segunda-feira, 21 de setembro de 2009

RECORDAÇÕES

Passava da meia-noite. Manchas argênteas esparramavam-se na sala. Eram folhas, galhos, símbolos estranhos, figuras de chumbo espalhadas no chão e na parede, resultantes do luar rompendo nuvens pressagiosas.
Nunca houve atraso tão elástico. Afinal, Madalena confirmara a visita.
O martírio recrudescia a cada minuto. Lá fora, um que outro carro aligeirava-se barulhento. De repente, um táxi defronte ao edifício! Seria ela? Não, apenas um bêbado resmungando por um amor ausente. Em diante, nenhum outro veículo estacionou por dali.
Ah, espera tensa, ruindades registrando sentimentos amargos!
Havia certeza de sua chegada. Traria balas de coco para o filme das 22 horas. Porém, a frustração desajeitava-me, cutucando-me forte com o correr das horas.
Nos instantes do silêncio dilatado, imaginei que os carros não passariam mais; cães e gatos sossegariam; eu me entregaria aos zumbidos junto ao travesseiro. Logo, porém, uma buzina gritava, latidos ecoavam, transeuntes conversavam e felinos atendiam à libido.
Meus olhos grudavam no relógio, sentindo a lerdeza dos segundos na alma dos que esperavam com sofreguidão. Os relógios são perversos com os solitários.
O que fazia Madalena naquela noite de ansiedades? Escolhera, tantos anos depois, reservar-se aos meus sentimentos para organizar dúvidas em minha alma? Faria isso comigo, seu dileto companheiro? Não, não faria! Ela não era uma jovem encantada com firulas do coração, para brincar com relações maduras. Seria recaída. Ademais, ela conhecia minha repulsa a esse tipo de comportamento. Dizia-lhe que a idade não comportava certos jogos da alma.
No fundo, acreditava que Madalena não tinha a exata compreensão da falta que me fazia. Culpa minha, qum sabe, mas meu jeito era assim. Não demonstrava minhas intensidades amorosas. Coisa de machismo besta de que me arrependo muito, mas que me acompanha desde rapazote. Se me comportasse diferente, ela pensaria que eu não conseguia viver sozinho, isto é, que ela integrava meu mundo. Eu evitava esse entendimento, não sei porquê.
Fazia-me durão; minha realidade interior não emergia induvidosa do meu gesto e da minha palavra, quando Madalena penetrava meu pequeno universo, sorriso aberto e franco, trazendo luz e alegria ao meu ambiente, seduzindo-me. Como fui tolo durante esses anos!
Jamais exteriorizei minha felicidade. Fui uma besta! Certos homens aguardam o segundo tempo para arrependimentos e mudanças. Que ilusão!
Para ela, fui frio, sem emoções, indiferente à palavra e ao carinho. Quiçá, um ingrato! Na verdade, meu interior não funcionava assim. Ela era a única amiga, meu porto e verdadeiro amor. Com a idade, a memória atulhou-se de lembranças sobre fatos e acontecimentos marcantes.
Então, já não era mais moço. Meu relacionamento traduzia-se por sentimentos maduros, alguns mais resistentes que o próprio amor.
Fazia-me falta o companheirismo. Pouco vivíamos na relação de amantes. Sublimáramos o sexo em vivências múltiplas e compensações alicientes. Com a idade, é resoluta a exigência de ter-se alguém ao lado, para transcendentalizar o amargo imposto pela solidão. Chega o momento de reverenciar a vida em tom de experiência. Só isso. Nesse trânsito, são poucas as alternativas, sem esquecer do perverso egoísmo embrutecedor da alma. Mínimos detalhes transformam-se em problemas enormes. Alguns sonhos não se realizam por picuinhas alimentadas contra o parceiro. Sofrerão ambos, devido às posições malbaratadas.
Na juventude, as portas se abrem às aventuras. Mas me reservava e não mudaria, no que tange à forma de ser e ver o mundo, em especial o jeito de conviver com Madalena. Não possuía o dom de mudar do dia para a noite. Jamais extravasava. Ela não me sentia de maneira diversa, senão da forma como eu era e sempre fora. Seria estranho para Madalena, isto sim, a mudança repentina do meu caráter. No fundo, eu acreditava no seu gosto por certas peculiaridades do meu conduzir. Não o fosse, ela teria me abandonado há tempo. Ao demais, nunca imaginei reformar minha vida, com simples alteração de personalidade. A realidade mostrava minha alma sedimentada, e Madalena, mulher inteligente, conhecia esse particular.
Naquele dia, se chegasse, mesmo tarde, eu passaria um mata-borrão nas minhas lamúrias. Madalena constituía-se na jóia mais preciosa da minha vida. Mas ela não chegava.
Os ponteiros do relógio transtornavam-me; o menor tripudiava-me sem freios, ao emplacar outra hora de desilusão. Que noite vazia! Madalena nunca endurecera o jogo; na hora marcada, ei-la chupando bala de tamarindo ou de mel. Ao abrir a porta, estampava largo sorriso de alegria. Por que, ao menos, não telefonou?
A decepção trouxe a insônia. Passeei com os olhos sobre a cômoda, o guarda-roupa, o criado mudo. Os objetos levavam-me ao passado. Perquiria a razão das antigalhas, mimos que, naquela madrugada, faziam-me sofrer. Eram lembranças ardendo na alma. Bibelôs, jarrinhas, flores secas, agendas antigas, porta-retratos, cigarreiras, uma infinidade de presentes recebidos de Madalena, ao chegar de seus passeios. Sempre lembrava de mim.
Aqueles objetos transmudaram-se em mágoas naquela madrugada de ausência. Uma faquinha de madeira, presente de minha avó para cortar papel, quando eu era criança, parecia penetrar-me, lancinando a alma; levava-me à infância, às ruas antigas, aos meus pais, irmãos e sobrinhos, às festas de aniversário na casa materna. Anatematizei todos os objetos; apertavam-me o coração, ao invés de trazer felicidade. Chorei feito criança, um homem de cabelos encanecidos. E os quadros nas paredes? Desalentador!
Madalena nunca faltara sem explicação. Naquela noite, senti o quanto era penoso esperar em vão uma pessoa querida. Mas fechei os olhos.
Pela manhã, tomei café e acendi o cigarro. Reuniria o badulaques que jogaria no lixo! Depois, sairia pelas ruas como cachorro sem dono, até reencontrar outro motivo para sorrir. Minhas cargas pesavam. Havia desalento. Se Madalena troçava, eu pedia que não fosse comigo.
Por volta das oito horas, tocou a campainha. Chegara a triste notícia de que Madalena morrera! Oh, que desgraça! Como pensara mal de minha amiga, minha amada! Eu que imaginara a ausência noturna como forma de fazer-me figa! Que imbecil! Madalena nunca usaria tal recurso, comum aos adolescentes, para perturbar meus sentidos.
Agora chorei sua morte como uma criança. Aos oitenta anos, dizem, não há mais lágrimas. Ledo engano. Chorei por Madalena durante muitas noites, recordando a juventude, a paixão, a amizade e o companheirismo, saudoso das balas de coco, do licor de jenipapo e dos causos antigos que contávamos um atrás do outro. Era a solidão de verdade.
Nos seus setenta e oito anos, Madalena trazia um amor cheio de vida. Isso a empolgava. Morreria apaixonada, dizia. Justificava amor tão duradouro no fato de não morarmos juntos. Ah, Madalena, por que pensavas assim? Um dia cederias, e nem por isso deixarias de me amar!
Ainda pela manhã, reuni os objetos, como me propusera na noite anterior objetivando vingança. Só que não os joguei ao lixo. Retirei a poeira e os recoloquei em seus lugares. A caixinha de música, presenteada há mais de cinquenta anos, levei-a para conserto.
Em diante, meu mundo existe em função de lembranças. Não necessito sonhar com outra mulher. Seria demais para mim!

Nenhum comentário:

Postar um comentário