domingo, 27 de setembro de 2009

DOROTÉIA


A vida tece mudanças, mas certas influências sobrevivem no âmbito do tosco, do bruto, do primitivo. O elementar fica no passado. Das alterações, o noviciado substitui-se à ancianidade, resultado da evolução no interior do homem. A natureza reedita proezas e especializa a raça, dotando-a de novas qualidades e características. No tangente à hibridização, só se compreenderiam à luz de ação milagrosa. Anote-se, como exemplo resplendente, o caboclismo.
A história de Dorotéia é sintomática, mode entender-se a sertaneja. São fatos atuais, correspondendo aos reflexos do processo evolutivo. Mostra o crescimento da mulher, sem que deixe de ser ela mesma em sua essência feminina. Indica sua influência junto ao companheiro e filhos nos tempos modernos, sem se afastar, contudo, das condicionantes milenares, embutidas nas regras impostas pela convivência. Este é um processo vivo que não se perde nunca.
Do futuro, quem conhece?
Do passado, fervem as vísceras nas lembranças mais recônditas, revelando meandros misteriosos, desconhecidos. Para trás, amontoam-se incógnitas. Disso ninguém duvida.
Dorotéia trazia sangue índio e português a morder-lhe as entranhas. Chegara das fraldas da Serra de Ibiapaba, proximidades de Viçosa do Ceará. Exercia a agricultura. Aproximou-se de Sobral, porque os filhos cresciam. Não teriam o destino dos pais. Assentaram-se em Massapê, município do interior, sobre sítio humoso, ao norte de Sobral. Decisão dela, vendo mais longe que o abestiado do marido, cujo processo de miscigenação o degenerara em coisa à-toa.
“A mulher cearense hasteou a bandeira da liberdade, tecida sob a força da fusão genética arrumada pelos avós não tão antigos assim”, imaginava Dorotéia cheia de viço e entusiasmo,rasgando o tempo na roça, sem medo do agora, confiante no amanhã, colocando inveja nos homens quando no trato da enxada e do ancinho.
Desgrilhoada, assumia ferramentas e rompia caminhos, até chegar à várzea para lavração. Levava as coxas molhadas e íntimas, passos curtos em roçar de ânsias, como uma deusa a processar desejos.
Mulher séria, fiel, dona das ancas mais cobiçadas do sertão. É maneira de dizer, porque deixava os homens com as idéias vacilantes. Qual outra despertou cobiça tanta naqueles fundões?
Um dia, acordou de ventre aceso, esfogueada. Volteou pelo terreno formigando de prazer, bufando libido pelas ventas arfantes. O andejo lhe dava agradável sensação. Não tivera sonho ruim naquela manhã, mas sono inteiro nos braços de homem irrequieto, diferente do morcego de tapera roncando ao seu lado todas as noites, soltando puns, cheio de pesadelos. O ente onírico não era seu marido! Era graça pousada em madrugada de paz, dando asas a desejos não cumpridos.
“O que há igual a beijo, se o desejo rasga caminhos em direção a lábios de fogo? Mas, ah, desgraçado! Por que viras fumaça ao amanhecer, enquanto minha carne trema e minha alma prossiga em chamas?”
Ficava assim, entre perquirições e desconsolos, apaixonada e sonhadora, doando-se às fantasias da imaginação. Dizia aos botões ao fim dos ais e respiração ofegante:
“A paixão pode tudo, eis o perigo. Os nós mais difíceis se desamarram sem esforço.”
Mas era mulher honesta! “E o respeito, sô?” - Indagava, logo se livrando da possibilidade de pecar em ação e pensamento, este muito recorrente, só que, dessa vez, chegara com intensidade inaudita. Dorotéia não era boba. Sabia que coragem de amor desanda em imprudência.
“Minha luta, fui eu quem lutei. Por isso, sei dos meus limites e das minhas chances de errar.” - Dizia, ao embaralhar-se nas encruzilhadas, saindo fora de compromisso demeritório.
De manhãzinha, feijão-de-corda na caldeira, carne-de-sol pronta para o fogo e batata-doce cozida; após, determina a hora para o quiabo e a macaxeira frita. Retornaria pouco antes do almoço, cansada, suada, desarrumada, barro, terra e tabatinga seca e rachada nas canelas, cor de inhame cozido. Era assim todo dia. Mas sempre trazia boa intenção para o tempero da comida. Acebaldo era o pai daquele mundéu de crianças, quase todos com nome emprestado e sem rumo.
Quando a matança de jegues estava no auge, ele comandava como chefe de família. Depois, entregou-se a falar mal dos negócios, resmungar, botar defeito em tudo! Andava como coisa sem valia pelos cantos da casa. No entanto, seu sangue permanecia nas veias das crianças.
“Naqueles sertões, sonho era sonho! A verdade morava nos dias claros, onde as ex-clamações se sucediam, desanuviando espíritos e aliviando pecados”. - Pensava a bela mulher, cabecinha cheia de artes, molejos e intenções. Mas nunca passou disso.
Para falar o certo, quando nada se queria, o sonho era estorvo. O importante estava em casa, para quando a comichão batesse entre as coxas e o ventre. Não era coceira de barro seco na pele, mas coisa de dentro, do instinto, tipo cio rompendo a pele como lava fervente, descendo e subindo pelo abdome. Era de fechar os olhos e pensar no sanfoneiro da cidade, que tocava forró no salão paroquial nos fins-de-semana, sem, contudo, dar atenção às mulheres do lugar. Daquelas bandas de Dorotéia, nem se diga! O padre conversara ao pé da orelha do músico, dizendo-lhe do recato das paroquianas. Avançando sinal, o músico não mais seria contratado para as quermesses! Quanto mais indiferença, mais as mulheres grudavam o pensamento no pecado. Coisa de mulher! Mas pecado com sanfoneiro o padre sabia já no dia seguinte, no primeiro ato de confissão.
Terminada a festa, a imaginação ganhava espaço e mundo, levando o mulheril a traquinar sob sentidos de lascívia proibida. Eram pensamentos antigos, egressos das idéias das parteiras. A cada parto, monte de recomendações caprichadas enchia a cabeça das parturientes. Bem que Dorotéia reservava-se em devotado respeito; não construía culpas para não sofrer; mas trazia tratados de fantasias na memória, alegando para si que era “coisa dos antigamentes”, tipo avós deitados nas alfombras com índias dispostas, ou guerreiros atraídos por européias carentes, ou europeus atazanados de luxúria, diante da nudez singela, ingênua e livre das mulheres cor de canela.
Fosse Dorotéia mais estudada, falaria em memória genética. Após os sonhos, ela entesava na imaginação. Ao fim dos pensamentos, obrava em solidão dolorosa, rendida à sublimação, levitando e afastando de uma vez por todas as peripécias da libido maculadora. A filharada ajudava nesse processo de resfriamento lascivoso.
“Não fosse a força de vontade, andaria de olheiras para lá e para cá!”, pensava Dorotéia.
Nos sítios isolados e tranquilos, macega alta, bananeiras e coivaras para mais de metro, não era de se duvidar. Não só isso. Havia outros recursos!
Dentro daquele corpo, mil capetas brandiam lanças e tacapes. Sua resistência conhecia abismos. Para ceder, bastava um relampear. Era fechar os olhos e socar a vergonha num caritó do rancho. Mas Dorotéia era forte, aliás, era mulher e meio no desiderato de superar obstáculos.
Pois bem! Naquele dia, almoçaram rapidinho. Não havia tempo para conversas. O arado e a terra aguardavam-na. Acebaldo rabiscava-lhe o olho. Getúlio, Cosme e Dodô acompanhavam a mãe pela manhã. À tarde, estudavam. O restante da prole ficava em casa, formando barafunda, cagança e aporrinhação para quando a mãe chegasse do roçado ao anoitecer.
Acebaldo vivia de empreitadas de pouco futuro. Dentre outros bicos, catava lenha e caçava. Dentro do mato, era homem doido, trincando dentes e apostando que daria golpe certeiro em caça grande. Arrasta-la-ia mato afora até o pátio da casa, para Dorotéia ver que sua eficiência ia além do imaginável. Idéia antiga, era dos que, por dentro, mais se parecia com índio.
“Duvido que exista algum bicho desse mato, quanto mais enorme de dar medo, ou garantidor da subsistência da família”, pensava Acebaldo, embora não perdesse oportunidade de prometer o feito. Ele não jogava utopias no lixo. Precisava de bengalas para viver e acreditar na sorte.
Um quarto de hora andado. Dorotéia parou para beber água na fonte, domando a solidão e o calor do corpo. Água limpa, colhida na folha de taioba. Debruçada em direção à fonte, correu-lhe doce quentura, como sentira pela manhã. Mas ali, como por encanto, o rosto enrubesceu. Afloraram olhos mágicos, tez resplendente, fisionomia sensual. Mirava os seios túmidos e doirados refletidos no espelho d'água. Orgulhosa, disse baixinho: “São lindos!” Não era narcisismo. Ali estavam os mais belos da região!
O pecado mandou aviso. Ela se manteve indiferente, mas deu asas ao sonho. Os filhos não desmereceram suas belas maçãs. Bem abrigada sob a encosta de flora exuberante, banda noruega do caminho, bem mais assombreada que a outra, afastou vestido e sutiã. Em seguida, apertou levemente os mamilos com os dedos, acompanhando o movimento refletido n'água, locupletando-se de luxúria.
“Ah, que besteirada é essa!”, pensou, lançando mão da taioba para atirar água nas partes íntimas, refrescando-se. Daí, amansou-se da montanha de desejo. Não seria naquele momento que a dança ritual explodiria em ais. O refrígero mineral aprumou-a, interrompeu o frenesi. Partiu para a roça, onde gradearia o solo para dar-lhe sementes no dia seguinte.
Ela perdia o viço na poeirada. Só emergia de si mesma ao soltar sucessivos aboios: “Eia, menina, eia!”, levando a égua adiante no manejo da terra. Então, o rosto brilhava de formosura.
Naquele dia - eta mulher arretada!- era sensação pura, poeira, suor, sol nas ancas, na bunda torneada, nas canelas, nas coxas peludas e no rosto. Predicados que tantos convites formalizaram para que fosse morar em São Paulo. Dorotéia lindava com o gozo a cada passo e grito, a cada lembrança e sonho perturbador. Pela primeira vez, dava de comer a pecado tão cheio graça. O corpo se energizara. Necessitava dar vazão às ânsias reprimidas
À tarde, ao retornar, perturbava-a o príncipe encantado. Ele estaria na fonte; ela esqueceria as atribulações por um instante. Escorregando sobre a rampa íngreme, encontrou abrigo na frescura do chão alfombrado. O crepúsculo tirara claridade à nascente. Ela já não divisava os seios com clareza. E o príncipe, que nada revelaria do que acontecesse ali? Dorotéia se remexia, mode lacraia na cinza. Um lado dizia não; outro, dizia sim. E o sangue dos índios kariris, paiacus, tocarubas e surucus? De súbito, conscientizou-se de que nada daquilo era coisa sua. Impulsos transcendentes levaram-na ao coração descompassado e à alma confusa, diante das bisavós devorando secundinas e cordões umbilicais cozidos. Algum europeu evitara precipícios!
Chegara apertando coxa com coxa, mãos na cintura em bailado de coreografia sensual, cheiro de fêmea no cio. Roncava desejo; atiçava seu príncipe a tirar-lhe a calcinha. Foi atendida. Seus dedos, nos de Dorotéia, arriaram a peça íntima. Após, sentou-se na areia, rogando-lhe um abraço. Seus braços fecharam-se sobre o próprio corpo e se sentiu apertada pelos do príncipe. Delirava! Nem parecia a Dorotéia das obrigações. Agora era Dorotéia de Deus, da Criação, da Natura!
Fazia mês e meio que o marido se preocupava com o tal bicho enorme. Por isso, a quantidade de sonhos; não parava de sonhar! Olhos cerrados, dizia ao príncipe:
"Vamos, sou toda sua! No seu mergulho, iremos juntos ao paraíso. Não pare, vamos, galope! Suas mãos fortes, seus músculos rijos... Vamos, toma-me por inteiro!"
Solenidade pura, Dorotéia tratou com inacreditável decência o soquete de feijão preso aos pés, untado de banha. Dedilhando os mamilos, idéias atiradas no mar das simbologias do inconsciente, pedia ao príncipe que a envolvesse toda, possuindo-a com volúpia e vigor.
Ao fim, que viagem fez Dorotéia agarrada àquele príncipe de fumaça, como erva - de-passarinho dominando árvore robusta!
Relaxada, não tardou a divisar o rancho e a filharada, a tempo de ver Acebaldo moqueando um gambá. Ninhada à volta, um que outro jogava adivinhação sobre o jantar. Naquela noite, Dorotéia permaneceria com os olhos em descanso, sem que os globos variassem em torno de nortes e buscas. Ela gostava de tentar tirar leite de vaca morta; naqueles fundões, os prazeres eram raros. Por muitos anos, fez-se parideira exemplar. Todo o resto ficava por conta da imaginação, que lhe proporcionava viagens de puro algodão doce. Após arrancar a caça das mãos do marido, lançou anúncio, sem dar explicação.
- Quem engorda, o gato come. Jantaremos ensopado de gambá com banana verde!
Ouviram-se vivas e a noite se foi como as outras: neutra, nem triste, nem alegre.
Essa e outras histórias correm pelo sertão de boca em boca. São causos anunciando que as mulheres romperam barreiras, enquanto os homens caçam, pescam e dormem, como se venerassem tradições indígenas residentes em algum lugar do sangue, da memória ou da alma.
Sabe-se lá onde!


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