostando que daria golpe certeiro em caça grande. Arrasta-la-ia mato afora até o pátio da casa, para Dorotéia ver que sua eficiência ia além do imaginável. Idéia antiga, era dos que, por dentro, mais se parecia com índio.
“Duvido que exista algum bicho desse mato, quanto mais enorme de dar medo, ou garantidor da subsistência da família”, pensava Acebaldo, embora não perdesse oportunidade de prometer o feito. Ele não jogava utopias no lixo. Precisava de bengalas para viver e acreditar na sorte.
Um quarto de hora andado. Dorotéia parou para beber água na fonte, domando a solidão e o calor do corpo. Água limpa, colhida na folha de taioba. Debruçada em direção à fonte, correu-lhe doce quentura, como sentira pela manhã. Mas ali, como por encanto, o rosto enrubesceu. Afloraram olhos mágicos, tez resplendente, fisionomia sensual. Mirava os seios túmidos e doirados refletidos no espelho d'água. Orgulhosa, disse baixinho: “São lindos!” Não era narcisismo. Ali estavam os mais belos da região!
O pecado mandou aviso. Ela se manteve indiferente, mas deu asas ao sonho. Os filhos não desmereceram suas belas maçãs. Bem abrigada sob a encosta de flora exuberante, banda noruega do caminho, bem mais assombreada que a outra, afastou vestido e sutiã. Em seguida, apertou levemente os mamilos com os dedos, acompanhando o movimento refletido n'água, locupletando-se de luxúria.
“Ah, que besteirada é essa!”, pensou, lançando mão da taioba para atirar água nas partes íntimas, refrescando-se. Daí, amansou-se da montanha de desejo. Não seria naquele momento que a dança ritual explodiria em ais. O refrígero mineral aprumou-a, interrompeu o frenesi. Partiu para a roça, onde gradearia o solo para dar-lhe sementes no dia seguinte.
Ela perdia o viço na poeirada. Só emergia de si mesma ao soltar sucessivos aboios: “Eia, menina, eia!”, levando a égua adiante no manejo da terra. Então, o rosto brilhava de formosura.
Naquele dia - eta mulher arretada!- era sensação pura, poeira, suor, sol nas ancas, na bunda torneada, nas canelas, nas coxas peludas e no rosto. Predicados que tantos convites formalizaram para que fosse morar em São Paulo. Dorotéia lindava com o gozo a cada passo e grito, a cada lembrança e sonho perturbador. Pela primeira vez, dava de comer a pecado tão cheio graça. O corpo se energizara. Necessitava dar vazão às ânsias reprimidas
À tarde, ao retornar, perturbava-a o príncipe encantado. Ele estaria na fonte; ela esqueceria as atribulações por um instante. Escorregando sobre a rampa íngreme, encontrou abrigo na frescura do chão alfombrado. O crepúsculo tirara claridade à nascente. Ela já não divisava os seios com clareza. E o príncipe, que nada revelaria do que acontecesse ali? Dorotéia se remexia, mode lacraia na cinza. Um lado dizia não; outro, dizia sim. E o sangue dos índios kariris, paiacus, tocarubas e surucus? De súbito, conscientizou-se de que nada daquilo era coisa sua. Impulsos transcendentes levaram-na ao coração descompassado e à alma confusa, diante das bisavós devorando secundinas e cordões umbilicais cozidos. Algum europeu evitara precipícios!
Chegara apertando coxa com coxa, mãos na cintura em bailado de coreografia sensual, cheiro de fêmea no cio. Roncava desejo; atiçava seu príncipe a tirar-lhe a calcinha. Foi atendida. Seus dedos, nos de Dorotéia, arriaram a peça íntima. Após, sentou-se na areia, rogando-lhe um abraço. Seus braços fecharam-se sobre o próprio corpo e se sentiu apertada pelos do príncipe. Delirava! Nem parecia a Dorotéia das obrigações. Agora era Dorotéia de Deus, da Criação, da Natura!
Fazia mês e meio que o marido se preocupava com o tal bicho enorme. Por isso, a quantidade de sonhos; não parava de sonhar! Olhos cerrados, dizia ao príncipe:
"Vamos, sou toda sua! No seu mergulho, iremos juntos ao paraíso. Não pare, vamos, galope! Suas mãos fortes, seus músculos rijos... Vamos, toma-me por inteiro!"
Solenidade pura, Dorotéia tratou com inacreditável decência o soquete de feijão preso aos pés, untado de banha. Dedilhando os mamilos, idéias atiradas no mar das simbologias do inconsciente, pedia ao príncipe que a envolvesse toda, possuindo-a com volúpia e vigor.
Ao fim, que viagem fez Dorotéia agarrada àquele príncipe de fumaça, como erva - de-passarinho dominando árvore robusta!
Relaxada, não tardou a divisar o rancho e a filharada, a tempo de ver Acebaldo moqueando um gambá. Ninhada à volta, um que outro jogava adivinhação sobre o jantar. Naquela noite, Dorotéia permaneceria com os olhos em descanso, sem que os globos variassem em torno de nortes e buscas. Ela gostava de tentar tirar leite de vaca morta; naqueles fundões, os prazeres eram raros. Por muitos anos, fez-se parideira exemplar. Todo o resto ficava por conta da imaginação, que lhe proporcionava viagens de puro algodão doce. Após arrancar a caça das mãos do marido, lançou anúncio, sem dar explicação.
- Quem engorda, o gato come. Jantaremos ensopado de gambá com banana verde!
Ouviram-se vivas e a noite se foi como as outras: neutra, nem triste, nem alegre.
Essa e outras histórias correm pelo sertão de boca em boca. São causos anunciando que as mulheres romperam barreiras, enquanto os homens caçam, pescam e dormem, como se venerassem tradições indígenas residentes em algum lugar do sangue, da memória ou da alma.
Sabe-se lá onde!


A GRASNADELA DO CORVO


João ficara. Mulher e filhos foram ao povoado, visando buscar vaga na frente de trabalho aberta pelo governo. Ardendo em febre, João não tinha condições de acompanhá-los. A enxada quase lhe tosara o dedão do pé. A ferida desandara em séria infecção.
Lá fora, o sol inclemente a tudo esturricava. Sequer uma brisa aliviava a secura do ar, embora João dela não necessitasse, pois espantava os tremores causados pela febre sob velho cobertor. Sobre a banqueta, ao lado do catre, moringa, caneca e comprimidos compunham o retrato da natureza morta de suas desgraças.
A tarde avançava. João já consumira um punhado de velhos comprimidos. Contudo, não aplacaram as dores do moribundo.
A ferida latejava. Enorme íngua instalara-se na virilha.
Um silêncio de tempo finda pairava em derredor, edificando mórbida impaciência no acamado. Preocupava-se com a demora da mulher e filhos, pois a noite não tardaria. Pensou em acender a lamparina, mas desistiu; decerto, chegariam antes do anoitecer. Enganara-se. A tarde fora rápida e o crepúsculo, fugaz.
Era dor intensa e contínua, provocando João a providenciar emplastro para a ferida e procurar ajuda. Febre e dor rompiam-lhe as resistências. Fora cabeçudo: o dia passou e se garantiu, apenas, na promessa muda de algumas aspirinas vencidas.
Noite fechada, determinou-se a acender a lamparina. Ao descer do catre, constatou a incapacidade de apoiar-se sobre a perna lastimada, cuja dor lancinante levava-o a sérias con-torções. Sentou-se. Não acreditava no que acontecia. Destemido, trabalhador e irrequieto, de repente, viu-se entrevado.
Que fazer naquela escuridão? Sem lhe dar tempo para respostas, misteriosa grasnadela partiu dos escuros próximos à casa. Não era diferente da que ressonara tantas vezes pelas caatingas no seu tempo de menino, quando se agarrava à saia da mãe, pressupondo tratar-se de espírito do mal, ameaçando sua família naqueles rincões desertos. Mas um homem naquele estado não tinha condições sequer de intimidar-se com fantasmas.
A dor monopolizava e não permitia outro tipo de medo que não se ligasse às suas próprias causas. De fato, o temor concentrava-se na possibilidade de a ferida arruinar. Das almas penadas, safar-se-ia; mas da ferida, não sabia como. Ao demais, tratava-se de um corvo, apenas um corvo. De súbito, indagou sobre o que fazia um corvo perdido naquelas paragens. Bateu-lhe confusão, decorrente mesmo da debilidade físico-mental, tornando precário o exercício da razão. Em consequência, imaginou tratar-se o grasnar de aviso funéreo. Afinal, a seca levara para longe todos os seres vivos da região, menos os homens e suas crenças nos mistérios do além.
Findas as lucubrações pertinentes à ave, arrastou-se até o fogão, onde achou fósforo e lamparina. Doía-lhe todo o corpo, tomado de extrema sensibilidade. Sentia frio, estranho frio. Com imensa dificuldade, sustentando-se na perna esquerda, atingiu o intento. Tímida luz propiciou-lhe locomoção mais desenvolta. A febre provocava-lhe náuseas e tontura, não lhe permitindo acender o fogo e preparar o emplasto. Como há pouco anoitecera, calculou que a mulher chegaria a qualquer momento e, então, cuidaria de fazê-lo.
Deitado, gemia. Não dobrava mais a perna. O mal recrudescia. Lá fora, cessara o grasnado. Nem um pio; sequer um farfalhar de folha seca. A natureza esvaziara-se diante da estiagem prolongada. Até as lagartixas debandaram.
A vida inteira de miséria multiplicara-lhe a revolta. Naquela noite, porém, a intensidade febril subtraíra-lhe até a legitimidade de revoltar-se contra as necessidades prementes.
Piorava seu estado geral. Lembrou-se de orações recitadas na infância. Elevou preces a Deus; desculpou-se pelos anos de negligência com os preceitos bíblicos. Rogava ajuda, penitenciava-se, orava e foi por aí durante algum tempo, até que a febre abrisse a porta da alucinação. Em diante, a imaginação construía-se ao custo de terríveis cenas. Curtos espaços de sono levaram-no a mergulhar em pesadelos indescritíveis.
O tempo passava. O quarto transformou-se num inferno. Rondavam-no animais estranhos, verdadeiros monstros ameaçando destroçá-lo com suas garras e dentes afiados. Noutros momentos, aves negras e gigantes, bicos pontiagudos, atiravam-se contra seu corpo para, em seguida, pulverizarem-se em mágico sumiço, dando lugar a serpentes brotadas das paredes em sua direção. Pedia pelo amor de Deus que o deixassem em paz. Não adiantava repetir-se em orações, pensava. Era castigo divino a cobrar-lhe pecados. Mas que pecados, se não os tinha? - Chegou a balbuciar.
Nos pequenos intervalos da intermitência convulsiva, pensava no sofrimento da mulher, a quem prometera vida menos amarga. Entrava ano, saía ano, era danação sem fim, seca desgraçada, enquanto diziam que, sob o solo, um mar de água doce aguardava poços artesianos prometidos pelas autoridades. Mas quem era essa gente que nunca dera as caras por aquelas bandas? - Protestou. Diante da agonia, um filme de miséria mostrava sementes esterilizadas pelo tempo seco; a água salobra chegada no lombo dos jumentos ou na cabeça da mulher; os teiús dos tempos imemoriais. Agora, tudo era fim de mundo; mal se conseguia um calango. Até os ratos debandaram. Sobraram cactos! Entregue às recordações, concluíra que sua mulher era uma heroína. Suportava tempos ruins, diante do sofrimento dos filhos, sem dar importância aos paus-de-arara acenando a boa-vida das cidades grandes. Sua esperança era maior que as promessas.
O inchaço da perna era péssimo sinal. O dedão gangrenara. Já não sentia o pé. Restava procurar socorro na casa do compadre Raimundo, a poucas centenas de metros dali. Mas como, se quase não conseguira acender a lamparina? E os tremores, o delírio, as dores, as visões alternadas de instante a instante? E como andaria o jumento àquelas horas, sem ração e água durante o dia inteiro? Mesmo combalido, com relances alucinatórios, arrastar-se-ia até o animal. A escuridão abissal recebeu-o no terreiro. Já não ficava de pé. Tateou uma vara para apoiar-se. Encontrou-a, mas em vão. Pensou na lamparina, mas como retornar? Rastejou em direção ao potreiro chamando pelo animal que não dava as caras. Constatou que se evadira. Praguejou-o, mas logo lhe deu razão. Com sede e fome, escapara. Não seria diferente.
Tudo conspirava contra João. Ruim lá dentro, pior cá fora.Tentou retornar ao casebre. Inútil. Enfraquecera. Recostou o corpo na cerca para recuperar-se.
Milhares de estrelas dançavam nos seus olhos. Naquela noite, pareciam-lhe multiplicadas, algumas muito reluzentes. De repente, a dor cedeu. Instalou-se profunda paz interior, levando-o a percorrer o firmamento, como se fora enorme ave.
Não demorou, um barulho de carroça despertou-o de sua viagem fantástica. Um risco de esperança tomou-lhe a alma. Sentia-se melhor e o socorro chegara! Uma voz gritou seu nome. Reconheceu-a. Era Raimundo. João respondeu debilmente. Havia mais alguém, pois ouvia conversa. Ao aproximar-se, Raimundo acocorou-se e lhe perguntou o que fazia deitado no terreiro. Arrastando as palavras, falou do ferimento, da febre, da dor e da impossibilidade de locomoção. Sem perda de tempo, o amigo e os dois acompanhantes, soldados da força pública, afastaram-se da carga que traziam e levaram o enfermo para o casebre, onde constataram seu estado desolador. Os soldados entreolharam-se, permanecendo mudos. Para prestar-lhe socorro, necessitariam da carroça. Foi aí que Raimundo revelou: sua mulher se envenenara, levando consigo os dois filhos. Estavam ali com os corpos. Ela deixara bilhete pedindo-lhe desculpas. Segundo Raimundo, ela não conseguira vaga na frente de trabalho.
Sua ação fatal moveu-se pelo desespero.
- Mas seja forte, João! A vida continua! Ainda há muito chão pela frente! Acreditemos no futuro! - Disse-lhe Raimundo.
Talvez João não ouvisse a recomendação de Raimundo. Seus olhos semi-abertos já não brilhavam. Apenas uma lágrima luzia no rosto duro, refletindo a tênue luz da lamparina.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A ARCA DO TESOURO

Pedrinho determinara-se a descobrir a fórmula da felicidade, algo que o fizesse tão feliz como os meninos residentes nos bairros ricos.
Era muito pobre. Não conhecera o pai. A mãe sustentava quatro filhos com lavação de roupa. Não bastasse, a avó materna residia junto à família no barraco apertado. Frequentara os três primeiros anos do curso primário. Embora gratuito o ensino, havia uniforme, sapatos, alimentação, passagem de ônibus, ao mesmo tempo em que se tratava do filho mais velho, muito requisitado na ausência da mãe. Afinal, sua avó vivia entrevada numa cama, doente, quase cega. Pedrinho tomava conta dos irmãos menores e alcançava remédios à avó. Havia, pois, muitos problemas impedindo-o de continuar os estudos. Resolveu sair de casa.
Ele sonhava muito. Não compreendia como havia meninos bem vestidos, tênis de marca, boa alimentação, belas bicicletas, cinemas e passeios, desejos atendidos, enquanto outros passavam por necessidades, inclusive fome. Os privilegiados tinham tudo o que queriam, vida de príncipes.Foi o desejo de conquistar essas maravilhas que impulsionou Pedrinho a sair de casa. Descobriria o caminho da felicidade. Já no primeiro dia, constatou que, sem dinheiro, não usufruiria as coisas boas da vida. O coitado estava sem vintém, não tinha sequer para comprar um pão. Começara a provar os amargos dercorrentes da decisão de sair de casa. Lá, ao menos, sua mãe conseguia o mínimo para não deixar a família passar fome. Sua avó, num golpe de sorte, alcançara uma pensão. Recebia um salário-mínimo mensal. Seu marido fora operário naval e trabalhara quarenta e tantos anos com carteira assinada. Mas o que fezia o garoto, agora longe de casa?
Enturmado com alguns flanelinhas, sobrevivia dos trocados recebidos dos motoristas nos estacionamentos da via pública. Por mais que tentasse, não vislumbrava como atingir os objetivos. Na lida diária, observava que não era só ele o desprotegido pela sorte. Centenas, milhares de garotos perambulavam pelas ruas, mal vestidos e com fome, dormindo sob pontes, viadutos e calçadas, vivendo da caridade alheia. Alguns não tinham sequer família, situação pior que a sua. Contudo, os sonhos borbulhavam: roupas novas, casa com televisão, geladeira, máquina de lavar roupa e tudo o mais que pudesse adquirir para dar conforto à mãe. Compraria computador, iria ao parque de diversões e ao circo. Não esqueceria da avó, que seria atendida numa pomposa clínica, supervisionada por bons médicos. Automóvel? Ah, claro que teria um! De preferência vermelho! No natal, um belo pinheirinho cheio de luzes piscando, cercado de presentes, bolas de futebol e bicicletas para os irmãos; vestidos, blusas e belas sandálias para a mãe e para a avó; presunto, frutas, bolos e outras guloseimas natalinas... Assim vivia o garoto, cheio de imaginação e vontade.
Prometera a si mesmo que só voltaria para casa quando descobrisse a fórmula de realizar os desejos. Entretanto, a cada dia se decepcionava com o mundo, pois encontrava as portas fechadas aos seus anseios. Não conseguia transpor a vida de garoto de rua, cujos ganhos como flanelinha mal davam para atender à sua necessidade alimentar. Dormia sob marquises em companhia de outros meninos, sobre jornais e papelão.
Certa noite, pouco depois de se deitar, teve uma visão fantástica. Uma grande arca pousava sob as águas do mar, proximamente à praia. Estava abarrotada de jóias, diamantes, rubis, esmeraldas e dobrões de ouro. A visão levava-o a um lugar já conhecido, uma enorme pedra a cerca de vinte metros da areia, na praia de Copacabana. No silêncio da madrugada, aquela visão, de tão viva, real e intensa, despertou-o à realidade. Lançou os olhos à escuridão das ruas, impressionado com o que terminara de lhe acontecer. Seria uma mensagem vinda dos céus? - Imaginou. Agradeceu a Deus e rezou, como fazia sempre antes de dormir. Virou-se para o lado e logo pegou no sono. Ainda bem não amanhecera, partiu para o local indicado na visão. Ao chegar defronte à enorme pedra, sentou-se na areia. Finalmente, estava próximo de atingir seus objetivos. Sentiu renovadas as esperanças de vida. Não se demorou muito sentado. Aos primeiros raios de sol, tirou a camisa e mergulhou em direção ao tesouro. Próximo a pedra, submergiu e nadou ao encontro da arca. As águas estavam claras, muito claras, como nunca vira. Em braçadas lentas, foi-se ao fundo de areias brancas. Sua mãe não mais lavaria roupas para fora. Sua avó restabeleceria a visão, removendo a catarata. Seus irmãos estudariam, ganhariam brinquedos e não passariam fome. Atenderia ao sonho materno: seria doutor! Enquanto a imaginação tomava-lhe a mente, o tempo passava. Os olhos vasculhadores percorriam cada trecho submarino; seu corpo bailava por dentre cardumes multicoloridos. Os peixes pareciam velhos amigos a acompanhá-lo na busca ao tesouro. Sob as águas, imperava silêncio absoluto. A expectativa transmitia-lhe emoção sedutora. De repente, eis a arca! Era enorme e antiga, parecida com as dos filmes de pirata. Seu coração disparara de felicidade. Aproximou-se e abriu-a. Durante alguns instantes, ficou estático, deslumbrado com a quantidade e o brilho das jóias e das pedras preciosas. Tudo como lhe aparecera na visão: diamantes, pérolas, rubis e moedas de ouro. Deus atendera suas preces. Doravante, viveria como os meninos dos bairros rico, que possuíam tudo o que desejavam. Diante da arca, lançou as mãozinhas no seu interior e trouxe um lindo colar com um pingente incrustado de belas gemas. Suspendeu-o à altura dos olhos, imaginando-o no pescoço de sua mãe. Pedrinho era só felicidade!
Naquele mesmo instante, enquanto a manhã enchia-se de bela luminosidade, uma lágrima escorria no rosto de sua mãe. Para ela, não lhe era estranha a razão de seus pressentimentos. Com o tempo, certificou-se da desgraça que se abatera sobre Pedrinho. Para sua infelicidade, os demais filhos tiveram visões parecidas. Todos foram protagonistas inconscientes de um final trágico para suas vidas.

RECORDAÇÕES

Passava da meia-noite. Manchas argênteas esparramavam-se na sala. Eram folhas, galhos, símbolos estranhos, figuras de chumbo espalhadas no chão e na parede, resultantes do luar rompendo nuvens pressagiosas.
Nunca houve atraso tão elástico. Afinal, Madalena confirmara a visita.
O martírio recrudescia a cada minuto. Lá fora, um que outro carro aligeirava-se barulhento. De repente, um táxi defronte ao edifício! Seria ela? Não, apenas um bêbado resmungando por um amor ausente. Em diante, nenhum outro veículo estacionou por dali.
Ah, espera tensa, ruindades registrando sentimentos amargos!
Havia certeza de sua chegada. Traria balas de coco para o filme das 22 horas. Porém, a frustração desajeitava-me, cutucando-me forte com o correr das horas.
Nos instantes do silêncio dilatado, imaginei que os carros não passariam mais; cães e gatos sossegariam; eu me entregaria aos zumbidos junto ao travesseiro. Logo, porém, uma buzina gritava, latidos ecoavam, transeuntes conversavam e felinos atendiam à libido.
Meus olhos grudavam no relógio, sentindo a lerdeza dos segundos na alma dos que esperavam com sofreguidão. Os relógios são perversos com os solitários.
O que fazia Madalena naquela noite de ansiedades? Escolhera, tantos anos depois, reservar-se aos meus sentimentos para organizar dúvidas em minha alma? Faria isso comigo, seu dileto companheiro? Não, não faria! Ela não era uma jovem encantada com firulas do coração, para brincar com relações maduras. Seria recaída. Ademais, ela conhecia minha repulsa a esse tipo de comportamento. Dizia-lhe que a idade não comportava certos jogos da alma.
No fundo, acreditava que Madalena não tinha a exata compreensão da falta que me fazia. Culpa minha, qum sabe, mas meu jeito era assim. Não demonstrava minhas intensidades amorosas. Coisa de machismo besta de que me arrependo muito, mas que me acompanha desde rapazote. Se me comportasse diferente, ela pensaria que eu não conseguia viver sozinho, isto é, que ela integrava meu mundo. Eu evitava esse entendimento, não sei porquê.
Fazia-me durão; minha realidade interior não emergia induvidosa do meu gesto e da minha palavra, quando Madalena penetrava meu pequeno universo, sorriso aberto e franco, trazendo luz e alegria ao meu ambiente, seduzindo-me. Como fui tolo durante esses anos!
Jamais exteriorizei minha felicidade. Fui uma besta! Certos homens aguardam o segundo tempo para arrependimentos e mudanças. Que ilusão!
Para ela, fui frio, sem emoções, indiferente à palavra e ao carinho. Quiçá, um ingrato! Na verdade, meu interior não funcionava assim. Ela era a única amiga, meu porto e verdadeiro amor. Com a idade, a memória atulhou-se de lembranças sobre fatos e acontecimentos marcantes.
Então, já não era mais moço. Meu relacionamento traduzia-se por sentimentos maduros, alguns mais resistentes que o próprio amor.
Fazia-me falta o companheirismo. Pouco vivíamos na relação de amantes. Sublimáramos o sexo em vivências múltiplas e compensações alicientes. Com a idade, é resoluta a exigência de ter-se alguém ao lado, para transcendentalizar o amargo imposto pela solidão. Chega o momento de reverenciar a vida em tom de experiência. Só isso. Nesse trânsito, são poucas as alternativas, sem esquecer do perverso egoísmo embrutecedor da alma. Mínimos detalhes transformam-se em problemas enormes. Alguns sonhos não se realizam por picuinhas alimentadas contra o parceiro. Sofrerão ambos, devido às posições malbaratadas.
Na juventude, as portas se abrem às aventuras. Mas me reservava e não mudaria, no que tange à forma de ser e ver o mundo, em especial o jeito de conviver com Madalena. Não possuía o dom de mudar do dia para a noite. Jamais extravasava. Ela não me sentia de maneira diversa, senão da forma como eu era e sempre fora. Seria estranho para Madalena, isto sim, a mudança repentina do meu caráter. No fundo, eu acreditava no seu gosto por certas peculiaridades do meu conduzir. Não o fosse, ela teria me abandonado há tempo. Ao demais, nunca imaginei reformar minha vida, com simples alteração de personalidade. A realidade mostrava minha alma sedimentada, e Madalena, mulher inteligente, conhecia esse particular.
Naquele dia, se chegasse, mesmo tarde, eu passaria um mata-borrão nas minhas lamúrias. Madalena constituía-se na jóia mais preciosa da minha vida. Mas ela não chegava.
Os ponteiros do relógio transtornavam-me; o menor tripudiava-me sem freios, ao emplacar outra hora de desilusão. Que noite vazia! Madalena nunca endurecera o jogo; na hora marcada, ei-la chupando bala de tamarindo ou de mel. Ao abrir a porta, estampava largo sorriso de alegria. Por que, ao menos, não telefonou?
A decepção trouxe a insônia. Passeei com os olhos sobre a cômoda, o guarda-roupa, o criado mudo. Os objetos levavam-me ao passado. Perquiria a razão das antigalhas, mimos que, naquela madrugada, faziam-me sofrer. Eram lembranças ardendo na alma. Bibelôs, jarrinhas, flores secas, agendas antigas, porta-retratos, cigarreiras, uma infinidade de presentes recebidos de Madalena, ao chegar de seus passeios. Sempre lembrava de mim.
Aqueles objetos transmudaram-se em mágoas naquela madrugada de ausência. Uma faquinha de madeira, presente de minha avó para cortar papel, quando eu era criança, parecia penetrar-me, lancinando a alma; levava-me à infância, às ruas antigas, aos meus pais, irmãos e sobrinhos, às festas de aniversário na casa materna. Anatematizei todos os objetos; apertavam-me o coração, ao invés de trazer felicidade. Chorei feito criança, um homem de cabelos encanecidos. E os quadros nas paredes? Desalentador!
Madalena nunca faltara sem explicação. Naquela noite, senti o quanto era penoso esperar em vão uma pessoa querida. Mas fechei os olhos.
Pela manhã, tomei café e acendi o cigarro. Reuniria o badulaques que jogaria no lixo! Depois, sairia pelas ruas como cachorro sem dono, até reencontrar outro motivo para sorrir. Minhas cargas pesavam. Havia desalento. Se Madalena troçava, eu pedia que não fosse comigo.
Por volta das oito horas, tocou a campainha. Chegara a triste notícia de que Madalena morrera! Oh, que desgraça! Como pensara mal de minha amiga, minha amada! Eu que imaginara a ausência noturna como forma de fazer-me figa! Que imbecil! Madalena nunca usaria tal recurso, comum aos adolescentes, para perturbar meus sentidos.
Agora chorei sua morte como uma criança. Aos oitenta anos, dizem, não há mais lágrimas. Ledo engano. Chorei por Madalena durante muitas noites, recordando a juventude, a paixão, a amizade e o companheirismo, saudoso das balas de coco, do licor de jenipapo e dos causos antigos que contávamos um atrás do outro. Era a solidão de verdade.
Nos seus setenta e oito anos, Madalena trazia um amor cheio de vida. Isso a empolgava. Morreria apaixonada, dizia. Justificava amor tão duradouro no fato de não morarmos juntos. Ah, Madalena, por que pensavas assim? Um dia cederias, e nem por isso deixarias de me amar!
Ainda pela manhã, reuni os objetos, como me propusera na noite anterior objetivando vingança. Só que não os joguei ao lixo. Retirei a poeira e os recoloquei em seus lugares. A caixinha de música, presenteada há mais de cinquenta anos, levei-a para conserto.
Em diante, meu mundo existe em função de lembranças. Não necessito sonhar com outra mulher. Seria demais para mim!

sábado, 12 de setembro de 2009

AMOR INTRUSO

Uma ânsia de amor profundo abraçou a alma de Dorvalino, rompendo resistências, ganhando-o por inteiro. Não havia lugar onde não se manifestasse: em casa, nas ruas, no mercado. Dorvalino era um sítio tomado em estratégia guerreira: sucumbido, entregue. Coisa de cinquentão caído por ninfeta. Seus suspiros davam na pinta, mas ninguém comentava. Ruim com ele, pior sem ele, dizia a mulher aos filhos, quando via o marido sonhando sob a jaqueira.
Conscientizara-se de uma luta interior intensa, flagelo de canções de abandono, forçando o poeta ao rigor dos abrolhos. Dorvalino poeta? Até isso! Escrevia suas linhas piegas, cheio de dúvidas sobre o futuro. Coisa de poeta encasquetado por amante esfogueada.
Mas Dorvalino era dos Souza Araripe Ferrão das Cruzes, gente resistente do sul da Bahia, praqueles lados de Teixeira de Freitas, onde homem que se lastimava à-toa, inclusive por mulher, era tachado de fresco.
Eta, gente! Como pensar assim, se alma é coisa que nem mulher nem homem dominam? Ah, aquela invasão do amor, dolorida e resistente! Fazer o quê para livrar-me e viver como antes? - Assim Dorvalino reagia, porque entender a cabeça daquela gente, impossível!
Recorrendo à bebida, frustrava-se. Os impulsos acendiam-se, emergindo desejo de busca. Mas não buscava; havia dia e hora para encontro. Compromissara-se como o Papa.
Safada, a ânsia sorrateira e sem tamanho, marcada ao ferrete dos sonhos, tomou-lhe a alma de assalto, usucapindo-a ponto a ponto. É claro que tudo acontece, quando se encontra a porteira aberta. Dorvalino era mais viciado em garota nova que raposa em galinheiro aberto.
Não era homem novo. Encontrava-se na perigosa meia-idade do leão, onde o camarada se constrange só em pensar numa relação extraconjugal. Imagine-se a situação em que se metera, envolvido até o gogó com uma ninfeta de dezesseis anos, Lolita a transgredir-lhe princípios, todos eles, até os penais! Ao fim, praticava escancarada corrupção de menores, cuja sanção faria o pecador mofar na penitenciária. Mas Dorvalino sequer sabia de tal tipificação no Estatuto Penal. Passara a vida numa fábrica de tecido lubrificando engrenagens e olhando as pernas das operárias. Aposentado, foi para casa aporrinhar a mulher e os filhos, com surpreendentes novidades domésticas.
Estudava uma forma de diminuir as chamas do amor. Noites inteiras envolvia-se naquela entrega, tal adolescente apaixonado por colega de escola. Sua dor geraria frutos úteis no dia seguinte da espera, imaginava. Encontraria uma saída honrosa.
Como sofria! Um sentimento resistente alojara-se no fundo da alma. O enredo amoroso fustigava-o. Fazer o quê? Quanto mais lutava, mais se atolava, enredado nas angústias.
A linda menina, seios de pera, olhos de jabuticaba e mãos de veludo, reinava absoluta nas suas fantasias. Alma em frangalhos? Talvez sim, talvez não. Havia uma confusão dos diabos a transtornar-lhe os sentidos. Pensava nas filhas maiores e nos dois netos que o filho vadio arrumara! Quanto à esposa, essa não entrava no jogo das culpas amontoadas. De jeito algum!
O pungente amor intruso dava-lhe poucas respostas sobre a ninfeta. Atendendo as aparências, Fátima namorava um garotão em casa, duas vezes por semana. Inclusive, Dorvalino sabia que o sortudo era cheio de gás. Ah, aqueles lábios de mel, aquela pele de pêssego! Aquelas coxas de anjo! Meu Deus do céu, tudo isso nas mãos daquele galinho novo!
O amante tomava-se de desassossego, mas Fátima lhe garantia dureza com o namorado, a quem dizia que não a despertasse, pois pretendia casar-se virgem. Beijar era o máximo permitido ao garotão, mesmo assim beijo de cinema, sem língua e sentimento. E, claro, algumas bolinações em zonas pouco erógenas. Ela se determinara a não dar muita chance à libido. As explicações de Fátima aliviavam-no.
Mais pensava na jovem, menos admitia a idéia de dividi-la. A mãe, uma tonta; o pai, um alcoólatra. Quem vigiava as mãos bobas do namorado? Passou a duvidar de Fátima. Ela era de responder "não" duas vezes, ao lhe coçar as intimidades. Que dor danada! - Suspirava Dorvalino, ao lado da esposa assistindo à novela das sete.
Tudo seria menos doloroso, não houvesse obstáculos impedindo Dorvalino de ver Fátima com mais frequência. Eram a mulher, os filhos e os netos grudados em seu pé, mais a falta crônica de dinheiro; uma porção de besteiras misturadas a coisas importantes interrompendo seu caminho rumo à amada. O tal namorado atrapalhava uma barbaridade! Aposentado, não parava um instante: era o chuveiro queimado, a tomada de energia com defeito, a caixa de gordura entupida, enfim, era sempre Dorvalino para salvar a pátria.
Sobrava-lhe a magra segunda-feira para apanhar Fátima na porta do colégio. Dali, iam ao cinema, depois comiam pizza. Esbaldava-se ao lado de seu amor.
Ela vibrava com os carinhos de Dorvalino. Era experiente, conhecia de tudo, dos beijos às bolinações. Ela se deliciava! Não contestava as mentiras do amante, tangente à alegada separação conjugal e ao fato de não ter filhos. Não ameaçaria a felicidade do homem que lhe dava prazer, colocando em perigo momentos de pura emoção. Embora nova, sabia que, na idade de Dorvalino, pressões sobre um coração apaixonado era enfarto na certa. Ao demais, sua companhia era preciosa na hidromassagem do motel. Virava criança, de tão feliz.
Nem tudo que pensa e se mexe na face da terra permanece vivo e inteiro para sempre. A esposa de Dorvalino saía aos domingos com os filhos, genros e netos. Passava o dia numa das praias de São Gonçalo, no Estado do Rio, fosse na Praia do Focinho do Porco, na Praia da Luz ou na Praia de São João. Num desses domingos, as coincidências marcaram encontro fatal.
Fátima não aceitava convite do namorado para frequentar as praias oceânicas de Niterói, tampouco as urbanas. Receava encontrar Dorvalino. Ao falar em praia, Fátima desviava o roteiro para São Gonçalo. Só faltou comunicação com o amante, pois Dorvalino não imaginaria seu amor por aquelas bandas; tratavam-se de praias pouco frequentadas, devido à lama e à sujeira. Localizavam-se no saco da Baía da Guanabara. Até feto boiava naquelas águas.
O pior aconteceu ao meio-dia, quando aquele mulherão caminhava pelas areias da Praia da Luz, trajando sumaríssimo biquíni, cheia de satisfação. Afinal, vinha das bandas da Praia de São João, lugar solitário e afrodisíaco, segundo antigos moradores do lugar.
De repente, os olhos da sereia bateram numa roda debaixo de uma árvore, onde se destacava o chefe da família: Dorvalino, sem camisa, vestindo enorme calção amarelo repintado de florzinhas! Abraçava a esposa, mulher de cinquenta e tantos, mas aparentando sessenta e mais alguns, desleixada de corpo e alma, usuária de perereca um tanto frouxa na arcada dentária superior. Era uma dona de casa comum, acompanhada do marido, netos, genros e noras. Trajava maiô de bolinhas dos anos sessenta.
Sobre a toalha estendida na grama, frangos assados com farofa. Um isopor trazia cerveja e refresco. Junto a Dorvalino, um litro de pinga chegava à metade.
Fátima enrubesceu, ao ver Dorvalino enaltecendo as qualidades da mulher, da mãe e da avó! A amante retornou, passando pelo mesmo local. Foi quando Dorvalino flagrou sua musa abraçada ao namorado, a caminho da Praia de São João. Dorvalino conhecia a fama da praia. Logo encerrou a conversa, tomando uma talagada da pinga. Ninguém entendeu seu silêncio.
Naquela noite, levaram-no ao Pronto Socorro Municipal para debelar uma falta de ar crônica. Já fazia efeito uma dúzia de pílulas, algumas sob a língua. Foi quando sentiu sair de dentro de seu corpo aquela armação amorosa que o aturdia. Fatinha se distanciava.
Pela manhã, fios pelo corpo, soro dependurado, agulha na veia, estonteado, acordou na UTI, sem saber das horas. Olhou para os lados e, calmo, disse para si mesmo, tomado de orgulho: "Sou outro homem! Agora, para ganhar minha alma, tem que pagar pedágio! Me chamo Dorvalino de Souza Araripe Ferrão das Cruzes. E Deus me livre cair noutra de amor!"

O TEXTO BÍBLICO

Nos confins do Ceará, Veneraldo, Dorcelina e seis filhos sobreviviam da agricultura. Fazia meses que não chovia. Da última precipitação, não restara sequer a lembrança.
Veneraldo passava o dia pensando no seguinte, olhos no crepúsculo pressagioso, pés sobre o solo esturricado. Não havia pior miséria, do que ver os filhos e a mulher famintos, transformados em chocalhos de ossos vivos.
Dia sim, dia não, trovejava ao entardecer nos fundões do leste, onde nuvens pesadas alegravam a alma. Era só promessa. Noticiando chuva, as cigarras estardalhaçavam seu canto. Era alarme falso. Também os insetos deliravam ao rigor da canícula perversa. Veneraldo acreditava no coaxar da saparia. Entretanto, onde sapo, onde brejo, se tudo virara um só sequeiro? Manhã seguinte, o sol estendia seu manto causticante sobre os homens, sobre as plantas, sobre a terra e as ilusões.
Certa tarde, Dorcelina não retornou da cacimba. Pai e filhos caminharam em procissão de reza pura durante horas, na crença de que a mulher se acometera de algum mal. Que nada! Do que ouviram, Dorcelina abandonara a família na garupa do jegue de Zé Fadinho, em direção a um pau-de-arara destinado à cidade grande. Frustrados, retornaram praguejando o mundo. Fazer o quê, senão excomungar a desonrada desertora?- Pensara Veneraldo, constrangido diante dos filhos, imaginando como viver sem as costelas da mulher. Os dias passaram. Só o mandacaru mantinha-se de pé nos arredores do casebre.
Numa noite de lua cheia, as crianças cantavam modinhas. Desajeitadas, cirandavam e riam. Ao fim, recolheram-se. Veneraldo comoveu-se. Não lhe passara a idéia de que tamanha miséria concedesse espaço ao canto, ao riso, à felicidade. Resolveu procurar depressa uma solução. Sentira o quão dificultoso fora às crianças realizar simples dança de roda. Não sofreriam mais. A subnutrição fazia e desfazia de seus corpos esquálidos. Não mais comeriam calangos e ratos, mesmo porque estes já rareavam no estéril cenário da seca. Tampouco saciariam a sede nas águas salobras, turvas e fedorentas das terras do Genivaldo da Otília, que anunciara intenção de botar preço nas latas de vinte litros. Fugir? Para onde? Veneraldo rompeu a noite lavrando projetos. Olhava para o céu, rezava e pedia solução. Até que deu um estalo! Sem mulher, sem chuva e sem saída, a morte seria a melhor dádiva. As crianças não se importariam de ir para o céu mais cedo. Seria a salvação, pensou, diante dos poucos pecados apurados durante a vida.
Pela manhã, convocou as crianças para dizer-lhes que a solução seria procurar refúgio no céu. Lá encontrariam o mínimo para vencer a eternidade: farinha de mandioca, rapadura e água limpa. Orozimbo, o menor, lambeu os beiços; Serena torceu-os, com ares de dúvida; Querubim manteve-se estático, olhos fixos no rosto do pai, imaginando a fantástica viagem divina; Evanildo coçou o queixo, achando excelente a saída; César idealizou viajar para a Capital, onde, segundo diziam, jogavam leite e mel nas lixeiras. Veneraldo afirmou, porém, que a morada do capeta era justo na Capital, ao que César logo anuiu. Marinalva, a mais velha, com 13 anos, detestou a opção paterna; contrariava ensinamentos bíblicos. Passavam por uma provação e, se tentassem contra a vida, o destino não seria o paraíso celestial, mas os caldeirões do inferno. O pai e os irmãos olharam-na surpresos, pois Marinalva não se dava bem com as orações. O pai a obrigava à leitura de trechos da Bíblia, por ser a única alfabetizada. Ela disse, ainda, encontrar-se no livro sagrado a maldição pesando sobre os que põem cobro à vida: Deus os mandaria de volta à Terra em forma de bichos. Veneraldo pediu que ela mostrasse onde estava a prescrição do castigo. Marinalva folheou o livro, parou numa página e leu: "Aquele que desistir voluntariamente de viver, pretendendo as delícias do paraíso, encontrará as portas do céu fechadas, retornando à Terra em forma de bicho". Foi o bastante para desistirem da idéia do suicídio. De repente, trovejou forte; Marinalva alertou ser mandado de Deus, renovando as esperanças dos descrentes. Veneraldo sentiu arrepios; àquela hora do dia, não era comum trovejar. Ao demais, o estrondo se dera no momento imediato à leitura do trecho bíblico. Marinalva fechou a Bíblia e se aquietou em reservada satisfação. Sucumbira o projeto absurdo do pai!
Daquele dia, decorreram quatro meses. Veneraldo, até ali, enterrara cinco filhos, todos mortos de inanição. Agora, Marinalva enterraria o pai que morrera de fome, tristeza e desesperança. Não suportou o suplício. Sepultado, ela se sentou na soleira da porta e chorou. Convenceu-se de que o falso texto bíblico lido ao pai e irmãos continha verdadeira e severa sentença. Mas naquele momento seu descortino não alcançava solução diversa da indicada pelo sofrido homem.
Já era noite. Um gemido ecoou pelo descampado sertanejo. Uma velha faca, usada para cortar cactos, alimento que lhes restara na lavoura da miséria, rompera o coração da jovem.
Dia seguinte, enquanto chovia torrencialmente, uma cascavel refugiava-se na desolada tapera, junto ao corpo da menina-moça.

CAÇA AO FRANGO

Domingo, André comeria galinha ao molho pardo. No sábado, foi ao abatedouro com a esposa. O atendente colocou-os à vontade na escolha da ave. Num amplo galpão, onde centenas delas se alvoroçavam, André apontou para uma penosa bem gorda, logo atingida pelo puçá preso a um cabo de vassoura. Nesse momento, de inopino, André avançou galinheiro adentro atrás de um frangote chegado a carijó. Seu gesto subitâneo colocou as aves em polvorosa. Sua mulher, o atendente e os fregueses espantaram-se. O homem enlouqueceu? - Pensaram.
- Quero aquele frango pintado!- Gritou ele, atrás do ágil galináceo.
A confusão alertou o dono do estabelecimento. Ninguém explicava o comportamento de André. Cansado, pediu ajuda à mulher.
- Já escolhi a nossa galinha, André!
- Levamos a galinha e o frango! - Respondeu ele.
- Não há necessidade, amorzinho.
- Não discuta! Pare de falar e me ajude a pegar esse desgraçado!
A coisa ficou nebulosa. André parecia enraivecido. 'Desgraçado' passou a ser elogio.
Num dado momento, ele se confundiu. Apareceu outro frango igual ao perseguido. Deu meia parada e pediu à esposa para não deixar passar nenhum tobiano.
- Meu bem, tobiano é cavalo com manchas brancas sobre pêlo avermelhado ou escuro.
- Dá no mesmo, Joana. Quero os frangos pretos pintados de branco, tipo carijó falsificado.
Em diante, todos ajudaram, aprisionando quatro frangos pretos com pintas brancas.
- Levarei os quatro, mais a galinha.
- Meu bem, o que deu em você?
- Depois falamos! Não importune. Em casa, eu explico.
- Mato os quatro? - Perguntou o dono do abatedouro.
- Não, não. Só a galinha. Reserve o sangue, pois será à cabidela. Levarei os frangos para criar. Agrada-me o colorido de suas penas.
Os fregueses entreolharam-se, reprovando o péssimo gosto de André.
Quase num murmúrio, sua mulher perguntou:
- Como criaremos frangos em apartamento?
Rispidamente, porém baixinho, respondeu:
- Cala a boca, mulher!
Da barafunda, ele saiu meio envergonhado. O dono do comércio meteu ripa:
- Cada louco com sua mania.
Em casa, André emborcou um cesto sobre os frangos e apanhou uma faca afiada.
- Para que a faca?
- Você é curiosa, faz muita pergunta. Trinta anos de casados, só agora descubro sua língua e sua mente como péssimas aliadas para acompanhar-me no dia-a-dia.
- Oh, André, o que deu em você?
- Cuide da galinha e me deixe com os frangos!
André apanhou o primeiro e firmou sua cabeça no esfregador de roupas do tanque. Num golpe, decepou-a. Ainda se mexendo, André rasgou-o com precisão cirúrgica, sacando o papo e a moela. Tirou o alimento e colocou num prato: areia, milho, ração e por aí. Até uma miçanga azulada ele encontrou. Depois de vasculhar, jogou o conteúdo do prato na lixeira.
- Joana, depene este.
- Você faz a coisa errada. Primeiro, mergulha-se o frango na água fervente, retirando-se as penas. Depois é que se extrai o papo.
- Sei o que faço! Você já está enchendo o saco!
- Vai para o molho pardo?
- É muita coisa. Limpa e põe no freezer!
André partiu para o segundo frango. Matou-o, retirou a moela e o papo. O mesmo procedimento anterior. Depois de bem esmiuçado o alimento do miúdo sobre o prato, lançou-o à lixeira. Após, entregou-o à mulher para depená-lo, partindo para o terceiro frango.
- Vai matar outro?!
André já não falava. Apenas balançava a cabeça.
Joana estranhava seu comportamento. Desde que iniciara a perseguição aos frangos no matadouro, não mais sorriu. Ar circunspecto, falava de lado. De súbito, Joana assustou-se:
- Achei! - Gritou André, esfuziante, enquanto Joana corria ao seu encontro.
- Achou o quê, André?
- Vamos, Joana, passe-me o álcool e aquela cola rápida que está na porta da geladeira!
André trancou-se no banheiro, levando bons minutos para sair. Quando o fez, era outro homem. Até sua cor melhorou. Voltou a ser o homem que Joana conhecia: alegre, comunicativo, sorridente e amoroso. Pediu-lhe desculpas por algumas grosserias.
Resgatado o pivô e o respectivo dente que soltara da arcada dentária, no momento da escolha da galinha no matadouro, não havia mais motivo para tristeza e cara fechada. O frango engolira a peça e André tinha a exata noção de quanto pagara ao dentista pelo serviço.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

A COBRA GUARDIÃ

Havia um trecho piscoso do Rio Paraíba do Sul, divisa de Minas com o Estado do Rio, onde não ousavam pescar. Os antigos alertavam sobre a existência de enorme cobra vigiando de margem a margem. Os pescadores nunca a viram, mas a respeitavam.
Era aviso de pai para filho. O local ficava abaixo da hidrelétrica da Ilha dos Pombos. Povo desconfiado, nem chegava perto da área esconjurada. Divertia-se noutras paragens. Havia rio demais para se preocuparem com trecho tão insignificante.
Caetano não era de crendices. Para ele, superstição significava carência de neurônios. Não se abalava com fantasmas, bruxas, cobras gigantes, vampiros e por aí afora. Nascera na cidade do Rio de Janeiro. Até ali, aprendera que o perigo morava dentro do homem. Assistira a coisas do arco da velha, inclusive já tropeçou em cabeças decapitadas por bandidos; conviveu com assaltos, estupros, sequestros, assassinatos brutais. Não tinha medo de balas perdidas. Assim, como ter receios de uma cobra, conhecida há anos como guardiã de um pedaço de rio? Pura gaiatice, pensou.
Aposentado, comprou um sítio defronte ao rio, próximo ao local perigoso. Ouvira a advertência, acreditando que o IBAMA fora quem plantara a idéia, visando a preservação de alguma espécie animal ou vegetal. Na região, margeia o Rio Paraíba respeitável mata.
Com o tempo, verificou tratar-se de assunto arraigado no espírito da comunidade. Sentiam arrepios só em falar no tamanho da cobra, seu furor e seus desígnios assassinos. Caetano ria-se por dentro. Educado, não contrariava os velhos moradores, que incutiam nos descendentes o estigma macabroso. Sua mulher se reservava. Não dizia que sim, nem que não. Os dois filhos não olhavam para as bandas enfeitiçadas do rio. Às vezes, preferiam não pescar. Liam, assistiam televisão, conversavam. Talvez a juventude mexesse com eles, pois leve temor balançava suas almas.
Certa feita, Caetano bandeou-se para os lados de Além Paraíba, acima da represa, onde, diziam, pescava-se muito piau. Retornou de fieira vazia.
De volta, uma luz! Havia peixe no tal lugar proibido. Ali não batiam tarrafa ou lançavam anzol, razão da piscosidade, em especial no poço entre as pedras tomadas de ingazeiros.
Esse negócio de superstição é coisa de trouxa! - Pensou, dirigindo-se para a margem direita, justo onde os mais crentes alardeavam encontrar-se o ninho da cobra, seu local de descanso após engolir intrusos. Entre os arvoredos, meio que sobre uma ilha de pedras de todos os tamanhos, sentou-se com seu equipamento de pesca. Vara para um lado, isca para outro, montou o instrumental. Não decorrera meia-hora, abarrotara o samburá. Nem lhe passavam pela cabeça as papagaiadas da vizinhança, sobre o perigo representado pela anaconda. Tanto que, sem pressa, tomou uma folha de bananeira, sobre a qual preparou um dourado para assá-lo sobre a laje de pedra. Nesse momento, soou uma sirene. Caetano não se tocou tratar-se de aviso da casa de máquinas das comportas. As aberturas G e H liberariam água em poucos instantes. Os variados avisos da hidrelétrica no correr do rio alertavam que, tocada a sirene, deveriam deixar o leito do rio e suas margens imediatamente, sob pena de ver periclitarem suas vidas, diante do roldão d'água descendo leito abaixo. Assim foi. Distraído, Caetano só despertou quando o barulho intenso explodiu perto de seus ouvidos, já não dando tempo para nada, senão subir num ingazeiro antigo, agarrar-se em seus galhos e ali ficar, até cessasse o turbilhão assolador. As águas levaram a eito todos os seus pertences. Ficou apenas com a roupa do corpo. "Ah, daqui a pouco a água baixa e saio daqui!" - Pensou.
O tempo escorreu, até que se passasse das dezoito horas. Entrava-se no crepúsculo. Passou-lhe a hipótese de escurecer e as águas não baixarem. Se lesse jornal, teria verificado que chovera muito em São Paulo, no Vale do Paraíba. Nesses casos, são frequentes as manobras na hidrelétrica, às vezes se demorando em reduzir o esgotamento do excesso d'água. Agarrara-se aos tenros galhos; estava nas grimpas àquela altura, totalmente indefeso em relação aos múltiplos perigos, dentre eles, as cobras venenosas que se envolviam na galhadura dos ingazeiros, arrastadas pelas águas das matas das margens. Foi então que sentiu sentiu uma picada na perna, picada ardida, penetrante, estranha. Pensou nas formigas. Qual nada! Fora picado por uma jararaca! Duas pequenas perfurações marcadas a sangue ficaram à vista de Caetano, ainda no lusco-fusco da passagem do dia para a noite. Mas essa agora! Preciso de socorro, senão morrerei envenenado! - Pensou. Gritava, ninguém ouvia. A corredeira ensurdecia.
A noite, agora, era pleno breu. A perna inchou. Brotaram-lhe ínguas. A água mantinha o nível alto. Os braços doíam, pouco se firmando nos galhos balouçantes. Os efeitos do veneno devastavam-no. Caetano perdia a noção das horas. Uma lanterna percorria a margem esquerda. Gritou a todo fôlego, mas foi inútil. As águas revoltas ensurdeciam. Em diante, longe dali, luzinhas do povoado rebrilhavam. Encontrava-se distante da casa de máquinas, numa das curvas do rio. A madrugada ia alta. Apavorado, ele amarrara as pontas da camisa e "se abotoara" num galho grosso, aliviando os braços. "Quando meus filhos amadurecerem, continuarão acreditando na existência da anaconda?" - Imaginava, num misto de cansaço e delírio. Lembrou-se do trato que fizera com o vizinho, para dividir as despesas da cerca. Construiriam, também, um açude para engorda de peixes. Não era coisa difícil.
Parecia que as águas batiam nas pedras e árvores com mais violência. A certa altura, Caetano levou a mão direita aos lábios; sentiu-os formigando. Tratava-se de entorpecimento fruto do veneno. A perna direita, era como se não a tivesse; a esquerda doía, dor aguda, como sendo arrancada do corpo. "O veneno da vadia provoca sensações surreais!" - Esbravejou.
A calça apertava a perna, estrangulando-a. Era o inchaço. O antídoto estava próximo, no posto de saúde. "Se saio daqui, as águas levarão meu corpo para Campos, em direção ao Oceano Atlântico, onde desemboca o Paraíba."- Lucubrou tenso.
De repente, um estrondo de águas rebuliçosas, árvores se partindo, barreiras se rompendo nas margens e pedras se batendo. O mundo vinha abaixo. Sequer deu tempo de gritar. Havia expectativa para tudo, menos para o ocorrido. Uma enorme pedra se desprendera e rolou em direção ao ingazeiro, projetando-se sobre o corpo de Caetano, juntando-o, como num sanduíche, ao tronco da árvore. Não sobrou osso inteiro, alguns espetando a própria árvore.
Ao amanhecer, ao acharem o corpo, depararam-se com os ossos moídos e a carne escurecida, efeito do veneno. A inchação deformara-o completamente.
Um antigo morador observou: " Eis o destino dos descrentes. A anaconda triturou-lhe os ossos, envenenou o corpo. Chegará o dia em que todos obedecerão à serpente guardiã."