terça-feira, 13 de outubro de 2009

MISÉRIA POUCA É BOBAGEM

Era muita miséria! A prole, amontoada no pequeno quarto, ouviu a mãe proclamar a hora de dar rumo àquela desordem. Cedinho, botou-os para fora de casa. Fossem os moços para o lixão; as moças, às faxinas!
Roberval mandava pouco. A filharada constituía-se em exército rebelde. Atendia à mãe por capricho. Sustentavam o brocardo: Mãe é mãe, o resto é conversa!
Durante muitos anos, sobreviveram ao custo do emprego de Roberval, cobrador de ônibus. Juntava o pouco que ganhava com o da mulher, lavadeira, e tocavam a vida que Deus dava. As crianças, enquanto pequenas, empurravam com a barriga. Acontece que cresceram: O mais novo com 13, a mais velha com 20, os seis filhos já estavam adultos para a vida. No entanto, amontoavam-se no pequeno quarto, como antigamente, quando duas camas abrigava-os e, com jeitinho, ainda sobrava lugar.
Que miséria estuporada! Parecia filme sobre desgraça! Mas seguiam!
Certo dia, Glorinha chegou em casa cabisbaixa, lamentando os azares e os tropeços.
- Que houve, filha?
- Estou grávida, mãe!
Alvoroço geral, até que o pai de Glorinha pediu silêncio e disse:
- Seja lá como for, tira esse filho! Juntamos um dinheirinho para o aborto. Conheço um doutor que é bom nisso!
Assim foi feito. Junta daqui, junta dali, conseguiram o valor correspondente ao preço solicitado pelo aborteiro. Para lá se dirigiram Glorinha e os pais.
Aguardando a vez, ali estava o retrato da mais triste desolação. Pai, mãe e filha tentando se afastar de outro problema, empurrados pela miséria. Uma menina engravidar não significava situação de ordem moral, mas material. Seria menos uma filha a trabalhar e mais uma boca a sustentar.
- Dona Glorinha!
A moça entrou. Menos de cinco minutos após, homens armados entraram no consultório, dando voz de prisão aos que ali se encontravam. Encurtando a história: Glorinha estava na maca; submetia-se aos preparativos para o aborto. A polícia interrompeu o processo.
Resultado: pai, mãe, filha, médico e enfermeira respondem a processo pela prática de crime de aborto, na forma tentada. Quase todos os meses enfrentam demoradas audiências no fórum. A primeira vez, foi o interrogatório. Depois, oitiva de testemunhas. Decerto, pelas provas, submeter-se-ão ao crivo do Tribunal do Júri, por tratar-se de crime contra a vida.
Ao nascer o neto, Roberval tomou um gole de café, acendeu um cigarro e lascou:
- Fiquem tranquilos. Na atual situação, desesperar é doidice. E mais: eu e a mãe de vocês já estamos mais para o lado de lá. Se o processo der cadeia, não se apavorem. Teremos comida e acomodações dignas. Soube que o pessoal dos direitos humanos fiscaliza a situação das penitenciárias no Brasil. A coisa vai melhorar! Ah, esquecia: hoje, pela manhã, Gildinha – a irmã mais nova - me procurou. Também engravidou! Alguém tem idéia melhor do que a do aborto? Se não, tá na hora de enfrentar o mundo, caso contrário não haverá feijão no almoço. Afinal, suas galinhas de uma figa - disse o velho em bom desabafo -, miséria pouca é bobagem! Vamos em frente que atrás vem gente!

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O ACIDENTADO

Era um bóia-fria chegando da lida. De súbito, viu-se lançado fora da estrada. A marmita e um dos sapatos ficaram no acostamento; tomara-lhe desagradável tontura.
Noite, bruma e silêncio, trilogia desassossegante para o pobre homem, agora inerte no valetão úmido e escuro, obra de um motorista imprudente.
Tinha medo de cobra, de animais peçonhentos em geral. Mas naquele instante as dores no corpo e o sangue tomando-lhe o abdome não lhe permitiam medo ou nojo.
Após minutos aflitivos, decidiu gritar por socorro. A hora noturna ia adiantada, mas, decerto, chamaria a atenção de quem passasse na estrada. Entretanto, quem passaria àquela hora por ali? Lembrou-se do Nico, do Inácio, do Pavani e do Gentil, amigos que permaneciam até tarde no bolicho da Suzana, bebendo e comendo salame. Será que o ouviriam, estando bêbados? Ao tentar o primeiro pedido de socorro, sentiu intensa dor no peito. Imaginou fraturas nas costelas. Notando a perna direita inerte, logo se aquietou. Aliás, não movia palha. Partira a canela. Fratura exposta.
O tempo escorria num vagar angustiante. Raros veículos cruzavam. Se chegasse ao acostamento, o socorro ficaria fácil! - Pensava o pobre diabo, tiritante de frio, dor e medo.
Lembrou-se da mulher, dos filhos, dos quefazeres. O que diria o patrão pela manhã, diante de sua ausência? Estava há pouca distância de casa; uns cento e cinquenta metros.
Uma chuva fina e impertinente incomodava-o. O adensamento da neblina tornava o ar pesado e a escuridão espessa. Os raros faróis transmitiam-lhe essa percepção.
Empapado de sangue, doía-lhe da cabeça aos pés. Não detinha os gemidos; na sua imaginação, serviam-lhe como alternativa, caso alguém os ouvisse da estrada.
Aqui e ali, praguejava o atropelador, por não ter prestado socorro.
A hemorragia debilitava-o. Sobre o mato molhado e o chão lamacento, sentia-se perdido. Não conseguiria socorro antes do amanhecer. Diante do quadro, optou pela imobilidade, para não complicar a situação que se agravava.
Perturbava-o a viscosidade do sangue. Percevejos, ratos, cobras, baratas, enfim, nada o apavoraria tanto, como a impossibilidade de ver-se socorrido.
Acentuava-se o desespero. Suplicava a Deus que o encontrassem.
As dores, àquela altura, eram lancinantes. Uma friagem sintomática tomava-o dos pés à cintura. À sua determinação de ficar imóvel, juntou-se uma paralisia compulsória, decorrente das múltiplas lesões. O processo hemorrágico tramitava implacável.
Ao cessar a chuva, a madrugada se despedia. Sobre o valetão, dissipava-se a neblina. Um cheiro nauseante de pântano inundava ao redor. Mudara a direção do vento. Era cheiro de peste. Uma nuvem de mosquitos aporrinhava-o, mas nada podia fazer. Ao sangue escorrendo de várias partes do corpo, eles preferiam o método tradicional da picada para alimentar-se. Porém, salvante a irritação causada pelos zumbidos, nada mais importunava; grande parte da superfície de seu corpo tomara-se de aflitiva insensibilidade.
Não sabia das horas, mas um galo cantou. Era seu carijó, com certeza! Sua mulher levantaria para fazer café, fritar bolinhos de farinha de trigo e ajeitar os meninos para a escola. Os agricultores caminhariam pelo acostamento, rumo às roças. Renovavam-se as esperanças!
Como por magia, pairou sobre o moribundo encantadora serenidade. Abriu os olhos, pálpebras leves, e divisou a estrela matutina. Linda, coruscante! Enfim, aproximava-se o resgate.
Os pensamentos viajavam. No cosmo, penetrava as infinitudes estelares. Estava feliz com as novidades prazeirosas. De repente, sentiu-se removido para uma ambulância. Ele pedia cuidados, pois as dores eram muitas. Mas ninguém o ouvia. Em sua viagem, recém chegara à primeira estrela.

O SERTÃO VAI VIRAR MAR. E VIROU

Balduíno, sertanejo forte! Crescera sob a vergasta das estiagens prolongadas, remoendo as adversidades da caatinga, cujo solo esturricado prometia dor e desânimo.
Ainda jovem, rendeu-se ao sonho. Casou e partiu em busca da realização familiar. Rosa fora seu primeiro e único amor. Depois - só Deus sabe como! - plantaram um rancho de pau-a-pique às margens do leito seco de um rio. Os anos trouxeram três filhos; com eles, o sentido amargo da desilusão. Dois faleceram ainda bem novos, sob a peçonha da fome.
O leite de Rosa não passava do colostro. Ao depois, era água com gotas de limão, adocicada com mel extraído da raiz do xiquexique. Um pouco mais crescidinha, a criança recebia pão de macambira, bromélia de duras e espinhentas folhas, sem qualquer valor nutritivo. Também se comia pão bró, alimento grosseiro feito de ouricuri, sem sustança qualquer. Os filhos, magérrimos e desnutridos, ganhavam da vida pouquíssima estrada.
Era seca braba! Balduíno não lembrava da última vez em que a roça lhe rendera algum feijão-de-corda, milho e macaxeira. Inclusive, pensou em partir para a cidade grande, visando salvar o filho restante. Mas, ao divisar nuvens, as esperanças se renovavam.
- O céu ainda se tomará de muitas nuvens! Choverá vários dias e agradeceremos a Deus pela dádiva! Os rios transbordarão; a terra encharcará. Teremos comida e seremos felizes!
Eis a reação de Balduíno, diante das súplicas da mulher para sair daquele inferno, onde até os bichos mais resistentes se negavam a viver.
Certa madrugada, trovejou. Eram muitos trovões. Balduíno saiu para o terreiro e rezou. Agradecia aos céus. Lembrou a Rosa sua profecia. Não demorou, relâmpagos e chuva! Era água que Deus dava! Quanto mais chovia, mais Balduíno orava, agradecendo ao Criador.
Agora, ele e a mulher dançavam no terreiro sob a chuva torrencial. Na sua imaginação, brotavam dos campos verdor exuberante. Antevia milharais e mandiocais vicejando; paióis abarrotados. Galinhas, porcos e vacas traduziriam a fartura no sertão. Pensou nos filhos que morreram sem assistir àquele milagre.
- Não lhe disse, mulher, que um dia Deus olharia por nós?
- Você tinha razão, Balduíno. Eu duvidava!
Dançavam e a chuva caía. Parecia um dilúvio, tanta era a água e os trovões. Balduíno, que construíra o barraco às margens do leito seco de um rio, agora ouvia seu marulhar.
- Ouça, Rosa! É o rio correndo no sertão!
- Sim, Balduíno! Água não nos faltará! Deus ouviu nossas preces!
Após a festa e os agradecimentos, retornaram ao casebre. Constataram com indiferença as muitas goteiras. Balduíno lançou mão de uma garrafa de aguardente, cujo conteúdo tomava em doses homeopáticas. Dessa vez, tomaria goles fartos, comemorando a chegada de um novo tempo. A luz da lamparina tremulava, tal a rebeldia da tempestade. Nonatinho, assustado com os clarões, embrulhou-se nuns trapos sobre o catre. Rosa estava feliz. Recostou-se à espera do amanhecer, que tardaria. Balduíno apagou o lume e se deitou ao lado de Rosa. O acontecimento despertou desejos. A vida desgraçada estava por um fio. Doravante, tudo seria diferente.
Lá fora, chuva grossa e incessante. O barulho ensurdecia. Por volta das quatro horas, Balduíno e Rosa despertaram assustados. Tudo tremia. O rancho desmoronava!
- Acuda-nos, Nosso Senhor! - Suplicou Rosa, diante da tragédia que se avizinhava.
Naqueles ermos, foram as últimas palavras ouvidas. O rio caudaloso subira mais e mais, levando tudo de roldão, arrastando a casa como uma folha. Com ela, o esperançado Balduíno, sua mulher e seu filho.
Durante dias seguidos, a chuva se manteve intensa. No local onde moravam, o nível do rio subira mais de dois metros, encenando temível corredeira.
Uma outra profecia substituíra-se a de Balduíno: "O sertão vai virar mar." E não deu outra. Uma vez mais a miséria pagara a conta pelos excessos da natureza.
Ninguém percebeu o sumiço da família. Miséria nunca teve endereço certo.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O TUXAUA

O mano Zequiel não descansava. Clinicava pelas bandas de Casimiro de Abreu, mantendo pacientes psiquiátricos no distrito de Barra de São João. Era corrida doida! Às segundas e quartas, atendia a praça de Cabo Frio; garantia a semana psicanalisando clientes cativos. Fala mansa, estribava-se na medicina naturalista, analisada sob ângulo muito pessoal, cujos resultados terapêuticos rendiam-lhe boa fama na Região dos Lagos.
Não era de laçar com sovel curto. Nos embaraços, tinha saída pra tudo. Troçando, fala-va tão a sério, que o interlocutor ficava de queixo caído. Zequiel mantinha a peta por dias seguidos. Dizem que há gente segurando engodos como verdades até hoje!
Numa dessas, um colega seu, também psiquiatra, assumiu funções na Secretaria de Saúde de Rio das Ostras. Conheceram-se num dos encontros regionais de psiquiatras, ocasião em que Zequiel soube da preferência naturalista do colega, dedicado ao estudo dos vegetais. Apanhou Zequiel na feição, pois este era aficionado pelo estudo das propriedades medicinais das folhas. Seu amigo, de nome Salvatore, ficou feliz, sabendo-se tão próximo de colega seguidor de suas mesmas linhas terapêuticas para tratar doenças mentais. Também ele comungava com a máxima: “Manicômio não é lugar para enfurnar maluco”.
Decorridos alguns meses, mais íntimos, Salvatore revelou um segredo a Zequiel: desejava conhecer os mistérios da floresta, as manhas que a envolviam e a potencialidade das folhas na cura das doenças. Foi além: ansiava transformar-se num tuxaua, obter os conhecimentos de um chefe indígena. Diante da surpresa de Zequiel, Salvatore registrou: tuxaua só no conhecimento!- Citadino, não diria outra coisa. Logo Zequiel o convidou a visitar seu sítio em Casimiro de Abreu, localizado no meio de uma floresta muito bem preservada.
Numa manhã de sábado, Zequiel, vindo de Cabo Frio, apanhou Salvatore e esposa em Rio das Ostras, e rumaram para o sítio.
- Sairás formado em Tuxaua, conhecendo folhas, flores, frutos silvestres, pequenos e médios animais, aves, rios, noite, dia, alguns mistérios e muito mais.
- Que ótimo, Zequiel! É tudo o que quero!
- Após o almoço, partiremos.
Dito e feito. No início da tarde,dirigiram-se à cachoeira, onde se formava belo lago. Tomariam banho; o aprendizado incluía as “lições das águas”.
No meio do caminho, Salvatore revelou que tinha medo de raio. Zequiel o acalmou, dizendo-lhe que o tempo estava bom. Chegando ao lago, os cães latiram. Havia alguém nas proximidades. Zequiel se adiantou e, na primeira quebra da trilha, deu de cara com um sujeito estranho carregando uma mochila e assustado.
- Que houve, companheiro?
- Fomos atacados por uma onça, eu e meu amigo.
- Onça?
- Sim. Uma onça, com uma cabeça enorme!
- E ele?
- Trepou numa árvore! Não sei se ainda está vivo!
Salvatore e a mulher se juntaram a Zequiel e a tudo ouviram, ele de olhos acesos.
- É verdade, moço! Há muita onça por aqui! Surpreendo-me com a coragem de vocês! Eu conheço os caminhos. Safo-me bem diante dos inúmeros perigos. - Disse Zequiel ao estranho, ciente de que onça, por aqueles lados, só fantasmas de suas ancestrais.
- Já me vou. Procurarei ajuda para meu amigo.
Salvatore, assustado, estrilou.
- Por que não me falaste das onças?
- Não te preocupes. Se há alguma onça, não nos alcançará. Pulamos na água e nos salvamos. - Referiu-se assim, para testar a coragem do amigo.
Lá se foram os três para dentro do lago. Mas eis que, olhando para o céu, depararam-se com negras nuvens.
- Estranhas aquelas nuvens, Zequiel. – Disse Salvatore, feições estranhas.
- É verdade, Salvatore. Não se esperava chuva por estes dias. Mas as nuvens dizem o contrário.
Ao longe, roncaram os primeiros trovões. O tempo escureceu. Não demoraram os raios.
- Vou-me embora. Entre os raios e as onças, prefiro as últimas! - Dito e feito: Salvatore botou o pé na trilha. Sua mulher dizia a Zequiel que Salvatore só se acalmaria ao encontrar um pneu para servir-lhe de isolante.
- É verdade, Salvatore tem razão. Nada como subir num pneu nessas horas.
De imediato, Zequiel e Vera foram atrás de Salvatore, que, àquela altura, corria mais que lebrão assustado.
Na metade do caminho, Salvatore divisou um pneu velho de trator jogado à margem. Não contou até três para nele subir e ali ficar, até que os companheiros chegassem.
- Olá, Salvatore! Mais calmo? - Perguntou Zequiel.
- Sim. Agora não corro perigo.
Vera, aproximando-se, deu um grito.
- Salta daí, Salvatore! Há uma cobra sob o pneu!
Uma enorme cobra! A cabeça, pressionada pelo corpo de Salvatore, escorregou para fora, ficando visível.
- É cobra para mais de metro e meio! - Gritou Zequiel.
De pronto, Salvatore correu em direção à cerca, disparando rumo ao campo do vizinho, evidenciando ter mais medo de cobra do que de raios e onças... juntos!
Ao chegar em casa, Zequiel, vendo Salvatore encolhido na carroça, observou:
- Amigo, estás reprovado no vestibular para índio! Raios, cobras e onças fazem parte do currículo de formação dos Tuxauas. Ao demais, aquela cobra se tratava de uma jibóia morta por aquele malandrão encontrado próximo ao lago. Pensou que fôssemos do IBAMA e aplicou aquela mentira, dizendo que levaram uma corrida de onça e que o amigo subira numa árvore. Tudo mentira! Semana que vem, recomeçaremos. Tens direito a uma segunda época!
Salvatore caiu fora. Largou a idéia de ser tuxaua. Era coisa de maluco.

OPÇÃO


Sentado na calçada, João recebia o peso do silêncio madrigal. A neblina ajeitava-se nas ruas quase vazias. Como fantasmas, ninguém dava sinal de seu destino.
Fazia frio, mas ele suportava a intempérie. Havia um coração descompassado, sofrendo dores de paixão. Não se desvencilhava do nó na garganta. Eram mulheres trazendo cargas de melancolia para suas horas de solidão! João se aborreceu com a causa de sua depressão.
Um cão atravessou a rua; um pio acenou maus presságios; a gata no cio encantava o fio do muro. A madrugada indicava caminhos aos personagens, inclusive ao mendigo.
Inúmeros fatos eclodiam diante de um João melancólico. Era um filme sem enredo, estampando situações de pouco ou nenhum significado aos seus olhos indiferentes. Para ele, a prostituta convocando ao prazer tinha lugar; mas não esquecera da mulher envolvente do dia anterior.
Onde andaria? Ah, como saber? Interessava o sentido de sua dor e ir para casa dormir. Mas a realidade não funcionava daquela forma. Há muita armadilha no cérebro. Cientificara-se de que o homem criava recursos masoquistas, para afrontar fatos e atos espinescentes.
Desempregado, credores mordiam-lhe os calcanhares; os poucos bens, todos penhora-dos! Fazer o quê? Ao redor, constatou a realidade crucial chegando com o tempo. De fato, havia indiferença de sua parte em relação ao mundo exterior; bloqueara-o um oceano de dívidas.
Devagar, passou a entender o artifício que o envolvia, enchendo sua imaginação de possibilidades amorosas. Só que afundava em tristeza. Já antes, observara a si mesmo a banalidade da causa que o fazia macambúzio. Sentia um artimanhoso processo afastando-o da realidade, levando-o para longe de suas responsabilidades.
Sentado no meio-fio, contemplava a paisagem, perdendo-se sob a fantasia de uma pai-xão consumidora, que logo se consumia como o éter, fazendo sua cabeça vazia. Transtorno puro! Havia problemas subjacentes que não combinavam com paixão, madrugada e sonhos.
De súbito, espantou-se de vez com o volume das necessidades imediatas, mortificando-se com a série de compromissos para o dia seguinte, alguns irresolúveis no momento. Enrodilhara-se na insolvência; não havia perspectivas de soerguimento econômico. A essa altura, mãos no rosto, olhos fechados, passeou sobre as desgraças envolventes, incluídas, aí, a família esfacelada, o abandono dos amigos e o crédito suspenso.
Sob tais pesos, enlouquecia, quando uma brisa soprou seu rosto. Abriu os olhos e viu a neblina se dissipar, desnudando a rua. Um cenário de luzes mostrou-lhe detalhes coruscantes. Os pensamentos transmudavam-se, como num passe de mágica. A imagem da mulher festejada postou-se diante dele; sua consciência ingressou na trama e trabalhou na escolha de caminho menos íngreme. Olhou para o telefone celular.
Passo a passo, concluiu que, naquela quadra difícil, a melhor opção estava no entregar-se à paixão, acomodando-se à válvula de escape da imaginação. Sofrer de amor, sem dúvidas, consolidava-o no processo do viver, fosse qual fosse o engodo articulado pela imaginação para submergi-lo no oceano da alma.
O céu se limpara. Restabeleceu-se a indiferença em relação aos

acontecimentos.
Restou-lhe o caderno e um poema.
O último verso impulsionou-o a andar em direção à sua casa.
Afinal, passara a hora de dormir.


REVIVÊNCIA

Roberval passeava pelo imenso e antigo jardim da fazenda, construído pelos avós. Bancos de pedra bem trabalhados, flores variadas, pequeno chafariz e gorjeio da passarada.
Com o tempo, o abandono assenhoreou-se do local. Árvores enfermiças, arbustos indefinidos, canteiros desfeitos, inço, teias de aranha, formigueiros, enfim, pouca coisa lembrava o jardim de outrora.
O mato emergia agressivo no caminho de pedras por onde os velhos trilhavam pela manhã, segundo contara-lhe a mãe. Só os bancos sobreviviam perfeitos. Roberval sentou-se num deles, perdendo-se nas horas do passado distante.
Conhecera os avós, ambos já idosos. Novos, só em fotografias. Num momento, trouxe-os à lembrança, dando-lhes vida; colocou-os num jardim restaurado pela imaginação. No banco à frente, Roberval materializou-os de mãos dadas, românticos, inflados por paixão arrebatadora, sob terna troca de olhares.
Nas férias e fins de semana, ao tempo de criança, Roberval descia e subia pelas alamedas, rompendo caminhos na mata e no pomar. Não se detinha aos detalhes do jardim, da fonte, dos desenhos formados pelos canteiros floridos, dos arbustos, dos belos bancos e tudo o mais; suas brincadeiras eram um exercício de dar asas à liberdade.
Roberval entregara a juventude aos estudos. longe da fazenda, formando-se em agrono-mia. Adulto, trabalhou em várias instituições. Aposentado, dedicou-se a escritório de projetos agropecuários.
Com a morte do pai, logo secundada pela da mãe, retornou à fazenda. Filho único, casado e com dois filhos, assentou morada na propriedade, prosperando na pecuária. Um dia, doença grave levou sua esposa. Três anos depois, sucumbia a filha, vítima de complicações de parto. Os infortúnios culminaram com o trágico acidente aviatório na Europa, arrebatando-lhe o filho, a nora e dois netos.
Ficara só. A solidão integrou-o ao velho jardim. Ali, não sentia sua mãe brincando pelas calçadas de pedra, mas notava a presença dos avós sob o olor da mata e das flores, ao canto dos pássaros.
Um sentido de revivência tomou sua alma. As brisas sacudiam as mechas encanecidas. Ideais, pensamentos e sonhos introverteram-se. Havia séculos de ascendência gritando em sua memória.
De repente, do silêncio, brotou o murmurejar da água na fonte; as flores vicejaram; a mata se encheu de sons e cores; mãos amigas puxaram Roberval para uma dança de roda.
Altas horas da noite, Roberval respirava. Mas não despertou às sacudidelas do capataz. Aliás, nunca mais despertou.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

UMA ONÇA EM MEU CAMINHO

Zé da Casquinha saía cedinho para pescar. Gostava de percorrer as margens dos igarapés-mirins do Baquiá Grande, lugarejo há algumas horas de barco de Macapá, Capital do Amapá, onde, não raro, matava peixes graúdos que Rosinalda preparava com arte e zelo.
Ele nasceu ali, no ventre da selva. Pais e avós também. Os olhos riscados indiciavam genes europeus, mas, diferente da gente da cidade, disso nunca cuidara. Não lhe retiraria nem traria mais coragem para enfrentar os perigos da floresta.
Quando porreteava cabeça de tucunaré, soltava exclamação de espantar cardume: “Eta, bicho bom! Tu não me escapa, diacho!”
No entanto, ao perder a presa num golpe inexitoso, a fala diferia: “Diabo de peixe! Não me faça perder a paciência, que eu mergulho e te trago a tapa!” A seguir, franzia o cenho e atirava-se às remadas, sussurrando: “Qualquer hora, derrubo um pirarucu daqueles e ponho minha gente a salgá-lo. Então, descansarei por uns dias, comendo peixe com banana verde!”
Oito filhos sob sua dependência, alguns casados, não havia como fugir daquele destino. “Filho é filho, neto é neto e gato-açu é um bicho”, não cansava de dizer. Mas era feliz. Estava onde vivia na plenitude: no meio da selva. Nunca fora mesmo de muita gente à volta que não fosse da família. De vez em quando, rezingava com genro e nora. Também já não lhe davam bolas, de tão acostumados com seu mau humor.
Numa bela manhã, ei-lo feliz nos preparativos para mais um dia de pesca. Agora arrumava a fisga que lhe trouxera de Macapá o sr. Grimaldo, produtor de açaí na região do Baquiá. Sabia que era da necessidade do velho pescador tal instrumento. O pescado representava a base de sustento da numerosa prole.
Já com o pequeno barco em movimento, costeava a margem, dela não se afastando. De repente, sentiu que algo acontecia sob as águas. A superfície borbulhava. Não era cardume de piranha com a voracidade costumeira devorando alguma vítima, mas não era coisa pequena. Abriu um sorriso, pois ali se desenhava boa pescaria, ao gosto de seus sonhos. E logo naquele dia em que levara fisga nova! Logo enxergou o dorso de imenso pirarucu, preparando-se para lançar a fisga. De pé, deslizando o barco silenciosamente, já bem próximo da presa... vupt! Ao tempo em que a fisga penetrava o peixe, Zé da Casquinha ouviu forte rugido vindo da margem, bem próximo dele. Ainda de soslaio, deparou-se com imensa onça - tipo canguçu, a da cabeça grande - que, preparado o bote, lançou-se sobre o barco, garras e dentes afiados à amostra. Ato simultâneo, largou a fisga - cuja corda presa à vara amarrara à canoa -, lançando-se às águas.
O mundo parecia vir abaixo. Ao pular da canoa, agarrou-se na popa, enquanto olhava apavorado para o imenso animal equilibrando-se no meio da embarcação. A onça fitava-o cheio de ferocidade, mostrando caninos sequiosos. Durante bom percurso, este foi o cenário. Barco à deriva, muitos pensamentos convulsos se batoam na cabeça do velho pescador. “Valha-me, São Pedro!”, dizia baixinho aqui e ali.
Como seja quase certo que nenhuma desgraça vem desacompanhada de outra, eis que, da margem oposta, lançaram-se à água vários jacarés-açus, que ali - bela prainha - lagarteavam sob o sol da manhã. Pelo molde de lançarem-se n'água, Zé da Casquinha sentenciou: "Estão famintos!". Aí lembrou de seu pai, que não cansava de avisar: “Meninos, não esqueçam de afastar porcos, patos e galinhas das margens do igarapé, principalmente nas cheias. O jacaré-açu, numa bocada, acaba com a sorte de qualquer ser vivente! Com fome, então, só Deus salva!”
“Estou frito!”, pensou o transtornado Zé da Casquinha, vendo aqueles dorsos escuros e limosos se aproximarem, ao mesmo tempo em que, bem próximo da canoa, centenas, talvez milhares de piranhas iniciavam a devoração do imenso pirarucu. O sonho que o alentara pela manhã esvaía-se nos dentes afiadíssimos do cardume. Sobre a família, fez apenas uma indagação: "O que será de Deusdete, Resolina e Charlenildo, os mais precisados da família?". No mais, não dava tempo para pensar mais nada.
Com o movimento do barco para a frente, levado pela corrente, parte do pirarucu ficou na superfície, preso à fisga. Era imenso! As piranhas provocavam o maior rebuliço, fervendo à volta do peixe, que se debatia para livrar-se de seus devoradores. Inútil. Grande parte de seu corpo fora consumida àquela altura.
Estava certo de que, dali, nem sua alma escaparia. Onça, jacarés-açus e piranhas formavam trilogia diabólica, fatal. Restava rezar, embora nunca aprendera reza que prestasse. A Ave-Maria e o Padre Nosso estariam de bom tamanho, pensou, mas não sabia sequer começar. Imaginou que boas intenções também levavam as pessoas para céu. Por isso, pouco ligou para sua ignorância religiosa.
Como Deus e o Diabo nunca estão muito longe um do outro, diante da movimentação dos jacarés e o barulho originado pelo fervilhamento das agitadas piranhas, a onça não perdeu tempo: saltou para a margem com especial habilidade, safando-se de também ser eventualmente devorada pelos jacarés e servir de sobremesa às piranhas. Talvez não desconhecesse o velho ditado: “Mais vale um passarinho na mão, que dois voando”. Não queria perder, de uma só vez, a presa e a liberdade. Garantiu-se de que, cedo ou tarde, abocanharia pescador menos ágil.
O primeiro impulso de Zé Casquinha, ao ver a onça pulando do barco, foi entrar nele para safar-se dos jacarés e das piranhas, que, àquela altura, já pinicavam feridinhas de sua canela. Decerto, o pirarucu não bastaria para atender a tantos glutões.
Naquele dia, Zé da Casquinha chegou em casa cheio de agrados a genros, noras, filhos e cunhados. Sobre a pescaria, deu de ombros, dizendo-se cansado da lida. Após, alardeou que, a partir da manhã seguinte, cumpriria trinta dias de férias!

domingo, 27 de setembro de 2009

MEU CANTINHO DE ROÇA

Sempre houve tempo de plantação e colheita. Nas piores fases, alguma produção se apurava nos cantos humosos da roça. Na maior parte do ano, havia abastança no paiol. Maxixe, jiló, quiabo e por aí afora. Abóbora de pescoço, nem se diga!, sem falar dos grelos das aboboreiras, essa colheita que resulta num quibebe de dar água na boca. Milho verde e feijão-de-corda enchiam cestos. Variava a verdurama e havia fartura de galinha e ovos. Mamão, mexirica, banana e algumas outras frutas nasciam assim, isto é, como se Deus semeasse.
Setembrina, parideira de primeira - mais pelo marido, porque por ela seria diferente -, descia todos os dias rumo à lavoura. Plantava de tudo. Colhia até arroz do sequeiro, num pequeno reserva-do de terra roxa. Para a lida, ia sozinha, chovesse ou fizesse sol. O trabalho virara hábito sem volta. Antes, porém, de rumar para o roçado, bronqueava com a meia-dúzia de filhos, como medida preventiva. Enxada e ancinho às costas, pequena matutagem para aguentar até o meio-dia, lá ia ela assobiando para espantar a preguiça e cobras do caminho. O marido ficava na carpintaria, confeccionando ou consertando rodas de carroça, atendendo às poucas encomendas. Tinha habilidade para a coisa e recebia elogios pelo exercício da arte. Mas o dinheiro que entrava era curto.
Setembrina não respondia às observações e perguntas do marido, a respeito desse ou daquele trabalho que ele faria naquele dia, enquanto ela estivesse fora. Ele se dava a pedir explicações justamente no momento em que a mulher saía para a lida. Acontece que Setembrina sabia que Nonô aguardava sua saída, para largar o serviço na carpintaria e partir para o mato, atrás de paca, tatu, cotia ou qualquer outra caça que deixasse trilha recente. Todos sabiam que aquele gosto por caçada era troço entranhado em seu espírito. Comia de cuíca a gambá, com maxixe ou banana verde. Até com jiló! Mas - coisa engraçada - não era explícito com Setembrina a respeito de sua paixão por caçadas. Nunca o fora. E precisava? Dizia apenas que era distração. Seu tempo passava sob mesmi-ces inconvenientes, mentiras sem importância, fatos e atos insignificantes. Nonô comia de tudo: rã, muçum, até filé de jibóia ao molho de tomate-mirim. Não era dos que se cutucavam com vara curta, no mister de sobreviver um dia após outro, sem ais e uis. No entanto, sua expansão não passava da cerca, se o embate fosse com a mulher. Coisa de pouco blá-blá-blá, já que não havia discussão séria. Discutir para quê? Havia mais o que fazer naqueles fundões de roça, pensava Setembrina.
Com jeito, de vez em quando comiam abóbora com carne-seca. Queriam mais o quê? O resto era ganância. - Pensava Nonô.
Um dia, a seca bateu forte por aquelas bandas. O tempo passava sem trazer nota de esperança. Parecia guerra, gemeção baixinha pelos quatro costados da morada, no quintal e na varanda. Dava dó ver a criançada se amiudando por falta do que comer. O mandiocal secou; depois, as bananeiras esmirraram!
Era guerra muda, quase silêncio, sem coaxar de sapo e rã, sem zunir de cigarra ou estridência de grilo, estes que, na roça, são prenúncios de chuva. Nonô e Setembrina entreolhavam-se na pequena sala de reza. Mas a água se distanciou e a terra se entregava de vez. Rios, lagoas e
barragens desapareceram da geografia impiedosa. O gado magérrimo entregava-se débil. Os animais do mato batiam em retirada. Pomba de bando, só em sonho! A criançada procurava não chorar, mas quando um começava, a choraminga era geral. Nonô distribuía o cacete. Juntava-se a fome à dor no lombo. Setembrina virava uma jararaca com ele. Acontece que o choro da molecada aporrinhava de verdade.
A coisa enfeou. Já faltava tesão ao caçador, que, com seus botões, se gabava não haver feitiço que o arriasse em negócio de mulher! Talvez essa a razão de Setembrina suportar tal inutilidade ao seu lado.
Os filhos debilitaram, jogados nos cantos da casa. Não era indolência de ociosidade, mas fraqueza por inânia. Em diante, valia tudo, de rato a lagartixa, de cacto a xiquexique. Foi aí que Setembrina fez reunião e lascou desabafo.
- Não aguento mais! Trabalho trabalho, mas continuo na mesma! O que cresceu no cercado foi essa prole sem eira nem beira! Diga-me, Nonô, qual a sua idéia? Você é ou não é o homem da casa?
Ele, mais que depressa, disse que só havia uma saída: subir no pau-de-arara, reto à capital. Chegara-lhe notícia de que lá o leite jorrava das torneiras.
- Deixa de sê besta, homenzinho malandro! Leite só jorra em torneira de trabalhador!
- É verdade, muié! Num tô mentindo não!
- Sinto pena dos meus filhos, com um pai desses! Idéia que é bom não há nessa cabeça de porongo! Está decidido: as meninas vão para a casa do Coronel Raimundo.
- Coroné Raimundo? Esse homem tem má fama. Gosta de se passar com mocinhas.
- Sê besta, Nonô! Se ele mete dedo numa filha minha, é homem morto. Ou você não me conhece?
- E os meninos?
- Eles me acompanham!
- E eu, muié?
- Você... você pode ir para os quintos do inferno! Ou pensa que vou trabalhar pra sustentar um homem que nem sabe pegar na enxada?
- Muié, não façamos dispersão de nossa gente! Sei lidá com roda de carroça, caçá, catá fruta no mato. Rápido busco palmito, mais severo seja o mato.
- Fala isso de pegar palmito na cidade que tu apanha. Mexer com roda de carroça é coisa de interior, Nonô. Não desejo velório de filho. Quero salvá-los. Um dia a gente se acha nesses cafundós.
Assim aconteceu. Severina partiu para a fazenda do Coronel Raimundo. Lá deixou as três filhas em mãos de dona Risoleta, esposa do coronel.
- Elas são prendadas, dona Risoleta. Não se arrependerá.
- Deixa estar, Setembrina. Serão tratadas como filhas.
Dia seguinte, Setembrina partiu com os meninos para a capital. Não demorou para arrumar-se num restaurante. Logo um filho empregou-se como garçom; os outros dois descambaram para a construção civil: ajudantes de pedreiro.
Mulher honesta, nem por isso deixou de sentir comichões. Amiudados os tesões, não se demorou a convocar o marido. A essa altura, alugara uma casinha na periferia da cidade e trazia planos para Nonô ganhar alguns trocados. Em pouco tempo, ele reuniu mais de meia-dúzia de jardins para tratar, quebrando um galho aqui, outro acolá, colaborando de verdade, pela primeira vez, com a economia doméstica. Setembrina labutava de sol a sol, como sempre. Nas folgas do restaurante, empenhava-se nas faxinas.
A cidade deixou Nonô mudado. Passou a beber e a chegar em casa perfumado. Setembrina avisou a primeira e a segunda vez. Na terceira, botou-o para correr de casa.
O tempo passou. Ela se manteve só. Os comichões, recebia-os com jeito e resolvia a seu modo. Chegara à conclusão de que homem era tudo igual. Conversa vai, bateu saudade imensa das filhas. Resolveu buscá-las para o seio da família. Não as via fazia três anos. Notícias, só através de cartas. Chegando à cidade, foi direto à casa do Coronel Raimundo. No portão, a primeira surpresa: Maria da Glória grávida! Não bastasse, servia feijão socadinho com angu ao primeiro filho, que já contava ano e meio. As outras... também grávidas, sendo que, como a mais velha, uma delas trazia um filho ao colo! Quem era o pai? A resposta veio logo: "Um sanfoneiro que bateu por essas bandas numa festa de São João e nunca mais voltou".
- Como nunca mais voltou, se vocês duas, além dos filhos no colo, encontram-se embuchadas? Não me façam de boba!
- Ele voltou sim, mãe, mas...
Ao pé do ouvido, Setembrina chamou-as de safadas, espinafrou-as. Após, reuniu a tropilha e partiu, excomungando o Coronel Raimundo, pois seus netos... ah, sim, seus netos era a cara de um, focinho do outro! Mas, que fazer com um coronel poderoso, latifundiário, cheio de políticos à volta lambendo seus pés, matador até por mau olhado? As Setembrinas do sertão nunca tiveram vez. Só os coronéis! Quem não sabia disso? Por mais jararaca se transformasse, como anunciava, Setembri-na não restauraria a dignidade da família violada.
Em casa, a mãe espalhou as grávidas pelo chão da sala e acomodou os netinhos no quarto dos meninos. Dia seguinte, compraria uma casinha para a família, com o dinheiro da indenização. Nessas atrapalhadas com as filhas dos outros, até que o Coronel Raimundo tinha bom senso; o desgraçado dava teto pros filhos que arranjava com as pobres moças. - Pensava vovó Brina, enquanto pitava seu cachimbinho de barro, sentada no tamborete da cozinha.
Dali em diante, talvez alguma idéia melhor pudesse orientá-la. Quem sabe esquecer aquela gente da cidade, voltar para o sertão, cuidar de seu roçado e se ajeitar nos braços de um homem que aliviasse seus desassossegos nas noites de lua cheia?


O DESPERTAR DO MENINO


Era conhecido como Toquinho, alusão ao tamanho e à idade, em contraste com a gente adulta das carvoarias. Talvez nem lembrasse do nome de batismo. Acostumara-se ao apelido.
Desde cedo, rodeava os fornos montados nos sítios e fazendas do interior do Estado do Rio de Janeiro, envolto na negritude do pó de carvão. Era como tantos outros adolescentes espalhados pelo Brasil. Sofria as agruras e reveses inerentes à atividade laboral, percorrendo as “praças” para servir aos senhores gananciosos.
Representava instrumento de carne e osso, jogado ao léu pelos infortúnios da vida. Muitos enriqueciam às custas da mão-de-obra infantil; pagavam baixos salários ou retribuíam o labor por alimento superfaturado. Quase uma relação escravagista.
No rastro da miséria, sem a justa recompensa, convocavam-no a tarefas sobrecarregadas.
Não descansava o necessário ao abrandamento da fadiga. Atividade ininterrupta, acentuava-se ao se fecharem contratos com estradas de ferro, para alimentação das marias-fumaça, ou siderúrgicas, grandes consumidoras do produto.
Começava com o assentamento dos carvoeiros na mata, munidos de foice e machado. Após limparem o terreno, derrubavam e desgalhavam as árvores. Poucos dias após, secas as folhas e galhos, ateavam fogo nas coivaras de adrede arrumadas. Finda a etapa, partia-se para o corte da lenha chamuscada, amontoando-a em pequenas toras. Quando não em lombo de burros, os meninos faziam o trabalho de formiga, transportando-as para a praça, onde se procedia à queima nos balões. Via-se, então, Toquinho arrastando pesadas peças, visando o rudimentar processo de carbonização.
Versátil, ele se qualificara para quase todas as etapas, desde a colheita e limpeza da matéria-prima, passando pelos balões, até a fase da queima e depuração final do produto.
Trata-se o balão de uma engenhoca com mais ou menos seis metros de circunferência, exigindo habilidade na sua construção, pena tornar-se inexitosa a destinação. Mas aquela gente não errava; o aprendizado acompanhava-a desde a infância.
Primeiro, aproveitam-se as toras menores no preparo do funil, com cerca de dois metros de altura, no meio do que se constituirá o "balão". Ao seu redor, empilha-se a lenha em sentido vertical. No centro fica a abertura denominada "chaminé central". Lança-se, por ali, o fogo que queimará as toras.
Amontoada a lenha, folhas e capim seco envolvem-na, enchendo-se os vazios. Após, faz-se um revestimento com terra. Estará pronto o "balão" para receber fogo.
A queima é lenta, para não perder o trabalho. Leva de dois a três dias. A vigília do balão é obrigatória; tornando-se intenso o fogo, coloca-se pela chaminé pedaços de lenha, reduzindo-se o poder de queima sobre a madeira destinada ao carvão. Denominam-se esses acréscimos de "comidas do balão".
No início, a fumaça é densa e negra. Ao tornar-se azulada, a queima está finda. Aí se afoga a caieira, isto é, tapa-se a chaminé e se aguarda a extinção das brasas. Em seguida, separa-se a terra do carvão com a peneira. O produto é ensacado no local e transportado no lombo dos burros em direção à cidade ou à estrada, onde caminhões ou carroças o recolhem.
Toquinho dominava a arte da carvoaria. Com quatorze anos, domava como ninguém a insurreição das chamas com as "comidas do balão", vencendo, assim, o excesso de fogo.
Abandonado, Toquinho ficou órfão aos seis anos. Sozinho, morou com um casal, cujo marido era carvoeiro. Com a morte da mulher, o menino, com doze anos, acompanhava-o ao trabalho. Foi assim que aprendeu a profissão.
Ele vivia no mato, ao lado de homens rudes, sem nenhuma instrução formal. Moravam em casebres de pau-a-pique, cobertura de sapé. Aos quatorze anos, viu seu protetor morrer picado por uma jararaca. Outra vez sozinho, o sonho se restringia em adquirir mais habilidade como carvoeiro, pois queria sobreviver. Não fazia outra coisa; sequer assinava o nome. Aproximava-o dos civilizados a fé em Deus. O resto, coitado!
Requisitavam-no bastante para o serviço, devido à responsabilidade demonstrada junto às obrigações, em especial no tocante aos "balões", à noite, evitando a violência do fogo. Ao demais, não ingeria bebida alcoólica. A maioria dos carvoeiros gostava de uma cachacinha. Como seria diferente, mergulhados naquela atividade desgastante e desumana?
Os homens não mudavam. Toquinho carvoejava para usinas, marias-fumaça e fábricas em troca de salário indigno. A exploração atingia seu ápice, embora a rijeza das leis, no tangen-te ao labor de menores naquele tipo de atividade lesiva à saúde. Eram vãs as sanções ameaçadoras. Fazendeiros e sitiantes não temiam o regramento jurídico, tocante às proibições e punições.
A lenha esfumadora dos sonhos de Toquinho era a que fornecia luz e calor aos sonhos dos senhores da elite.
Seus pés imitavam os negros pés da escravidão sofrida: ambos pisavam espaço limitado,sob a vigília dos grilhões. Toquinho devia ao armazém da fazenda; esse fato frustrava seus an-seios. As ameaças aterrorizavam as tentativas de fuga. Eram dívidas impagáveis, obrigando os carvoeiros a permanecerem sob o jugo das capatazias desumanas.
As denúncias sucediam-se na imprensa. Sobre o tema, os políticos falastrões da República preferiam o silêncio da omissão. Tudo terminava em fogo de palha.
O corpo de Toquinho não se limpava no intervalo da noite para o dia. O encardido re-crudescia para o sujo, manchas escuras, numa transmudação desagradável.
No suceder do fumo no forame, seguia Toquinho analfabeto, subnutrido, triste, desamparado, sem vontade própria, bicho falante arraigado na faina protagonizada pela exploração.
Entretanto, da mata ceifada sem controle, donde se abatia a riqueza das florestas em favor e a mando de meia-dúzia de depredadores, Toquinho via surgir, embora debilmente, uma estranha luz, que ele imaginava ser a da liberdade. Mas, dos que fariam algo por ele, nada se esperava; todos manejavam a mesma rede opressora sobre a fraqueza dos meninos carvoeiros. Poucos sabiam que o país comemorara quinhentos anos de seu descobrimento. Uns afirmavam que só conheceram anos de violência. O que dizer?
Naqueles fundões do Brasil esquecido, Toquinho soubera, através de um velho carvoeiro, que no tal Congresso Nacional havia muitos fazendeiros, donos de enormes extensões de terra; havia deputados e senadores que, embora não fossem proprietários, mantinham estreitas relações com os coronéis da terra, graças aos quais conquistavam seus cargos eletivos. Cientificara-se, também, de que os sucessivos governos avalentoavam-se contra pobres e miseráveis, porém, contra a aristocracia rural, agiam com tibieza repugnante. O velho falara mais coisas ao menino, que se espantava a cada esclarecimento e denúncia, embora pouco entendesse sobre Congresso Nacional, governos, latifúndios improdutivos, elites e aristocracia rural. Mas captara o bastante para saber-se perdido naquela terra de ninguém.
Certa tarde, deambulando pela mata, impressionou-se com uma cena que mudou com-pletamente sua vida; mudou seu modo de ver e sentir o mundo. Algumas jovens, filhas e parentes do dono das terras, passando férias na propriedade, banhavam-se numa cachoeira em trajes sumaríssimos, a maioria delas com o seio desnudo, algumas em pelo.
Toquinho despertou! Seu sangue ferveu! Sua vontade transcendeu aos sentidos da sub-missão que, até ali, atendera com tanta subserviência.
Em diante, só duas saídas norteavam-lhe os sentidos: ou ganharia o mundo na carroceria de um caminhão, rumo à cidade grande, de onde ouvira maravilhas, ou, numa daquelas madrugadas de solidão amarga, multiplicaria os ventiladores de uma carvoeira, com os buracos virados contra o vento, atiçando o fogo do "balão", e mergulharia de cabeça na chaminé central! No dia seguinte, o carvão de seu corpo se confundiria com o vegetal. Interpretariam sua ausência como a debandada de mais um moleque devedor e fujão. Para Toquinho, depois do que vira, pouco lhe importariam as conclusões a que chegassem sobre seu sumiço.
É como ainda acontece com os meninos carvoeiros, quando algo de extraordinário mexe com seus corpos e suas almas.

DOROTÉIA


A vida tece mudanças, mas certas influências sobrevivem no âmbito do tosco, do bruto, do primitivo. O elementar fica no passado. Das alterações, o noviciado substitui-se à ancianidade, resultado da evolução no interior do homem. A natureza reedita proezas e especializa a raça, dotando-a de novas qualidades e características. No tangente à hibridização, só se compreenderiam à luz de ação milagrosa. Anote-se, como exemplo resplendente, o caboclismo.
A história de Dorotéia é sintomática, mode entender-se a sertaneja. São fatos atuais, correspondendo aos reflexos do processo evolutivo. Mostra o crescimento da mulher, sem que deixe de ser ela mesma em sua essência feminina. Indica sua influência junto ao companheiro e filhos nos tempos modernos, sem se afastar, contudo, das condicionantes milenares, embutidas nas regras impostas pela convivência. Este é um processo vivo que não se perde nunca.
Do futuro, quem conhece?
Do passado, fervem as vísceras nas lembranças mais recônditas, revelando meandros misteriosos, desconhecidos. Para trás, amontoam-se incógnitas. Disso ninguém duvida.
Dorotéia trazia sangue índio e português a morder-lhe as entranhas. Chegara das fraldas da Serra de Ibiapaba, proximidades de Viçosa do Ceará. Exercia a agricultura. Aproximou-se de Sobral, porque os filhos cresciam. Não teriam o destino dos pais. Assentaram-se em Massapê, município do interior, sobre sítio humoso, ao norte de Sobral. Decisão dela, vendo mais longe que o abestiado do marido, cujo processo de miscigenação o degenerara em coisa à-toa.
“A mulher cearense hasteou a bandeira da liberdade, tecida sob a força da fusão genética arrumada pelos avós não tão antigos assim”, imaginava Dorotéia cheia de viço e entusiasmo,rasgando o tempo na roça, sem medo do agora, confiante no amanhã, colocando inveja nos homens quando no trato da enxada e do ancinho.
Desgrilhoada, assumia ferramentas e rompia caminhos, até chegar à várzea para lavração. Levava as coxas molhadas e íntimas, passos curtos em roçar de ânsias, como uma deusa a processar desejos.
Mulher séria, fiel, dona das ancas mais cobiçadas do sertão. É maneira de dizer, porque deixava os homens com as idéias vacilantes. Qual outra despertou cobiça tanta naqueles fundões?
Um dia, acordou de ventre aceso, esfogueada. Volteou pelo terreno formigando de prazer, bufando libido pelas ventas arfantes. O andejo lhe dava agradável sensação. Não tivera sonho ruim naquela manhã, mas sono inteiro nos braços de homem irrequieto, diferente do morcego de tapera roncando ao seu lado todas as noites, soltando puns, cheio de pesadelos. O ente onírico não era seu marido! Era graça pousada em madrugada de paz, dando asas a desejos não cumpridos.
“O que há igual a beijo, se o desejo rasga caminhos em direção a lábios de fogo? Mas, ah, desgraçado! Por que viras fumaça ao amanhecer, enquanto minha carne trema e minha alma prossiga em chamas?”
Ficava assim, entre perquirições e desconsolos, apaixonada e sonhadora, doando-se às fantasias da imaginação. Dizia aos botões ao fim dos ais e respiração ofegante:
“A paixão pode tudo, eis o perigo. Os nós mais difíceis se desamarram sem esforço.”
Mas era mulher honesta! “E o respeito, sô?” - Indagava, logo se livrando da possibilidade de pecar em ação e pensamento, este muito recorrente, só que, dessa vez, chegara com intensidade inaudita. Dorotéia não era boba. Sabia que coragem de amor desanda em imprudência.
“Minha luta, fui eu quem lutei. Por isso, sei dos meus limites e das minhas chances de errar.” - Dizia, ao embaralhar-se nas encruzilhadas, saindo fora de compromisso demeritório.
De manhãzinha, feijão-de-corda na caldeira, carne-de-sol pronta para o fogo e batata-doce cozida; após, determina a hora para o quiabo e a macaxeira frita. Retornaria pouco antes do almoço, cansada, suada, desarrumada, barro, terra e tabatinga seca e rachada nas canelas, cor de inhame cozido. Era assim todo dia. Mas sempre trazia boa intenção para o tempero da comida. Acebaldo era o pai daquele mundéu de crianças, quase todos com nome emprestado e sem rumo.
Quando a matança de jegues estava no auge, ele comandava como chefe de família. Depois, entregou-se a falar mal dos negócios, resmungar, botar defeito em tudo! Andava como coisa sem valia pelos cantos da casa. No entanto, seu sangue permanecia nas veias das crianças.
“Naqueles sertões, sonho era sonho! A verdade morava nos dias claros, onde as ex-clamações se sucediam, desanuviando espíritos e aliviando pecados”. - Pensava a bela mulher, cabecinha cheia de artes, molejos e intenções. Mas nunca passou disso.
Para falar o certo, quando nada se queria, o sonho era estorvo. O importante estava em casa, para quando a comichão batesse entre as coxas e o ventre. Não era coceira de barro seco na pele, mas coisa de dentro, do instinto, tipo cio rompendo a pele como lava fervente, descendo e subindo pelo abdome. Era de fechar os olhos e pensar no sanfoneiro da cidade, que tocava forró no salão paroquial nos fins-de-semana, sem, contudo, dar atenção às mulheres do lugar. Daquelas bandas de Dorotéia, nem se diga! O padre conversara ao pé da orelha do músico, dizendo-lhe do recato das paroquianas. Avançando sinal, o músico não mais seria contratado para as quermesses! Quanto mais indiferença, mais as mulheres grudavam o pensamento no pecado. Coisa de mulher! Mas pecado com sanfoneiro o padre sabia já no dia seguinte, no primeiro ato de confissão.
Terminada a festa, a imaginação ganhava espaço e mundo, levando o mulheril a traquinar sob sentidos de lascívia proibida. Eram pensamentos antigos, egressos das idéias das parteiras. A cada parto, monte de recomendações caprichadas enchia a cabeça das parturientes. Bem que Dorotéia reservava-se em devotado respeito; não construía culpas para não sofrer; mas trazia tratados de fantasias na memória, alegando para si que era “coisa dos antigamentes”, tipo avós deitados nas alfombras com índias dispostas, ou guerreiros atraídos por européias carentes, ou europeus atazanados de luxúria, diante da nudez singela, ingênua e livre das mulheres cor de canela.
Fosse Dorotéia mais estudada, falaria em memória genética. Após os sonhos, ela entesava na imaginação. Ao fim dos pensamentos, obrava em solidão dolorosa, rendida à sublimação, levitando e afastando de uma vez por todas as peripécias da libido maculadora. A filharada ajudava nesse processo de resfriamento lascivoso.
“Não fosse a força de vontade, andaria de olheiras para lá e para cá!”, pensava Dorotéia.
Nos sítios isolados e tranquilos, macega alta, bananeiras e coivaras para mais de metro, não era de se duvidar. Não só isso. Havia outros recursos!
Dentro daquele corpo, mil capetas brandiam lanças e tacapes. Sua resistência conhecia abismos. Para ceder, bastava um relampear. Era fechar os olhos e socar a vergonha num caritó do rancho. Mas Dorotéia era forte, aliás, era mulher e meio no desiderato de superar obstáculos.
Pois bem! Naquele dia, almoçaram rapidinho. Não havia tempo para conversas. O arado e a terra aguardavam-na. Acebaldo rabiscava-lhe o olho. Getúlio, Cosme e Dodô acompanhavam a mãe pela manhã. À tarde, estudavam. O restante da prole ficava em casa, formando barafunda, cagança e aporrinhação para quando a mãe chegasse do roçado ao anoitecer.
Acebaldo vivia de empreitadas de pouco futuro. Dentre outros bicos, catava lenha e caçava. Dentro do mato, era homem doido, trincando dentes e apostando que daria golpe certeiro em caça grande. Arrasta-la-ia mato afora até o pátio da casa, para Dorotéia ver que sua eficiência ia além do imaginável. Idéia antiga, era dos que, por dentro, mais se parecia com índio.
“Duvido que exista algum bicho desse mato, quanto mais enorme de dar medo, ou garantidor da subsistência da família”, pensava Acebaldo, embora não perdesse oportunidade de prometer o feito. Ele não jogava utopias no lixo. Precisava de bengalas para viver e acreditar na sorte.
Um quarto de hora andado. Dorotéia parou para beber água na fonte, domando a solidão e o calor do corpo. Água limpa, colhida na folha de taioba. Debruçada em direção à fonte, correu-lhe doce quentura, como sentira pela manhã. Mas ali, como por encanto, o rosto enrubesceu. Afloraram olhos mágicos, tez resplendente, fisionomia sensual. Mirava os seios túmidos e doirados refletidos no espelho d'água. Orgulhosa, disse baixinho: “São lindos!” Não era narcisismo. Ali estavam os mais belos da região!
O pecado mandou aviso. Ela se manteve indiferente, mas deu asas ao sonho. Os filhos não desmereceram suas belas maçãs. Bem abrigada sob a encosta de flora exuberante, banda noruega do caminho, bem mais assombreada que a outra, afastou vestido e sutiã. Em seguida, apertou levemente os mamilos com os dedos, acompanhando o movimento refletido n'água, locupletando-se de luxúria.
“Ah, que besteirada é essa!”, pensou, lançando mão da taioba para atirar água nas partes íntimas, refrescando-se. Daí, amansou-se da montanha de desejo. Não seria naquele momento que a dança ritual explodiria em ais. O refrígero mineral aprumou-a, interrompeu o frenesi. Partiu para a roça, onde gradearia o solo para dar-lhe sementes no dia seguinte.
Ela perdia o viço na poeirada. Só emergia de si mesma ao soltar sucessivos aboios: “Eia, menina, eia!”, levando a égua adiante no manejo da terra. Então, o rosto brilhava de formosura.
Naquele dia - eta mulher arretada!- era sensação pura, poeira, suor, sol nas ancas, na bunda torneada, nas canelas, nas coxas peludas e no rosto. Predicados que tantos convites formalizaram para que fosse morar em São Paulo. Dorotéia lindava com o gozo a cada passo e grito, a cada lembrança e sonho perturbador. Pela primeira vez, dava de comer a pecado tão cheio graça. O corpo se energizara. Necessitava dar vazão às ânsias reprimidas
À tarde, ao retornar, perturbava-a o príncipe encantado. Ele estaria na fonte; ela esqueceria as atribulações por um instante. Escorregando sobre a rampa íngreme, encontrou abrigo na frescura do chão alfombrado. O crepúsculo tirara claridade à nascente. Ela já não divisava os seios com clareza. E o príncipe, que nada revelaria do que acontecesse ali? Dorotéia se remexia, mode lacraia na cinza. Um lado dizia não; outro, dizia sim. E o sangue dos índios kariris, paiacus, tocarubas e surucus? De súbito, conscientizou-se de que nada daquilo era coisa sua. Impulsos transcendentes levaram-na ao coração descompassado e à alma confusa, diante das bisavós devorando secundinas e cordões umbilicais cozidos. Algum europeu evitara precipícios!
Chegara apertando coxa com coxa, mãos na cintura em bailado de coreografia sensual, cheiro de fêmea no cio. Roncava desejo; atiçava seu príncipe a tirar-lhe a calcinha. Foi atendida. Seus dedos, nos de Dorotéia, arriaram a peça íntima. Após, sentou-se na areia, rogando-lhe um abraço. Seus braços fecharam-se sobre o próprio corpo e se sentiu apertada pelos do príncipe. Delirava! Nem parecia a Dorotéia das obrigações. Agora era Dorotéia de Deus, da Criação, da Natura!
Fazia mês e meio que o marido se preocupava com o tal bicho enorme. Por isso, a quantidade de sonhos; não parava de sonhar! Olhos cerrados, dizia ao príncipe:
"Vamos, sou toda sua! No seu mergulho, iremos juntos ao paraíso. Não pare, vamos, galope! Suas mãos fortes, seus músculos rijos... Vamos, toma-me por inteiro!"
Solenidade pura, Dorotéia tratou com inacreditável decência o soquete de feijão preso aos pés, untado de banha. Dedilhando os mamilos, idéias atiradas no mar das simbologias do inconsciente, pedia ao príncipe que a envolvesse toda, possuindo-a com volúpia e vigor.
Ao fim, que viagem fez Dorotéia agarrada àquele príncipe de fumaça, como erva - de-passarinho dominando árvore robusta!
Relaxada, não tardou a divisar o rancho e a filharada, a tempo de ver Acebaldo moqueando um gambá. Ninhada à volta, um que outro jogava adivinhação sobre o jantar. Naquela noite, Dorotéia permaneceria com os olhos em descanso, sem que os globos variassem em torno de nortes e buscas. Ela gostava de tentar tirar leite de vaca morta; naqueles fundões, os prazeres eram raros. Por muitos anos, fez-se parideira exemplar. Todo o resto ficava por conta da imaginação, que lhe proporcionava viagens de puro algodão doce. Após arrancar a caça das mãos do marido, lançou anúncio, sem dar explicação.
- Quem engorda, o gato come. Jantaremos ensopado de gambá com banana verde!
Ouviram-se vivas e a noite se foi como as outras: neutra, nem triste, nem alegre.
Essa e outras histórias correm pelo sertão de boca em boca. São causos anunciando que as mulheres romperam barreiras, enquanto os homens caçam, pescam e dormem, como se venerassem tradições indígenas residentes em algum lugar do sangue, da memória ou da alma.
Sabe-se lá onde!


A GRASNADELA DO CORVO


João ficara. Mulher e filhos foram ao povoado, visando buscar vaga na frente de trabalho aberta pelo governo. Ardendo em febre, João não tinha condições de acompanhá-los. A enxada quase lhe tosara o dedão do pé. A ferida desandara em séria infecção.
Lá fora, o sol inclemente a tudo esturricava. Sequer uma brisa aliviava a secura do ar, embora João dela não necessitasse, pois espantava os tremores causados pela febre sob velho cobertor. Sobre a banqueta, ao lado do catre, moringa, caneca e comprimidos compunham o retrato da natureza morta de suas desgraças.
A tarde avançava. João já consumira um punhado de velhos comprimidos. Contudo, não aplacaram as dores do moribundo.
A ferida latejava. Enorme íngua instalara-se na virilha.
Um silêncio de tempo finda pairava em derredor, edificando mórbida impaciência no acamado. Preocupava-se com a demora da mulher e filhos, pois a noite não tardaria. Pensou em acender a lamparina, mas desistiu; decerto, chegariam antes do anoitecer. Enganara-se. A tarde fora rápida e o crepúsculo, fugaz.
Era dor intensa e contínua, provocando João a providenciar emplastro para a ferida e procurar ajuda. Febre e dor rompiam-lhe as resistências. Fora cabeçudo: o dia passou e se garantiu, apenas, na promessa muda de algumas aspirinas vencidas.
Noite fechada, determinou-se a acender a lamparina. Ao descer do catre, constatou a incapacidade de apoiar-se sobre a perna lastimada, cuja dor lancinante levava-o a sérias con-torções. Sentou-se. Não acreditava no que acontecia. Destemido, trabalhador e irrequieto, de repente, viu-se entrevado.
Que fazer naquela escuridão? Sem lhe dar tempo para respostas, misteriosa grasnadela partiu dos escuros próximos à casa. Não era diferente da que ressonara tantas vezes pelas caatingas no seu tempo de menino, quando se agarrava à saia da mãe, pressupondo tratar-se de espírito do mal, ameaçando sua família naqueles rincões desertos. Mas um homem naquele estado não tinha condições sequer de intimidar-se com fantasmas.
A dor monopolizava e não permitia outro tipo de medo que não se ligasse às suas próprias causas. De fato, o temor concentrava-se na possibilidade de a ferida arruinar. Das almas penadas, safar-se-ia; mas da ferida, não sabia como. Ao demais, tratava-se de um corvo, apenas um corvo. De súbito, indagou sobre o que fazia um corvo perdido naquelas paragens. Bateu-lhe confusão, decorrente mesmo da debilidade físico-mental, tornando precário o exercício da razão. Em consequência, imaginou tratar-se o grasnar de aviso funéreo. Afinal, a seca levara para longe todos os seres vivos da região, menos os homens e suas crenças nos mistérios do além.
Findas as lucubrações pertinentes à ave, arrastou-se até o fogão, onde achou fósforo e lamparina. Doía-lhe todo o corpo, tomado de extrema sensibilidade. Sentia frio, estranho frio. Com imensa dificuldade, sustentando-se na perna esquerda, atingiu o intento. Tímida luz propiciou-lhe locomoção mais desenvolta. A febre provocava-lhe náuseas e tontura, não lhe permitindo acender o fogo e preparar o emplasto. Como há pouco anoitecera, calculou que a mulher chegaria a qualquer momento e, então, cuidaria de fazê-lo.
Deitado, gemia. Não dobrava mais a perna. O mal recrudescia. Lá fora, cessara o grasnado. Nem um pio; sequer um farfalhar de folha seca. A natureza esvaziara-se diante da estiagem prolongada. Até as lagartixas debandaram.
A vida inteira de miséria multiplicara-lhe a revolta. Naquela noite, porém, a intensidade febril subtraíra-lhe até a legitimidade de revoltar-se contra as necessidades prementes.
Piorava seu estado geral. Lembrou-se de orações recitadas na infância. Elevou preces a Deus; desculpou-se pelos anos de negligência com os preceitos bíblicos. Rogava ajuda, penitenciava-se, orava e foi por aí durante algum tempo, até que a febre abrisse a porta da alucinação. Em diante, a imaginação construía-se ao custo de terríveis cenas. Curtos espaços de sono levaram-no a mergulhar em pesadelos indescritíveis.
O tempo passava. O quarto transformou-se num inferno. Rondavam-no animais estranhos, verdadeiros monstros ameaçando destroçá-lo com suas garras e dentes afiados. Noutros momentos, aves negras e gigantes, bicos pontiagudos, atiravam-se contra seu corpo para, em seguida, pulverizarem-se em mágico sumiço, dando lugar a serpentes brotadas das paredes em sua direção. Pedia pelo amor de Deus que o deixassem em paz. Não adiantava repetir-se em orações, pensava. Era castigo divino a cobrar-lhe pecados. Mas que pecados, se não os tinha? - Chegou a balbuciar.
Nos pequenos intervalos da intermitência convulsiva, pensava no sofrimento da mulher, a quem prometera vida menos amarga. Entrava ano, saía ano, era danação sem fim, seca desgraçada, enquanto diziam que, sob o solo, um mar de água doce aguardava poços artesianos prometidos pelas autoridades. Mas quem era essa gente que nunca dera as caras por aquelas bandas? - Protestou. Diante da agonia, um filme de miséria mostrava sementes esterilizadas pelo tempo seco; a água salobra chegada no lombo dos jumentos ou na cabeça da mulher; os teiús dos tempos imemoriais. Agora, tudo era fim de mundo; mal se conseguia um calango. Até os ratos debandaram. Sobraram cactos! Entregue às recordações, concluíra que sua mulher era uma heroína. Suportava tempos ruins, diante do sofrimento dos filhos, sem dar importância aos paus-de-arara acenando a boa-vida das cidades grandes. Sua esperança era maior que as promessas.
O inchaço da perna era péssimo sinal. O dedão gangrenara. Já não sentia o pé. Restava procurar socorro na casa do compadre Raimundo, a poucas centenas de metros dali. Mas como, se quase não conseguira acender a lamparina? E os tremores, o delírio, as dores, as visões alternadas de instante a instante? E como andaria o jumento àquelas horas, sem ração e água durante o dia inteiro? Mesmo combalido, com relances alucinatórios, arrastar-se-ia até o animal. A escuridão abissal recebeu-o no terreiro. Já não ficava de pé. Tateou uma vara para apoiar-se. Encontrou-a, mas em vão. Pensou na lamparina, mas como retornar? Rastejou em direção ao potreiro chamando pelo animal que não dava as caras. Constatou que se evadira. Praguejou-o, mas logo lhe deu razão. Com sede e fome, escapara. Não seria diferente.
Tudo conspirava contra João. Ruim lá dentro, pior cá fora.Tentou retornar ao casebre. Inútil. Enfraquecera. Recostou o corpo na cerca para recuperar-se.
Milhares de estrelas dançavam nos seus olhos. Naquela noite, pareciam-lhe multiplicadas, algumas muito reluzentes. De repente, a dor cedeu. Instalou-se profunda paz interior, levando-o a percorrer o firmamento, como se fora enorme ave.
Não demorou, um barulho de carroça despertou-o de sua viagem fantástica. Um risco de esperança tomou-lhe a alma. Sentia-se melhor e o socorro chegara! Uma voz gritou seu nome. Reconheceu-a. Era Raimundo. João respondeu debilmente. Havia mais alguém, pois ouvia conversa. Ao aproximar-se, Raimundo acocorou-se e lhe perguntou o que fazia deitado no terreiro. Arrastando as palavras, falou do ferimento, da febre, da dor e da impossibilidade de locomoção. Sem perda de tempo, o amigo e os dois acompanhantes, soldados da força pública, afastaram-se da carga que traziam e levaram o enfermo para o casebre, onde constataram seu estado desolador. Os soldados entreolharam-se, permanecendo mudos. Para prestar-lhe socorro, necessitariam da carroça. Foi aí que Raimundo revelou: sua mulher se envenenara, levando consigo os dois filhos. Estavam ali com os corpos. Ela deixara bilhete pedindo-lhe desculpas. Segundo Raimundo, ela não conseguira vaga na frente de trabalho.
Sua ação fatal moveu-se pelo desespero.
- Mas seja forte, João! A vida continua! Ainda há muito chão pela frente! Acreditemos no futuro! - Disse-lhe Raimundo.
Talvez João não ouvisse a recomendação de Raimundo. Seus olhos semi-abertos já não brilhavam. Apenas uma lágrima luzia no rosto duro, refletindo a tênue luz da lamparina.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A ARCA DO TESOURO

Pedrinho determinara-se a descobrir a fórmula da felicidade, algo que o fizesse tão feliz como os meninos residentes nos bairros ricos.
Era muito pobre. Não conhecera o pai. A mãe sustentava quatro filhos com lavação de roupa. Não bastasse, a avó materna residia junto à família no barraco apertado. Frequentara os três primeiros anos do curso primário. Embora gratuito o ensino, havia uniforme, sapatos, alimentação, passagem de ônibus, ao mesmo tempo em que se tratava do filho mais velho, muito requisitado na ausência da mãe. Afinal, sua avó vivia entrevada numa cama, doente, quase cega. Pedrinho tomava conta dos irmãos menores e alcançava remédios à avó. Havia, pois, muitos problemas impedindo-o de continuar os estudos. Resolveu sair de casa.
Ele sonhava muito. Não compreendia como havia meninos bem vestidos, tênis de marca, boa alimentação, belas bicicletas, cinemas e passeios, desejos atendidos, enquanto outros passavam por necessidades, inclusive fome. Os privilegiados tinham tudo o que queriam, vida de príncipes.Foi o desejo de conquistar essas maravilhas que impulsionou Pedrinho a sair de casa. Descobriria o caminho da felicidade. Já no primeiro dia, constatou que, sem dinheiro, não usufruiria as coisas boas da vida. O coitado estava sem vintém, não tinha sequer para comprar um pão. Começara a provar os amargos dercorrentes da decisão de sair de casa. Lá, ao menos, sua mãe conseguia o mínimo para não deixar a família passar fome. Sua avó, num golpe de sorte, alcançara uma pensão. Recebia um salário-mínimo mensal. Seu marido fora operário naval e trabalhara quarenta e tantos anos com carteira assinada. Mas o que fezia o garoto, agora longe de casa?
Enturmado com alguns flanelinhas, sobrevivia dos trocados recebidos dos motoristas nos estacionamentos da via pública. Por mais que tentasse, não vislumbrava como atingir os objetivos. Na lida diária, observava que não era só ele o desprotegido pela sorte. Centenas, milhares de garotos perambulavam pelas ruas, mal vestidos e com fome, dormindo sob pontes, viadutos e calçadas, vivendo da caridade alheia. Alguns não tinham sequer família, situação pior que a sua. Contudo, os sonhos borbulhavam: roupas novas, casa com televisão, geladeira, máquina de lavar roupa e tudo o mais que pudesse adquirir para dar conforto à mãe. Compraria computador, iria ao parque de diversões e ao circo. Não esqueceria da avó, que seria atendida numa pomposa clínica, supervisionada por bons médicos. Automóvel? Ah, claro que teria um! De preferência vermelho! No natal, um belo pinheirinho cheio de luzes piscando, cercado de presentes, bolas de futebol e bicicletas para os irmãos; vestidos, blusas e belas sandálias para a mãe e para a avó; presunto, frutas, bolos e outras guloseimas natalinas... Assim vivia o garoto, cheio de imaginação e vontade.
Prometera a si mesmo que só voltaria para casa quando descobrisse a fórmula de realizar os desejos. Entretanto, a cada dia se decepcionava com o mundo, pois encontrava as portas fechadas aos seus anseios. Não conseguia transpor a vida de garoto de rua, cujos ganhos como flanelinha mal davam para atender à sua necessidade alimentar. Dormia sob marquises em companhia de outros meninos, sobre jornais e papelão.
Certa noite, pouco depois de se deitar, teve uma visão fantástica. Uma grande arca pousava sob as águas do mar, proximamente à praia. Estava abarrotada de jóias, diamantes, rubis, esmeraldas e dobrões de ouro. A visão levava-o a um lugar já conhecido, uma enorme pedra a cerca de vinte metros da areia, na praia de Copacabana. No silêncio da madrugada, aquela visão, de tão viva, real e intensa, despertou-o à realidade. Lançou os olhos à escuridão das ruas, impressionado com o que terminara de lhe acontecer. Seria uma mensagem vinda dos céus? - Imaginou. Agradeceu a Deus e rezou, como fazia sempre antes de dormir. Virou-se para o lado e logo pegou no sono. Ainda bem não amanhecera, partiu para o local indicado na visão. Ao chegar defronte à enorme pedra, sentou-se na areia. Finalmente, estava próximo de atingir seus objetivos. Sentiu renovadas as esperanças de vida. Não se demorou muito sentado. Aos primeiros raios de sol, tirou a camisa e mergulhou em direção ao tesouro. Próximo a pedra, submergiu e nadou ao encontro da arca. As águas estavam claras, muito claras, como nunca vira. Em braçadas lentas, foi-se ao fundo de areias brancas. Sua mãe não mais lavaria roupas para fora. Sua avó restabeleceria a visão, removendo a catarata. Seus irmãos estudariam, ganhariam brinquedos e não passariam fome. Atenderia ao sonho materno: seria doutor! Enquanto a imaginação tomava-lhe a mente, o tempo passava. Os olhos vasculhadores percorriam cada trecho submarino; seu corpo bailava por dentre cardumes multicoloridos. Os peixes pareciam velhos amigos a acompanhá-lo na busca ao tesouro. Sob as águas, imperava silêncio absoluto. A expectativa transmitia-lhe emoção sedutora. De repente, eis a arca! Era enorme e antiga, parecida com as dos filmes de pirata. Seu coração disparara de felicidade. Aproximou-se e abriu-a. Durante alguns instantes, ficou estático, deslumbrado com a quantidade e o brilho das jóias e das pedras preciosas. Tudo como lhe aparecera na visão: diamantes, pérolas, rubis e moedas de ouro. Deus atendera suas preces. Doravante, viveria como os meninos dos bairros rico, que possuíam tudo o que desejavam. Diante da arca, lançou as mãozinhas no seu interior e trouxe um lindo colar com um pingente incrustado de belas gemas. Suspendeu-o à altura dos olhos, imaginando-o no pescoço de sua mãe. Pedrinho era só felicidade!
Naquele mesmo instante, enquanto a manhã enchia-se de bela luminosidade, uma lágrima escorria no rosto de sua mãe. Para ela, não lhe era estranha a razão de seus pressentimentos. Com o tempo, certificou-se da desgraça que se abatera sobre Pedrinho. Para sua infelicidade, os demais filhos tiveram visões parecidas. Todos foram protagonistas inconscientes de um final trágico para suas vidas.

RECORDAÇÕES

Passava da meia-noite. Manchas argênteas esparramavam-se na sala. Eram folhas, galhos, símbolos estranhos, figuras de chumbo espalhadas no chão e na parede, resultantes do luar rompendo nuvens pressagiosas.
Nunca houve atraso tão elástico. Afinal, Madalena confirmara a visita.
O martírio recrudescia a cada minuto. Lá fora, um que outro carro aligeirava-se barulhento. De repente, um táxi defronte ao edifício! Seria ela? Não, apenas um bêbado resmungando por um amor ausente. Em diante, nenhum outro veículo estacionou por dali.
Ah, espera tensa, ruindades registrando sentimentos amargos!
Havia certeza de sua chegada. Traria balas de coco para o filme das 22 horas. Porém, a frustração desajeitava-me, cutucando-me forte com o correr das horas.
Nos instantes do silêncio dilatado, imaginei que os carros não passariam mais; cães e gatos sossegariam; eu me entregaria aos zumbidos junto ao travesseiro. Logo, porém, uma buzina gritava, latidos ecoavam, transeuntes conversavam e felinos atendiam à libido.
Meus olhos grudavam no relógio, sentindo a lerdeza dos segundos na alma dos que esperavam com sofreguidão. Os relógios são perversos com os solitários.
O que fazia Madalena naquela noite de ansiedades? Escolhera, tantos anos depois, reservar-se aos meus sentimentos para organizar dúvidas em minha alma? Faria isso comigo, seu dileto companheiro? Não, não faria! Ela não era uma jovem encantada com firulas do coração, para brincar com relações maduras. Seria recaída. Ademais, ela conhecia minha repulsa a esse tipo de comportamento. Dizia-lhe que a idade não comportava certos jogos da alma.
No fundo, acreditava que Madalena não tinha a exata compreensão da falta que me fazia. Culpa minha, qum sabe, mas meu jeito era assim. Não demonstrava minhas intensidades amorosas. Coisa de machismo besta de que me arrependo muito, mas que me acompanha desde rapazote. Se me comportasse diferente, ela pensaria que eu não conseguia viver sozinho, isto é, que ela integrava meu mundo. Eu evitava esse entendimento, não sei porquê.
Fazia-me durão; minha realidade interior não emergia induvidosa do meu gesto e da minha palavra, quando Madalena penetrava meu pequeno universo, sorriso aberto e franco, trazendo luz e alegria ao meu ambiente, seduzindo-me. Como fui tolo durante esses anos!
Jamais exteriorizei minha felicidade. Fui uma besta! Certos homens aguardam o segundo tempo para arrependimentos e mudanças. Que ilusão!
Para ela, fui frio, sem emoções, indiferente à palavra e ao carinho. Quiçá, um ingrato! Na verdade, meu interior não funcionava assim. Ela era a única amiga, meu porto e verdadeiro amor. Com a idade, a memória atulhou-se de lembranças sobre fatos e acontecimentos marcantes.
Então, já não era mais moço. Meu relacionamento traduzia-se por sentimentos maduros, alguns mais resistentes que o próprio amor.
Fazia-me falta o companheirismo. Pouco vivíamos na relação de amantes. Sublimáramos o sexo em vivências múltiplas e compensações alicientes. Com a idade, é resoluta a exigência de ter-se alguém ao lado, para transcendentalizar o amargo imposto pela solidão. Chega o momento de reverenciar a vida em tom de experiência. Só isso. Nesse trânsito, são poucas as alternativas, sem esquecer do perverso egoísmo embrutecedor da alma. Mínimos detalhes transformam-se em problemas enormes. Alguns sonhos não se realizam por picuinhas alimentadas contra o parceiro. Sofrerão ambos, devido às posições malbaratadas.
Na juventude, as portas se abrem às aventuras. Mas me reservava e não mudaria, no que tange à forma de ser e ver o mundo, em especial o jeito de conviver com Madalena. Não possuía o dom de mudar do dia para a noite. Jamais extravasava. Ela não me sentia de maneira diversa, senão da forma como eu era e sempre fora. Seria estranho para Madalena, isto sim, a mudança repentina do meu caráter. No fundo, eu acreditava no seu gosto por certas peculiaridades do meu conduzir. Não o fosse, ela teria me abandonado há tempo. Ao demais, nunca imaginei reformar minha vida, com simples alteração de personalidade. A realidade mostrava minha alma sedimentada, e Madalena, mulher inteligente, conhecia esse particular.
Naquele dia, se chegasse, mesmo tarde, eu passaria um mata-borrão nas minhas lamúrias. Madalena constituía-se na jóia mais preciosa da minha vida. Mas ela não chegava.
Os ponteiros do relógio transtornavam-me; o menor tripudiava-me sem freios, ao emplacar outra hora de desilusão. Que noite vazia! Madalena nunca endurecera o jogo; na hora marcada, ei-la chupando bala de tamarindo ou de mel. Ao abrir a porta, estampava largo sorriso de alegria. Por que, ao menos, não telefonou?
A decepção trouxe a insônia. Passeei com os olhos sobre a cômoda, o guarda-roupa, o criado mudo. Os objetos levavam-me ao passado. Perquiria a razão das antigalhas, mimos que, naquela madrugada, faziam-me sofrer. Eram lembranças ardendo na alma. Bibelôs, jarrinhas, flores secas, agendas antigas, porta-retratos, cigarreiras, uma infinidade de presentes recebidos de Madalena, ao chegar de seus passeios. Sempre lembrava de mim.
Aqueles objetos transmudaram-se em mágoas naquela madrugada de ausência. Uma faquinha de madeira, presente de minha avó para cortar papel, quando eu era criança, parecia penetrar-me, lancinando a alma; levava-me à infância, às ruas antigas, aos meus pais, irmãos e sobrinhos, às festas de aniversário na casa materna. Anatematizei todos os objetos; apertavam-me o coração, ao invés de trazer felicidade. Chorei feito criança, um homem de cabelos encanecidos. E os quadros nas paredes? Desalentador!
Madalena nunca faltara sem explicação. Naquela noite, senti o quanto era penoso esperar em vão uma pessoa querida. Mas fechei os olhos.
Pela manhã, tomei café e acendi o cigarro. Reuniria o badulaques que jogaria no lixo! Depois, sairia pelas ruas como cachorro sem dono, até reencontrar outro motivo para sorrir. Minhas cargas pesavam. Havia desalento. Se Madalena troçava, eu pedia que não fosse comigo.
Por volta das oito horas, tocou a campainha. Chegara a triste notícia de que Madalena morrera! Oh, que desgraça! Como pensara mal de minha amiga, minha amada! Eu que imaginara a ausência noturna como forma de fazer-me figa! Que imbecil! Madalena nunca usaria tal recurso, comum aos adolescentes, para perturbar meus sentidos.
Agora chorei sua morte como uma criança. Aos oitenta anos, dizem, não há mais lágrimas. Ledo engano. Chorei por Madalena durante muitas noites, recordando a juventude, a paixão, a amizade e o companheirismo, saudoso das balas de coco, do licor de jenipapo e dos causos antigos que contávamos um atrás do outro. Era a solidão de verdade.
Nos seus setenta e oito anos, Madalena trazia um amor cheio de vida. Isso a empolgava. Morreria apaixonada, dizia. Justificava amor tão duradouro no fato de não morarmos juntos. Ah, Madalena, por que pensavas assim? Um dia cederias, e nem por isso deixarias de me amar!
Ainda pela manhã, reuni os objetos, como me propusera na noite anterior objetivando vingança. Só que não os joguei ao lixo. Retirei a poeira e os recoloquei em seus lugares. A caixinha de música, presenteada há mais de cinquenta anos, levei-a para conserto.
Em diante, meu mundo existe em função de lembranças. Não necessito sonhar com outra mulher. Seria demais para mim!

sábado, 12 de setembro de 2009

AMOR INTRUSO

Uma ânsia de amor profundo abraçou a alma de Dorvalino, rompendo resistências, ganhando-o por inteiro. Não havia lugar onde não se manifestasse: em casa, nas ruas, no mercado. Dorvalino era um sítio tomado em estratégia guerreira: sucumbido, entregue. Coisa de cinquentão caído por ninfeta. Seus suspiros davam na pinta, mas ninguém comentava. Ruim com ele, pior sem ele, dizia a mulher aos filhos, quando via o marido sonhando sob a jaqueira.
Conscientizara-se de uma luta interior intensa, flagelo de canções de abandono, forçando o poeta ao rigor dos abrolhos. Dorvalino poeta? Até isso! Escrevia suas linhas piegas, cheio de dúvidas sobre o futuro. Coisa de poeta encasquetado por amante esfogueada.
Mas Dorvalino era dos Souza Araripe Ferrão das Cruzes, gente resistente do sul da Bahia, praqueles lados de Teixeira de Freitas, onde homem que se lastimava à-toa, inclusive por mulher, era tachado de fresco.
Eta, gente! Como pensar assim, se alma é coisa que nem mulher nem homem dominam? Ah, aquela invasão do amor, dolorida e resistente! Fazer o quê para livrar-me e viver como antes? - Assim Dorvalino reagia, porque entender a cabeça daquela gente, impossível!
Recorrendo à bebida, frustrava-se. Os impulsos acendiam-se, emergindo desejo de busca. Mas não buscava; havia dia e hora para encontro. Compromissara-se como o Papa.
Safada, a ânsia sorrateira e sem tamanho, marcada ao ferrete dos sonhos, tomou-lhe a alma de assalto, usucapindo-a ponto a ponto. É claro que tudo acontece, quando se encontra a porteira aberta. Dorvalino era mais viciado em garota nova que raposa em galinheiro aberto.
Não era homem novo. Encontrava-se na perigosa meia-idade do leão, onde o camarada se constrange só em pensar numa relação extraconjugal. Imagine-se a situação em que se metera, envolvido até o gogó com uma ninfeta de dezesseis anos, Lolita a transgredir-lhe princípios, todos eles, até os penais! Ao fim, praticava escancarada corrupção de menores, cuja sanção faria o pecador mofar na penitenciária. Mas Dorvalino sequer sabia de tal tipificação no Estatuto Penal. Passara a vida numa fábrica de tecido lubrificando engrenagens e olhando as pernas das operárias. Aposentado, foi para casa aporrinhar a mulher e os filhos, com surpreendentes novidades domésticas.
Estudava uma forma de diminuir as chamas do amor. Noites inteiras envolvia-se naquela entrega, tal adolescente apaixonado por colega de escola. Sua dor geraria frutos úteis no dia seguinte da espera, imaginava. Encontraria uma saída honrosa.
Como sofria! Um sentimento resistente alojara-se no fundo da alma. O enredo amoroso fustigava-o. Fazer o quê? Quanto mais lutava, mais se atolava, enredado nas angústias.
A linda menina, seios de pera, olhos de jabuticaba e mãos de veludo, reinava absoluta nas suas fantasias. Alma em frangalhos? Talvez sim, talvez não. Havia uma confusão dos diabos a transtornar-lhe os sentidos. Pensava nas filhas maiores e nos dois netos que o filho vadio arrumara! Quanto à esposa, essa não entrava no jogo das culpas amontoadas. De jeito algum!
O pungente amor intruso dava-lhe poucas respostas sobre a ninfeta. Atendendo as aparências, Fátima namorava um garotão em casa, duas vezes por semana. Inclusive, Dorvalino sabia que o sortudo era cheio de gás. Ah, aqueles lábios de mel, aquela pele de pêssego! Aquelas coxas de anjo! Meu Deus do céu, tudo isso nas mãos daquele galinho novo!
O amante tomava-se de desassossego, mas Fátima lhe garantia dureza com o namorado, a quem dizia que não a despertasse, pois pretendia casar-se virgem. Beijar era o máximo permitido ao garotão, mesmo assim beijo de cinema, sem língua e sentimento. E, claro, algumas bolinações em zonas pouco erógenas. Ela se determinara a não dar muita chance à libido. As explicações de Fátima aliviavam-no.
Mais pensava na jovem, menos admitia a idéia de dividi-la. A mãe, uma tonta; o pai, um alcoólatra. Quem vigiava as mãos bobas do namorado? Passou a duvidar de Fátima. Ela era de responder "não" duas vezes, ao lhe coçar as intimidades. Que dor danada! - Suspirava Dorvalino, ao lado da esposa assistindo à novela das sete.
Tudo seria menos doloroso, não houvesse obstáculos impedindo Dorvalino de ver Fátima com mais frequência. Eram a mulher, os filhos e os netos grudados em seu pé, mais a falta crônica de dinheiro; uma porção de besteiras misturadas a coisas importantes interrompendo seu caminho rumo à amada. O tal namorado atrapalhava uma barbaridade! Aposentado, não parava um instante: era o chuveiro queimado, a tomada de energia com defeito, a caixa de gordura entupida, enfim, era sempre Dorvalino para salvar a pátria.
Sobrava-lhe a magra segunda-feira para apanhar Fátima na porta do colégio. Dali, iam ao cinema, depois comiam pizza. Esbaldava-se ao lado de seu amor.
Ela vibrava com os carinhos de Dorvalino. Era experiente, conhecia de tudo, dos beijos às bolinações. Ela se deliciava! Não contestava as mentiras do amante, tangente à alegada separação conjugal e ao fato de não ter filhos. Não ameaçaria a felicidade do homem que lhe dava prazer, colocando em perigo momentos de pura emoção. Embora nova, sabia que, na idade de Dorvalino, pressões sobre um coração apaixonado era enfarto na certa. Ao demais, sua companhia era preciosa na hidromassagem do motel. Virava criança, de tão feliz.
Nem tudo que pensa e se mexe na face da terra permanece vivo e inteiro para sempre. A esposa de Dorvalino saía aos domingos com os filhos, genros e netos. Passava o dia numa das praias de São Gonçalo, no Estado do Rio, fosse na Praia do Focinho do Porco, na Praia da Luz ou na Praia de São João. Num desses domingos, as coincidências marcaram encontro fatal.
Fátima não aceitava convite do namorado para frequentar as praias oceânicas de Niterói, tampouco as urbanas. Receava encontrar Dorvalino. Ao falar em praia, Fátima desviava o roteiro para São Gonçalo. Só faltou comunicação com o amante, pois Dorvalino não imaginaria seu amor por aquelas bandas; tratavam-se de praias pouco frequentadas, devido à lama e à sujeira. Localizavam-se no saco da Baía da Guanabara. Até feto boiava naquelas águas.
O pior aconteceu ao meio-dia, quando aquele mulherão caminhava pelas areias da Praia da Luz, trajando sumaríssimo biquíni, cheia de satisfação. Afinal, vinha das bandas da Praia de São João, lugar solitário e afrodisíaco, segundo antigos moradores do lugar.
De repente, os olhos da sereia bateram numa roda debaixo de uma árvore, onde se destacava o chefe da família: Dorvalino, sem camisa, vestindo enorme calção amarelo repintado de florzinhas! Abraçava a esposa, mulher de cinquenta e tantos, mas aparentando sessenta e mais alguns, desleixada de corpo e alma, usuária de perereca um tanto frouxa na arcada dentária superior. Era uma dona de casa comum, acompanhada do marido, netos, genros e noras. Trajava maiô de bolinhas dos anos sessenta.
Sobre a toalha estendida na grama, frangos assados com farofa. Um isopor trazia cerveja e refresco. Junto a Dorvalino, um litro de pinga chegava à metade.
Fátima enrubesceu, ao ver Dorvalino enaltecendo as qualidades da mulher, da mãe e da avó! A amante retornou, passando pelo mesmo local. Foi quando Dorvalino flagrou sua musa abraçada ao namorado, a caminho da Praia de São João. Dorvalino conhecia a fama da praia. Logo encerrou a conversa, tomando uma talagada da pinga. Ninguém entendeu seu silêncio.
Naquela noite, levaram-no ao Pronto Socorro Municipal para debelar uma falta de ar crônica. Já fazia efeito uma dúzia de pílulas, algumas sob a língua. Foi quando sentiu sair de dentro de seu corpo aquela armação amorosa que o aturdia. Fatinha se distanciava.
Pela manhã, fios pelo corpo, soro dependurado, agulha na veia, estonteado, acordou na UTI, sem saber das horas. Olhou para os lados e, calmo, disse para si mesmo, tomado de orgulho: "Sou outro homem! Agora, para ganhar minha alma, tem que pagar pedágio! Me chamo Dorvalino de Souza Araripe Ferrão das Cruzes. E Deus me livre cair noutra de amor!"