domingo, 27 de setembro de 2009

A GRASNADELA DO CORVO


João ficara. Mulher e filhos foram ao povoado, visando buscar vaga na frente de trabalho aberta pelo governo. Ardendo em febre, João não tinha condições de acompanhá-los. A enxada quase lhe tosara o dedão do pé. A ferida desandara em séria infecção.
Lá fora, o sol inclemente a tudo esturricava. Sequer uma brisa aliviava a secura do ar, embora João dela não necessitasse, pois espantava os tremores causados pela febre sob velho cobertor. Sobre a banqueta, ao lado do catre, moringa, caneca e comprimidos compunham o retrato da natureza morta de suas desgraças.
A tarde avançava. João já consumira um punhado de velhos comprimidos. Contudo, não aplacaram as dores do moribundo.
A ferida latejava. Enorme íngua instalara-se na virilha.
Um silêncio de tempo finda pairava em derredor, edificando mórbida impaciência no acamado. Preocupava-se com a demora da mulher e filhos, pois a noite não tardaria. Pensou em acender a lamparina, mas desistiu; decerto, chegariam antes do anoitecer. Enganara-se. A tarde fora rápida e o crepúsculo, fugaz.
Era dor intensa e contínua, provocando João a providenciar emplastro para a ferida e procurar ajuda. Febre e dor rompiam-lhe as resistências. Fora cabeçudo: o dia passou e se garantiu, apenas, na promessa muda de algumas aspirinas vencidas.
Noite fechada, determinou-se a acender a lamparina. Ao descer do catre, constatou a incapacidade de apoiar-se sobre a perna lastimada, cuja dor lancinante levava-o a sérias con-torções. Sentou-se. Não acreditava no que acontecia. Destemido, trabalhador e irrequieto, de repente, viu-se entrevado.
Que fazer naquela escuridão? Sem lhe dar tempo para respostas, misteriosa grasnadela partiu dos escuros próximos à casa. Não era diferente da que ressonara tantas vezes pelas caatingas no seu tempo de menino, quando se agarrava à saia da mãe, pressupondo tratar-se de espírito do mal, ameaçando sua família naqueles rincões desertos. Mas um homem naquele estado não tinha condições sequer de intimidar-se com fantasmas.
A dor monopolizava e não permitia outro tipo de medo que não se ligasse às suas próprias causas. De fato, o temor concentrava-se na possibilidade de a ferida arruinar. Das almas penadas, safar-se-ia; mas da ferida, não sabia como. Ao demais, tratava-se de um corvo, apenas um corvo. De súbito, indagou sobre o que fazia um corvo perdido naquelas paragens. Bateu-lhe confusão, decorrente mesmo da debilidade físico-mental, tornando precário o exercício da razão. Em consequência, imaginou tratar-se o grasnar de aviso funéreo. Afinal, a seca levara para longe todos os seres vivos da região, menos os homens e suas crenças nos mistérios do além.
Findas as lucubrações pertinentes à ave, arrastou-se até o fogão, onde achou fósforo e lamparina. Doía-lhe todo o corpo, tomado de extrema sensibilidade. Sentia frio, estranho frio. Com imensa dificuldade, sustentando-se na perna esquerda, atingiu o intento. Tímida luz propiciou-lhe locomoção mais desenvolta. A febre provocava-lhe náuseas e tontura, não lhe permitindo acender o fogo e preparar o emplasto. Como há pouco anoitecera, calculou que a mulher chegaria a qualquer momento e, então, cuidaria de fazê-lo.
Deitado, gemia. Não dobrava mais a perna. O mal recrudescia. Lá fora, cessara o grasnado. Nem um pio; sequer um farfalhar de folha seca. A natureza esvaziara-se diante da estiagem prolongada. Até as lagartixas debandaram.
A vida inteira de miséria multiplicara-lhe a revolta. Naquela noite, porém, a intensidade febril subtraíra-lhe até a legitimidade de revoltar-se contra as necessidades prementes.
Piorava seu estado geral. Lembrou-se de orações recitadas na infância. Elevou preces a Deus; desculpou-se pelos anos de negligência com os preceitos bíblicos. Rogava ajuda, penitenciava-se, orava e foi por aí durante algum tempo, até que a febre abrisse a porta da alucinação. Em diante, a imaginação construía-se ao custo de terríveis cenas. Curtos espaços de sono levaram-no a mergulhar em pesadelos indescritíveis.
O tempo passava. O quarto transformou-se num inferno. Rondavam-no animais estranhos, verdadeiros monstros ameaçando destroçá-lo com suas garras e dentes afiados. Noutros momentos, aves negras e gigantes, bicos pontiagudos, atiravam-se contra seu corpo para, em seguida, pulverizarem-se em mágico sumiço, dando lugar a serpentes brotadas das paredes em sua direção. Pedia pelo amor de Deus que o deixassem em paz. Não adiantava repetir-se em orações, pensava. Era castigo divino a cobrar-lhe pecados. Mas que pecados, se não os tinha? - Chegou a balbuciar.
Nos pequenos intervalos da intermitência convulsiva, pensava no sofrimento da mulher, a quem prometera vida menos amarga. Entrava ano, saía ano, era danação sem fim, seca desgraçada, enquanto diziam que, sob o solo, um mar de água doce aguardava poços artesianos prometidos pelas autoridades. Mas quem era essa gente que nunca dera as caras por aquelas bandas? - Protestou. Diante da agonia, um filme de miséria mostrava sementes esterilizadas pelo tempo seco; a água salobra chegada no lombo dos jumentos ou na cabeça da mulher; os teiús dos tempos imemoriais. Agora, tudo era fim de mundo; mal se conseguia um calango. Até os ratos debandaram. Sobraram cactos! Entregue às recordações, concluíra que sua mulher era uma heroína. Suportava tempos ruins, diante do sofrimento dos filhos, sem dar importância aos paus-de-arara acenando a boa-vida das cidades grandes. Sua esperança era maior que as promessas.
O inchaço da perna era péssimo sinal. O dedão gangrenara. Já não sentia o pé. Restava procurar socorro na casa do compadre Raimundo, a poucas centenas de metros dali. Mas como, se quase não conseguira acender a lamparina? E os tremores, o delírio, as dores, as visões alternadas de instante a instante? E como andaria o jumento àquelas horas, sem ração e água durante o dia inteiro? Mesmo combalido, com relances alucinatórios, arrastar-se-ia até o animal. A escuridão abissal recebeu-o no terreiro. Já não ficava de pé. Tateou uma vara para apoiar-se. Encontrou-a, mas em vão. Pensou na lamparina, mas como retornar? Rastejou em direção ao potreiro chamando pelo animal que não dava as caras. Constatou que se evadira. Praguejou-o, mas logo lhe deu razão. Com sede e fome, escapara. Não seria diferente.
Tudo conspirava contra João. Ruim lá dentro, pior cá fora.Tentou retornar ao casebre. Inútil. Enfraquecera. Recostou o corpo na cerca para recuperar-se.
Milhares de estrelas dançavam nos seus olhos. Naquela noite, pareciam-lhe multiplicadas, algumas muito reluzentes. De repente, a dor cedeu. Instalou-se profunda paz interior, levando-o a percorrer o firmamento, como se fora enorme ave.
Não demorou, um barulho de carroça despertou-o de sua viagem fantástica. Um risco de esperança tomou-lhe a alma. Sentia-se melhor e o socorro chegara! Uma voz gritou seu nome. Reconheceu-a. Era Raimundo. João respondeu debilmente. Havia mais alguém, pois ouvia conversa. Ao aproximar-se, Raimundo acocorou-se e lhe perguntou o que fazia deitado no terreiro. Arrastando as palavras, falou do ferimento, da febre, da dor e da impossibilidade de locomoção. Sem perda de tempo, o amigo e os dois acompanhantes, soldados da força pública, afastaram-se da carga que traziam e levaram o enfermo para o casebre, onde constataram seu estado desolador. Os soldados entreolharam-se, permanecendo mudos. Para prestar-lhe socorro, necessitariam da carroça. Foi aí que Raimundo revelou: sua mulher se envenenara, levando consigo os dois filhos. Estavam ali com os corpos. Ela deixara bilhete pedindo-lhe desculpas. Segundo Raimundo, ela não conseguira vaga na frente de trabalho.
Sua ação fatal moveu-se pelo desespero.
- Mas seja forte, João! A vida continua! Ainda há muito chão pela frente! Acreditemos no futuro! - Disse-lhe Raimundo.
Talvez João não ouvisse a recomendação de Raimundo. Seus olhos semi-abertos já não brilhavam. Apenas uma lágrima luzia no rosto duro, refletindo a tênue luz da lamparina.

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