segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O SEQUESTRADO

Esbocei um pedido de socorro, mas levei um tapa na cara. Decidi pelo silêncio. Os três bandidos estavam armados. Eles queriam dinheiro e eu estava apenas com algumas moedas, que mal dariam para comprar um refrigerante.
- Qual a sua profissão?
Respondi que era balconista. Aos domingos, trabalhava na feira para complementar o salário.
- Por que, então, se veste como bacana? Enganou a gente, seu filho da puta. Pensamos que era filho de um desses caras, donos de mansão de cinema.
- Vocês me desculpem, mas sou pobre.
- O que faremos com esse babaca?
- Dá um tiro no ouvido. Um só e pronto!
- Não, por favor! Minha mãe morre se souber que aconteceu isso comigo.
Pairou um silêncio sintomático no pequeno quarto. Os delinquentes olharam-se, como se quisessem uma resposta a respeito do que fazer comigo.
- Eu vou embora e pronto. Preciso mais que vocês, creiam.
- Ofendendo a gente, seu merda?
- Não, longe de mim falar alguma coisa para ofendê-los.
- Comeremos teu cu, viado de uma figa!
- Não fiz nada de mal para vocês. Enquanto isso, os filhos dos bacanas estão lá fora e vocês perdendo tempo comigo.
- Ele tem razão. Vamos soltá-lo. Mas só logo mais, senão descobrem o nosso esconderijo. Ele pode bater com a língua nos dentes.
- Fiquem tranquilos. Não direi nada a ninguém. Só quero ir embora. Estou com medo. Quase mijando na calça!
- Vejam só! Ele está com medo. Medo de quê? Não te fizemos nada!
Eu via a coisa preta. Eles eram bandidos de verdade. Não riam, não brincavam. Falavam duro comigo, sem qualquer sensibilidade. Houve um momento em que pingou urina, molhando a calça. Era medo demais! Nunca pensei que medo de morrer levasse a situação tão vergonhosamente mesquinha.
Um deles reclamava da infância que tivera; o outro relatou a morte do pai, por falta de assistência médica. Disse que matou o médico que se negara a atender seu pai na policlínica. O outro ficou quieto. Parecera-me que esperavam anoitecer, quando me levariam para longe dali. Não deu outra. Por volta das nove horas, ligaram o carro, colocaram-me vendas e partimos, eu dentro do porta-malas. Deixaram-me numa rua deserta. Só fui saber do bairro, quando pedi ajuda num posto de gasolina. Estava distante de casa, do outro lado da cidade, porém, vivo, bem vivo, dando graças a Deus por não ter levado um tiro. Naquele momento, uma patrulha da polícia passava pelo local. Desceram dois brutamontes e me pediram documentos. Eu não tinha um documento sequer. Minha carteira ficara com os bandidos, talvez para usá-los em assaltos.
- Está sem documento? O que vocês faz?
- Sou balconista de uma loja de tecidos, em Irajá, e trabalho na feira aos domingos. Ajudo em casa, sabe?
- Mas não tem carteira de identidade?
- Tinha, até hoje ao meio-dia, quando me sequestraram.
- Quem te sequestrou?
Contei a história e eles não acreditaram. Riram da minha cara.
- Quem sequestraria um balconista?
- É verdade. Me bateram, me cuspiram, ameaçaram cortar a minha orelha e, o pior: quase "me fizeram". Só sossegaram quando eu disse que era mais pobre do que eles.
- Por que te sequestraram?
- Disseram que eu me vestia igual a um bacana. Poderia ser filho de um ricaço.
- Ora, ora! Como vamos acreditar nessa história?
- Quer saber de uma coisa, sargento? Leva essa cara pra DP. Tenho certeza que sua ficha é do tamanho de um dicionário.
- Boa idéia. Enfia ele no camburão.
Ao chegar na delegacia, recebeu uns safanões do inspetor de plantão, quer dizer, uns pescoções e umas porradas na boca do estômago e na altura dos pulmões. Era praxe. Se não houvesse maldade na entrada, ela viria de madrugada. Seria pior.
- Bandido aqui dentro não tem moleza!
O Escrivão gritou de uma pequena sala:
- Quem é o vagabundo?
- Parece que é o da rua Sargento Ovídio, o caso do estupro.
- Não, não sou esse cara. Estou aqui por engano. Eu sou vítima, me sequestraram, três bandidos, e ficaram com meus documentos. Fui preso no Jardim Conceição, por estar sem documentos.
- Que negócio é esse?
Logo o motorista do camburão contou o que sabia.
- Então, o comandante disse que não acreditava em nada do ele dizia e pediu-me que o trouxesse para a delegacia. Aí está ele.
O inspetor de plantão, cara de poucos amigos, barba de três dias por fazer, olhos vermelhos sabe-se lá de quê, levou o rapaz para a cela, até que se deslindasse o diz-que-diz-que.
- Olá, companheiros?
Esse foi o cumprimento do inocente dirigido a quase uma dúzia de bandidos ali recolhidos.
- O cidadão aí veio pra cá por qual motivo?
- Não sei. Me mandaram para cá, porque não acreditam na minha história.
- Tu também tem história? Para de bobagem. Bandido não tem história; tem é um depoimento sobre o crime que cometeu. Esse negócio de "qual é a sua história?" é negócio pra boiola. Dá uma puxadinha? -Perguntou o desleixado bandido, estendendo uma bagana de maconha.
- Não, agora não. Depois. - Respondeu o injustiçado Pedro Paulo, àquela altura já não sabendo o que dizer, diante da confusão que se formara.
- Olha, cara. Você não tem pinta de bandido. Mas se for bandido, vai ter que me servir logo mais.
- Eu também quero, adiantou-se outro detento, escorado na parede, ao lado da grade, já de "mala" pronta pra viagem.
- Aqui não gostamos de mentirosos.
- Eu falo a verdade. Eu estudo e trabalho. Fui sequestrado por engano e depois solto. Só que ficaram com os meus documentos.
O sherife resolveu chamar o carcereiro.
- Praça, vem cá!
O carcereiro aproximou-se e ouviu:
- Olha aqui, este rapaz está aqui por engano. Parece gente boa. Mas queremos um levantamento, porque se ele for bandido vai com nós logo mais, ou mesmo amanhã.
- Está bem, Nando. Logo que eu tiver o material na mão, trarei pra você.
Pela manhã, chamaram dois detentos. Foram ouvidos e retornaram.Passava do meio-dia, quando chegou o carcereiro e disse para Nando:
- Olha, num primeiro momento, parece que o rapaz é inocente. Até esqueceram ele aí dentro. Ninguém fala em chamá-lo para ouvi-lo. Alertarei o delegado.
Saiu dali e falou com o Delegado, que de imediato pediu-lhe que levasse à sua presença o detido.
- Sim. Então, depois de sequestrado, a patrulinha te prendeu. Lembra o local do sequestro?
- Apanharam-me na Barra, próximo ao Restaurante Lobão. Dali, fomos para um lugar desconhecido, isto é, cheguei com os olhos vendados e saí da mesma maneira. Deixaram-me longe dali, num bairro que nem conhecia.
- O que fazia na Barra?
- Fui levar uns papéis para mamãe. Ela é empregada doméstica na casa de um doutor.
- Sabe o nome dele?
- Dr. Samuel.
- Samuel de quê?
- Não sei.
- Sabe o endereço?
- Sim. Mas só indo lá.
- Demerval! - Gritou o delegado ao motorista da DP.
- Às ordens, senhor delegado!
- Chame o investigador Cardoso e acompanhe o investigando até à Barra. Vê se bate tudo. Se bater, deixe o garoto por lá e volte.
Quando iam saindo na viatura, Pedro Paulo olhou pela janela e gritou:
- Ali, eles estão ali! - Referindo-se aos seus seqüestradores, detidos e algemados entrando na delegacia.
Logo deram meia-volta. À frente do delegado, os três confessaram ao sequestro de Pedro Paulo por engano.
- O senhor nos desculpe, mas sabe como é que é. Tá difícil confiar nas pessoas hoje em dia. Você disse que era inocente. Como comprovar , sem uma investigação? Queremos saber se alguém lhe bateu nas dependências da DP.
- Não senhor, ninguém me bateu.
- Alguém lhe tratou mal?
- Fui muito bem tratado.
- Dormiu bem de ontem para cá?
- Muito bem.
- Tomou café da manhã?
- Sim.
- Nenhuma aspereza no trato do carcereiro, do investigador de plantão...
- Fique tranquilo, senhor delegado, estou inteirinho e feliz, sabedor que apuraram minha inocência.
- Fiz essas perguntas, porque costumam sair daqui dizendo que foram maltratados, enrabados por detentos, passaram fome e sede. Aqui comigo não tem disso! Preso meu, se reclamar, é injustiça! Vai com Deus, meu filho. Estamos às suas ordens. Quando precisar da gente, sabe, não? É só chegar.
Pedro Paulo saiu dali levando algumas dores disseminadas pelas costas e estômago. O inspetor de plantão não deixara por menos. Estava sem comer há quase 24 horas e a um passo de ser submetido a uma sessão sexual, por parte de alguns detentos. Se dissesse ao delegado alguma coisa, de certo levaria mais algum tempo na delegacia prestando informações, sem hora de chegar em casa, até que o submetessem a exame de corpo de delito para apurar as tais dores.
- Viver é muito bom, até o momento em que a polícia não cisma com a tua cara. Daí em diante, o pobre bicho dá início a uma via crucis, que só termina quando Deus ou o Diabo intercedem.







HOMENS E BOTOS

A passeio na capital do Amapá, naveguei pelo Rio Amazonas, iniciando roteiro na hidroviária de Santana.
A ausência de hidroviária na Capital deve-se ao fato de o Rio Amazonas, ali, ser de pouco calado.
O destino era Santarém, no Pará. Dirigi-me ao camarote, onde, além de frigobar, havia local para atar rede, cama e ar condicionado. “São Francisco” era o nome do barco. Recebia em torno de cem passageiros. A paisagem deslumbrante da floresta, das ilhas, das várzeas, dos búfalos, das aves, enfim, tais cenários não tinham preço.
A primeira parada foi na hidroviária de Almerim. Ali, implantaram o Projeto Jari Celulose e Jari Caulim. Tudo começou com o Projeto Agropecuário do Jari, por iniciativa do norte-americano Ludwig, agora tocado em pequenas proporções por um consórcio nacional.
Seguindo viagem, o barco atracou na hidroviária de Prainha, cidade do interior do Pará, com cerca de 3.000 habitantes. Ainda no trapiche da hidroviária, observei as pernas de uma senhora debruçada no parapeito que dá para o leito do rio. Pareciam cicatrizes de arranhões profundos. Indaguei-me sobre o que teria acontecido com a jovem mulher. Uma onça, uma cobra com suas presas, um jacaré ou algo que o valha? A curiosidade me picou. Não deixei para depois.
- Olá, senhora! Sou de São Paulo e estou a passeio pela Região. Como muitos a bordo, também desci para e conhecer o lugarejo.
- Seja bem-vindo.
- A senhora reside aqui?
- Sim. Eu, meu marido e dois filhos.
- Ah, vocês devem ser muito felizes morando nesse paraíso, mesmo diante dos perigos da selva.
Ao que a Senhora emenda:
- Não só da selva, mas também os perigos do Rio Amazonas.
- Acredito que vocês, ribeirinhos, estejam precavidos contra as emboscadas da selva e do rio.
- Sim, estamos. Mas, às vezes, não depende da gente evitar que aconteçam certas tragédias, como foi o caso acontecido com meu primo, que perdeu uma perna devido a uma mordida de jacaré, no pátio de casa, quando cuidava das galinhas e dos porcos. Não foi descuido, pois se tratava de atividade do dia-a-dia cuidar dos animais.
- Vejo que o perigo está na rotina dos habitantes da cidade.
- Sim. Veja o senhor que, quando eu era criança, viajando de Prainha para Santarém com mamãe, à noite, enquanto ela dormia, fui para a parte aberta do convés. Dali para o leito do rio foi um pulo. Antes do amanhecer, mamãe sentiu minha falta e se desesperou. Desceu na hidroviária seguinte, na cidade de Monte Alegre. Lá, comunicou o fato às autoridades locais, que providenciaram na imediata divulgação dos fatos às embarcações, via radiofonia, e às cidade ribeirinhas periféricas, para procurar o corpo. Caí na metade do caminho entre Prainha e Monte Alegre. Estávamos a três horas de viagem, numa região conhecida como Caitucá.
- Qual era a sua idade?
- Cinco anos. Na verdade, não fui culpada. Se a proteção lateral da embarcação fosse eficiente, não teria passado no vão e caído na água. Hoje em dia, as embarcações são teladas por determinação da Capitania dos Portos. Durante a noite, tudo fica mais difícil no meio do rio.
Já muito cedo, os pescadores da região iniciaram as buscas nas praias, margens das ilhas, nas proximidades dos aguapés, canaranas, monturos de capim nativo, raízes à mostra dos aningais, manguezais e outros vegetais ribeirinhos.
Um pescador solitário corria às margens à procura de seus matapis, suas malhadeiras, visando colher camarões e peixes, quando escutou um choro vindo das margens, direção a um monturo de canaranas, tipo pequena ilhota flutuante. Dirigindo-se ao local, observou a presença de alguns botos. Eles pareciam me proteger até que chegasse socorro. Evidenciara-se que, caindo na água, os botos me acudiram. Estavam ali, porque os botos tucuxis acompanham os barcos de linha, para se alimentarem dos restos de alimentos jogados no rio. Ao verificarem que eu estava viva, algo que não sei explicar, como de resto ninguém explica, aconteceu. Dizem que o choro da criança é idêntico ao choro dos filhotes dos botos. Aí a única explicação que encontro para justificar a pronta tentativa de salvação a que se dispuseram os botos naquela noite. Lembro-me que não era um só, mas vários, empurrando-me em direção às margens. Alguns puxavam pelo vestido, outros me empurravam pelas costas. Senti que eles faziam de tudo para não deixar meu rosto submerso. O comportamento mudou a certa altura, quando não mais me mordiscavam, ferindo minhas pernas, mas me empurravam com o bico. As lesões na perna causadas pelos empurrões com o bico foram a causa das cicatrizes que despertaram sua atenção.
Interrompi, para perguntar como é que ela sabe que as cicatrizes chamaram a minha atenção, pois ao abordá-la nada mencionara sobre a perna. Ela respondeu que era assim que acontecia com todos os que dela se aproximavam para saber sobre a natureza das cicatrizes.
- É verdade que, durante algum tempo, imaginavam que, mordida por um jacaré, puxei a perna, ficando os arranhões provocados pelos dentes. Mas não foi assim. Na verdade, devo minha vida a um grupo de botos. Respeito-os porque há algo além da nossa imaginação, ligando o ser humano aos botos.
Depois dessa conversa, todas as vezes em que navego pelo Rio Amazonas, a história da jovem senhora me vem à lembrança.


sábado, 29 de agosto de 2009

O CIUMENTO

Zeca Barros roía-se de ciúmes. Mas suportava o tirão, diante dos rabiscos de olhos para sua linda mulher. Disfarça daqui, disfarça dali, aparentava seriedade de zorrilho atolado. No verão, Dolores viajava para o Balneário do Rio Camaquã, onde inaugurava biquínis sumaríssimos. Aí, a coisa enfeiava!
Quando o uso de calça comprida para mulheres se tornou comum, ele quase morreu. Como pedir-lhe para não usá-la? Mortificava-o vê-la desfilando com a roupa grudada ao corpo, exibindo as formas tintim por tintim, despertando a imaginação luxurienta dos homens e, quiçá, de alguma duvidosa.
Ele sabia que ciumeiras abalavam o casal. Sei que ciúme além da conta faz as mulheres enjoar dos homens, pensava. Essa a razão de agüentar o tranco, triste que nem carneiro abichado na guampa.
Na época da anágua, piscava para Dolores, indicando-lhe a ponta da veste interna ressumbrando fora do vestido. Nunca se sofreu tanto, por causa do desgraciado sentimento! Sua alma era um caldeirão de amargores. Avolumava-se a cada decisão de não demonstrar ciúme.
A coisa era tão forte, que até de febre de origem desconhecida ele padeceu. Professores secundários, recebiam muitos amigos em casa. Era raro não aparecer visitas nos fins de semana. Zeca desconfiava até da sombra. Ficava zureta com Dolores, quando os amigos aplicavam-lhe beijos de cumprimento. Reclamar, como? Cairia no ridículo, caso reclamasse de tais manifestações de carinho. Já ele não cumprimentava as amigas com beijinhos. Fazia-o de propósito. Era uma forma de mostrar seu contragosto às intimidades com sua mulher. Não adiantava. Tanto foi que, como a calça comprida, aceitou tais cumprimentos. Ele mesmo passou a receber as colegas com um beijo na face. Nada de três beijinhos, pra casar, como diziam. Nas reuniões sociais, não desgrudava da mulher. Ai se ela conversasse a um canto com alguém! Não dormiria à noite.
Dolores conhecia o marido, mas não imaginava a intensidade do ciúme. Bonita, professora de história requisitada, excelente mãe, dona de casa e amante, Zeca ficava em cima.
Não bastassem os transtornos do cotidiano, Zeca desconfiava que a mulher mantinha relações íntimas pensando noutros homens. Essa idéia tornou-se fixação.
Como acontece, novela tem sempre um galã, o bonitão conquistador, ideal, forte, valente, protótipo do amante mais-que-perfeito, do marido que as sogras desejam para suas filhas. Como não dava aulas à noite, Dolores acompanhava a novela das oito com atenção. Como se diz, era fissurada por uma novela. Zeca não suportava. Certo sábado, após o noticiário, Zeca permaneceu defronte à televisão e acabou assistindo à novela. Pra quê?! O galã, jovem empresário e solteiro, relacionava-se com uma mulher casada. Zeca assistiu justo os capítulos mais quentes, quando o casal se apresentava em encontros ardentes, na cama de casal da infiel. A cara do ciumento esquentou; o coração descompassou; a cabeça era um redemoinho. Naquela noite, fingiu-se com dor de cabeça e não quis intimidades com Dolores. Só cara feia. 'Certamente, ela pensa naquele cafajeste, enquanto o boboca aqui é corneado descaradamente. Comigo, não!' - Pensou ele, com a alma cheia de grilos. Aqueles pensamentos não ficaram por ali. Reforçaram-se no dia seguinte. Teve vontade de tirar uma peça da televisão, estragando-a, até terminar a novela. Porém, pensou nas crianças, nos programas infantis e por aí afora. Ao demais, teria que levar a televisão para conserto e o dinheiro estava curto. Daria na pinta, se ele mesmo encontrasse o "defeito" algum tempo depois. Ainda por cima, Dolores sabia que Zeca não entendia nada de nada, quando se tratava de aparelho elétrico ou eletrônico. Durante toda a semana, Zeca se furtou a qualquer contato mais aproximado com Dolores. Ora alegava cansaço, ora dor de cabeça, ora preocupação com as prestações da geladeira.
No sábado seguinte, resolveu permanecer e assistir aos capítulos daquela noite. Lá estava o gostosão! Ninguém sabia sua profissão, o que tocava. Estava sempre atrás de uma enorme mesa, ao lado de belas secretárias. Era empresário, mas ninguém sabia de quê. Passava a novela inteira bolando um meio de fornicar com a amante casada.
Ela, a infiel, cheia de cinismos, servia o café da manhã ao marido, dava-lhe beijinhos quando este saía para o trabalho, enfim, uma grande mulher na idéia do guampudo. Zeca imaginava Dolores dando-lhe beijinhos pela manhã, ao sair para dar aulas! Também aquela noite foi de solidão para Dolores. A cabeça de Zeca fervia. Nem se quisesse conseguiria algo na cama. Andava mais cego que gato embolsado.
Pela manhã, apanhou o jornal, sentou-se na varanda, acendeu um cigarro e percorreu o noticiário. Na capa, uma chamada interessou-lhe: "Marco Coralles e Suas Confissões Íntimas - Caderno da TV". Não perdeu tempo, buscando a notícia. De repente, suas feições transformaram-se. Encheu-se de estranha felicidade. Ali, Marcos Coralles, o machão da novela das oito, dizia-se homossexual, acrescentando que era muito feliz ao lado de seu homem, há mais de dez anos. Zeca levantou-se e saiu gritando pelo nome de Dolores.
- Dolores! Dolores! Onde está você?
Logo surgiu a mulher, tomada de espanto.
- O que houve, Zeca?
Resfolegando, soltou a voz:
- Olhe aqui! Não disse que esse cara era bicha? Logo que o vi, senti que não gostava de mulher!
- O que está dizendo? Nunca falou nada sobre isso.
- Nunca? É... acho que só pensei! Tudo bem.
- Ao demais, que Marcos Coralles seja boiola, já é coisa antiga. E quer saber, Zeca: sinto nojo desse cara!
Dolores olhou para o marido se afastando com o caderno da TV apertado nas mãos, cheio de felicidade e uma vibração parecida quando seu time faz um gol. Fazer o quê? Voltou para a cozinha para terminar o prato predileto de Zeca: bucho com batatas e agrião. Afinal, agradá-lo era preciso, pois fazia uma semana que ela estava a pão e água. Pela cara do Zeca, acreditou que o jejum terminaria naquela noite.
E foi o que aconteceu. Pareciam em lua-de-mel.

O PAI E O FILHO

O homem saltou da cama cedinho. Encontraria o pai de qualquer maneira. Não importava o tempo da busca; iria em frente. Largou poesias, contos, vinhos e noites. Fechou a agenda e esqueceu os telefones. Sequer atenderia à repartição estadual do Tesouro, onde trabalhava; comunicou que faltaria, por motivo de doença. Permitiu-se à mentira, diante do acúmulo de férias não gozadas e licenças-prêmio convertidas. A ficha funcional recomendava-o com louvores.
Como nunca, bateu-lhe a certeza de que traria o pai para junto dele.
Quanto sofrimento estaria passando? - Pensava.
Ao colocar o pé direito na rua, atendera à superstição, visando atingir o objetivo perseguido desde a juventude. Não o perderia dessa vez.
Estaria num bar? Numa esquina? Sob uma marquise? Num banco de praça? Ou seria dos que andavam no anonimato dos excluídos, à beira das estradas?
Passavam caras de todo tipo, das quadradas às retangulares, das redondas às retilíneas. Seus passos pisavam becos, ruas e avenidas. Alguns rostos aproximavam-se do procurado. Só se aproximavam. A fisionomia era a de um homem que partira há muitos anos; que saíra pelo mundo buscando não sabia o quê. Talvez partisse para morrer, na bebida ou algo parecido. Oh, não, papai não era tolo! - Pensava, enquanto se lançava sobre paralelepípedos oleosos e poças d'água.
Havia mendigos, vendedores ambulantes, engravatados, operários, motoristas, bêbados, muita gente! O homem não identificava a função da maioria. Manhã de quinta-feira, as caras eram todas de quinta-feira, à exceção dos mendigos e bêbados. Mas seu pai era um deles. A angústia impedia sofreasse o ímpeto da procura.
Contara-lhe a mãe que seu pai chafurdara na bebida, atirando-se em trágico destino. Transformara-se num trapo fedendo a cachaça. Quando criança, ouvira dela que o pai abandonara o lar sem qualquer justificativa. Dissera-lhe, também, que conviveria com um cão, mas não coabitaria com seu pai. As informações soavam confusas e contraditórias. Com o tempo, porém, as mentiras vieram à tona, mostrando sua mãe como a verdadeira causadora da desgraça de seu pai. Ciente, pois, da verdade, abandonou a mãe e, desde então, procura pelo pai.
Com a tarde, chegou a aflição. Demorara para decidir; não voltaria para casa sozinho. Se o fizesse, poria termo à vida! Perturbava-o imaginar que seu pai sofria.
O movimento no centro da cidade atraiu-o. As caras passavam como bonecos animados diante de seus olhos súplices. Andava a passos lentos, revendo retratos memoriais. Um redemoinho no inconsciente facilitava-lhe delírios. Entrou num bar, tomou café, com a visão sempre voltada ao movimento na calçada, dinâmica irresistível à sua ânsia de procura. Ao sair, assumiu a multidão, logo esbarrando num velho de passos arrastados. Desculpas. Ao desculpar-se, as caras se confrontaram. O velho seguiu. O homem parou, acompanhando o velho com os olhos. De repente, desperta: É ele! E vai atrás. Passam-se os minutos. Anoitece. O movimento nas ruas diminui. O velho dirige-se a uma vila miserável, junto ao lixão, ingressando num beco curto e escuro. O homem se desdobra para não ser notado. Diante de um barraco coberto de tábuas, paredes de papelão e isopor, o velho desamarra a corda que prende um compensado marítimo, fazendo as vezes de porta. Entra, acende a lamparina e inicia fechar o barraco, quando o homem se anuncia.
- Quero lhe falar!
O velho suspende a lamparina até a altura do rosto e exclama:
- Você me esbarrou no centro da cidade!
- Sim, esbarrei.
- Que quer de mim?
- Saber se o senhor é o meu pai!
- Seu pai? Não é possível!- Exclamou o velho!
Após instante de silêncio, aproximou a lamparina do rosto estático do visitante. Outra exclamação e uma indagação:
- Inacreditável! Então... é o meu filho?
- É o que penso. Não posso me enganar mais.
- Digo-lhe o mesmo, meu filho.
- O que esperamos? Venha!
- Para onde?
- Minha casa. Devolver-te a paz que perdeste há anos.
No caminho, o velho falava de sua felicidade. O reencontro reacendeu a alegria no homem.
- Por onde andou durante esse tempo?
- Estudei. Formei-me em Direito. Sou funcionário público estadual. E o senhor, o que faz?
- Sobrevivo catando papel, papelão, latas e garrafas. Confesso-lhe que imaginava esse encontro. Até hoje, minha vida foi olhar as caras nas ruas.
- É o que faço desde jovem.
Conversaram sobre as aflições durante a procura de um pelo outro. Um forte e demorado abraço selou o reencontro.
No apartamento, o homem disse para o velho:
- Amanhã será um dia diferente, de reinício.
- Concordo, filho. Matemos o passado. Sepultemos as dores. Cansei de sofrer.
- Eu também, pai.
- Deus te abençoe, meu filho.