sábado, 12 de setembro de 2009

O TEXTO BÍBLICO

Nos confins do Ceará, Veneraldo, Dorcelina e seis filhos sobreviviam da agricultura. Fazia meses que não chovia. Da última precipitação, não restara sequer a lembrança.
Veneraldo passava o dia pensando no seguinte, olhos no crepúsculo pressagioso, pés sobre o solo esturricado. Não havia pior miséria, do que ver os filhos e a mulher famintos, transformados em chocalhos de ossos vivos.
Dia sim, dia não, trovejava ao entardecer nos fundões do leste, onde nuvens pesadas alegravam a alma. Era só promessa. Noticiando chuva, as cigarras estardalhaçavam seu canto. Era alarme falso. Também os insetos deliravam ao rigor da canícula perversa. Veneraldo acreditava no coaxar da saparia. Entretanto, onde sapo, onde brejo, se tudo virara um só sequeiro? Manhã seguinte, o sol estendia seu manto causticante sobre os homens, sobre as plantas, sobre a terra e as ilusões.
Certa tarde, Dorcelina não retornou da cacimba. Pai e filhos caminharam em procissão de reza pura durante horas, na crença de que a mulher se acometera de algum mal. Que nada! Do que ouviram, Dorcelina abandonara a família na garupa do jegue de Zé Fadinho, em direção a um pau-de-arara destinado à cidade grande. Frustrados, retornaram praguejando o mundo. Fazer o quê, senão excomungar a desonrada desertora?- Pensara Veneraldo, constrangido diante dos filhos, imaginando como viver sem as costelas da mulher. Os dias passaram. Só o mandacaru mantinha-se de pé nos arredores do casebre.
Numa noite de lua cheia, as crianças cantavam modinhas. Desajeitadas, cirandavam e riam. Ao fim, recolheram-se. Veneraldo comoveu-se. Não lhe passara a idéia de que tamanha miséria concedesse espaço ao canto, ao riso, à felicidade. Resolveu procurar depressa uma solução. Sentira o quão dificultoso fora às crianças realizar simples dança de roda. Não sofreriam mais. A subnutrição fazia e desfazia de seus corpos esquálidos. Não mais comeriam calangos e ratos, mesmo porque estes já rareavam no estéril cenário da seca. Tampouco saciariam a sede nas águas salobras, turvas e fedorentas das terras do Genivaldo da Otília, que anunciara intenção de botar preço nas latas de vinte litros. Fugir? Para onde? Veneraldo rompeu a noite lavrando projetos. Olhava para o céu, rezava e pedia solução. Até que deu um estalo! Sem mulher, sem chuva e sem saída, a morte seria a melhor dádiva. As crianças não se importariam de ir para o céu mais cedo. Seria a salvação, pensou, diante dos poucos pecados apurados durante a vida.
Pela manhã, convocou as crianças para dizer-lhes que a solução seria procurar refúgio no céu. Lá encontrariam o mínimo para vencer a eternidade: farinha de mandioca, rapadura e água limpa. Orozimbo, o menor, lambeu os beiços; Serena torceu-os, com ares de dúvida; Querubim manteve-se estático, olhos fixos no rosto do pai, imaginando a fantástica viagem divina; Evanildo coçou o queixo, achando excelente a saída; César idealizou viajar para a Capital, onde, segundo diziam, jogavam leite e mel nas lixeiras. Veneraldo afirmou, porém, que a morada do capeta era justo na Capital, ao que César logo anuiu. Marinalva, a mais velha, com 13 anos, detestou a opção paterna; contrariava ensinamentos bíblicos. Passavam por uma provação e, se tentassem contra a vida, o destino não seria o paraíso celestial, mas os caldeirões do inferno. O pai e os irmãos olharam-na surpresos, pois Marinalva não se dava bem com as orações. O pai a obrigava à leitura de trechos da Bíblia, por ser a única alfabetizada. Ela disse, ainda, encontrar-se no livro sagrado a maldição pesando sobre os que põem cobro à vida: Deus os mandaria de volta à Terra em forma de bichos. Veneraldo pediu que ela mostrasse onde estava a prescrição do castigo. Marinalva folheou o livro, parou numa página e leu: "Aquele que desistir voluntariamente de viver, pretendendo as delícias do paraíso, encontrará as portas do céu fechadas, retornando à Terra em forma de bicho". Foi o bastante para desistirem da idéia do suicídio. De repente, trovejou forte; Marinalva alertou ser mandado de Deus, renovando as esperanças dos descrentes. Veneraldo sentiu arrepios; àquela hora do dia, não era comum trovejar. Ao demais, o estrondo se dera no momento imediato à leitura do trecho bíblico. Marinalva fechou a Bíblia e se aquietou em reservada satisfação. Sucumbira o projeto absurdo do pai!
Daquele dia, decorreram quatro meses. Veneraldo, até ali, enterrara cinco filhos, todos mortos de inanição. Agora, Marinalva enterraria o pai que morrera de fome, tristeza e desesperança. Não suportou o suplício. Sepultado, ela se sentou na soleira da porta e chorou. Convenceu-se de que o falso texto bíblico lido ao pai e irmãos continha verdadeira e severa sentença. Mas naquele momento seu descortino não alcançava solução diversa da indicada pelo sofrido homem.
Já era noite. Um gemido ecoou pelo descampado sertanejo. Uma velha faca, usada para cortar cactos, alimento que lhes restara na lavoura da miséria, rompera o coração da jovem.
Dia seguinte, enquanto chovia torrencialmente, uma cascavel refugiava-se na desolada tapera, junto ao corpo da menina-moça.

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