domingo, 27 de setembro de 2009

O DESPERTAR DO MENINO


Era conhecido como Toquinho, alusão ao tamanho e à idade, em contraste com a gente adulta das carvoarias. Talvez nem lembrasse do nome de batismo. Acostumara-se ao apelido.
Desde cedo, rodeava os fornos montados nos sítios e fazendas do interior do Estado do Rio de Janeiro, envolto na negritude do pó de carvão. Era como tantos outros adolescentes espalhados pelo Brasil. Sofria as agruras e reveses inerentes à atividade laboral, percorrendo as “praças” para servir aos senhores gananciosos.
Representava instrumento de carne e osso, jogado ao léu pelos infortúnios da vida. Muitos enriqueciam às custas da mão-de-obra infantil; pagavam baixos salários ou retribuíam o labor por alimento superfaturado. Quase uma relação escravagista.
No rastro da miséria, sem a justa recompensa, convocavam-no a tarefas sobrecarregadas.
Não descansava o necessário ao abrandamento da fadiga. Atividade ininterrupta, acentuava-se ao se fecharem contratos com estradas de ferro, para alimentação das marias-fumaça, ou siderúrgicas, grandes consumidoras do produto.
Começava com o assentamento dos carvoeiros na mata, munidos de foice e machado. Após limparem o terreno, derrubavam e desgalhavam as árvores. Poucos dias após, secas as folhas e galhos, ateavam fogo nas coivaras de adrede arrumadas. Finda a etapa, partia-se para o corte da lenha chamuscada, amontoando-a em pequenas toras. Quando não em lombo de burros, os meninos faziam o trabalho de formiga, transportando-as para a praça, onde se procedia à queima nos balões. Via-se, então, Toquinho arrastando pesadas peças, visando o rudimentar processo de carbonização.
Versátil, ele se qualificara para quase todas as etapas, desde a colheita e limpeza da matéria-prima, passando pelos balões, até a fase da queima e depuração final do produto.
Trata-se o balão de uma engenhoca com mais ou menos seis metros de circunferência, exigindo habilidade na sua construção, pena tornar-se inexitosa a destinação. Mas aquela gente não errava; o aprendizado acompanhava-a desde a infância.
Primeiro, aproveitam-se as toras menores no preparo do funil, com cerca de dois metros de altura, no meio do que se constituirá o "balão". Ao seu redor, empilha-se a lenha em sentido vertical. No centro fica a abertura denominada "chaminé central". Lança-se, por ali, o fogo que queimará as toras.
Amontoada a lenha, folhas e capim seco envolvem-na, enchendo-se os vazios. Após, faz-se um revestimento com terra. Estará pronto o "balão" para receber fogo.
A queima é lenta, para não perder o trabalho. Leva de dois a três dias. A vigília do balão é obrigatória; tornando-se intenso o fogo, coloca-se pela chaminé pedaços de lenha, reduzindo-se o poder de queima sobre a madeira destinada ao carvão. Denominam-se esses acréscimos de "comidas do balão".
No início, a fumaça é densa e negra. Ao tornar-se azulada, a queima está finda. Aí se afoga a caieira, isto é, tapa-se a chaminé e se aguarda a extinção das brasas. Em seguida, separa-se a terra do carvão com a peneira. O produto é ensacado no local e transportado no lombo dos burros em direção à cidade ou à estrada, onde caminhões ou carroças o recolhem.
Toquinho dominava a arte da carvoaria. Com quatorze anos, domava como ninguém a insurreição das chamas com as "comidas do balão", vencendo, assim, o excesso de fogo.
Abandonado, Toquinho ficou órfão aos seis anos. Sozinho, morou com um casal, cujo marido era carvoeiro. Com a morte da mulher, o menino, com doze anos, acompanhava-o ao trabalho. Foi assim que aprendeu a profissão.
Ele vivia no mato, ao lado de homens rudes, sem nenhuma instrução formal. Moravam em casebres de pau-a-pique, cobertura de sapé. Aos quatorze anos, viu seu protetor morrer picado por uma jararaca. Outra vez sozinho, o sonho se restringia em adquirir mais habilidade como carvoeiro, pois queria sobreviver. Não fazia outra coisa; sequer assinava o nome. Aproximava-o dos civilizados a fé em Deus. O resto, coitado!
Requisitavam-no bastante para o serviço, devido à responsabilidade demonstrada junto às obrigações, em especial no tocante aos "balões", à noite, evitando a violência do fogo. Ao demais, não ingeria bebida alcoólica. A maioria dos carvoeiros gostava de uma cachacinha. Como seria diferente, mergulhados naquela atividade desgastante e desumana?
Os homens não mudavam. Toquinho carvoejava para usinas, marias-fumaça e fábricas em troca de salário indigno. A exploração atingia seu ápice, embora a rijeza das leis, no tangen-te ao labor de menores naquele tipo de atividade lesiva à saúde. Eram vãs as sanções ameaçadoras. Fazendeiros e sitiantes não temiam o regramento jurídico, tocante às proibições e punições.
A lenha esfumadora dos sonhos de Toquinho era a que fornecia luz e calor aos sonhos dos senhores da elite.
Seus pés imitavam os negros pés da escravidão sofrida: ambos pisavam espaço limitado,sob a vigília dos grilhões. Toquinho devia ao armazém da fazenda; esse fato frustrava seus an-seios. As ameaças aterrorizavam as tentativas de fuga. Eram dívidas impagáveis, obrigando os carvoeiros a permanecerem sob o jugo das capatazias desumanas.
As denúncias sucediam-se na imprensa. Sobre o tema, os políticos falastrões da República preferiam o silêncio da omissão. Tudo terminava em fogo de palha.
O corpo de Toquinho não se limpava no intervalo da noite para o dia. O encardido re-crudescia para o sujo, manchas escuras, numa transmudação desagradável.
No suceder do fumo no forame, seguia Toquinho analfabeto, subnutrido, triste, desamparado, sem vontade própria, bicho falante arraigado na faina protagonizada pela exploração.
Entretanto, da mata ceifada sem controle, donde se abatia a riqueza das florestas em favor e a mando de meia-dúzia de depredadores, Toquinho via surgir, embora debilmente, uma estranha luz, que ele imaginava ser a da liberdade. Mas, dos que fariam algo por ele, nada se esperava; todos manejavam a mesma rede opressora sobre a fraqueza dos meninos carvoeiros. Poucos sabiam que o país comemorara quinhentos anos de seu descobrimento. Uns afirmavam que só conheceram anos de violência. O que dizer?
Naqueles fundões do Brasil esquecido, Toquinho soubera, através de um velho carvoeiro, que no tal Congresso Nacional havia muitos fazendeiros, donos de enormes extensões de terra; havia deputados e senadores que, embora não fossem proprietários, mantinham estreitas relações com os coronéis da terra, graças aos quais conquistavam seus cargos eletivos. Cientificara-se, também, de que os sucessivos governos avalentoavam-se contra pobres e miseráveis, porém, contra a aristocracia rural, agiam com tibieza repugnante. O velho falara mais coisas ao menino, que se espantava a cada esclarecimento e denúncia, embora pouco entendesse sobre Congresso Nacional, governos, latifúndios improdutivos, elites e aristocracia rural. Mas captara o bastante para saber-se perdido naquela terra de ninguém.
Certa tarde, deambulando pela mata, impressionou-se com uma cena que mudou com-pletamente sua vida; mudou seu modo de ver e sentir o mundo. Algumas jovens, filhas e parentes do dono das terras, passando férias na propriedade, banhavam-se numa cachoeira em trajes sumaríssimos, a maioria delas com o seio desnudo, algumas em pelo.
Toquinho despertou! Seu sangue ferveu! Sua vontade transcendeu aos sentidos da sub-missão que, até ali, atendera com tanta subserviência.
Em diante, só duas saídas norteavam-lhe os sentidos: ou ganharia o mundo na carroceria de um caminhão, rumo à cidade grande, de onde ouvira maravilhas, ou, numa daquelas madrugadas de solidão amarga, multiplicaria os ventiladores de uma carvoeira, com os buracos virados contra o vento, atiçando o fogo do "balão", e mergulharia de cabeça na chaminé central! No dia seguinte, o carvão de seu corpo se confundiria com o vegetal. Interpretariam sua ausência como a debandada de mais um moleque devedor e fujão. Para Toquinho, depois do que vira, pouco lhe importariam as conclusões a que chegassem sobre seu sumiço.
É como ainda acontece com os meninos carvoeiros, quando algo de extraordinário mexe com seus corpos e suas almas.

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