sábado, 12 de setembro de 2009

AMOR INTRUSO

Uma ânsia de amor profundo abraçou a alma de Dorvalino, rompendo resistências, ganhando-o por inteiro. Não havia lugar onde não se manifestasse: em casa, nas ruas, no mercado. Dorvalino era um sítio tomado em estratégia guerreira: sucumbido, entregue. Coisa de cinquentão caído por ninfeta. Seus suspiros davam na pinta, mas ninguém comentava. Ruim com ele, pior sem ele, dizia a mulher aos filhos, quando via o marido sonhando sob a jaqueira.
Conscientizara-se de uma luta interior intensa, flagelo de canções de abandono, forçando o poeta ao rigor dos abrolhos. Dorvalino poeta? Até isso! Escrevia suas linhas piegas, cheio de dúvidas sobre o futuro. Coisa de poeta encasquetado por amante esfogueada.
Mas Dorvalino era dos Souza Araripe Ferrão das Cruzes, gente resistente do sul da Bahia, praqueles lados de Teixeira de Freitas, onde homem que se lastimava à-toa, inclusive por mulher, era tachado de fresco.
Eta, gente! Como pensar assim, se alma é coisa que nem mulher nem homem dominam? Ah, aquela invasão do amor, dolorida e resistente! Fazer o quê para livrar-me e viver como antes? - Assim Dorvalino reagia, porque entender a cabeça daquela gente, impossível!
Recorrendo à bebida, frustrava-se. Os impulsos acendiam-se, emergindo desejo de busca. Mas não buscava; havia dia e hora para encontro. Compromissara-se como o Papa.
Safada, a ânsia sorrateira e sem tamanho, marcada ao ferrete dos sonhos, tomou-lhe a alma de assalto, usucapindo-a ponto a ponto. É claro que tudo acontece, quando se encontra a porteira aberta. Dorvalino era mais viciado em garota nova que raposa em galinheiro aberto.
Não era homem novo. Encontrava-se na perigosa meia-idade do leão, onde o camarada se constrange só em pensar numa relação extraconjugal. Imagine-se a situação em que se metera, envolvido até o gogó com uma ninfeta de dezesseis anos, Lolita a transgredir-lhe princípios, todos eles, até os penais! Ao fim, praticava escancarada corrupção de menores, cuja sanção faria o pecador mofar na penitenciária. Mas Dorvalino sequer sabia de tal tipificação no Estatuto Penal. Passara a vida numa fábrica de tecido lubrificando engrenagens e olhando as pernas das operárias. Aposentado, foi para casa aporrinhar a mulher e os filhos, com surpreendentes novidades domésticas.
Estudava uma forma de diminuir as chamas do amor. Noites inteiras envolvia-se naquela entrega, tal adolescente apaixonado por colega de escola. Sua dor geraria frutos úteis no dia seguinte da espera, imaginava. Encontraria uma saída honrosa.
Como sofria! Um sentimento resistente alojara-se no fundo da alma. O enredo amoroso fustigava-o. Fazer o quê? Quanto mais lutava, mais se atolava, enredado nas angústias.
A linda menina, seios de pera, olhos de jabuticaba e mãos de veludo, reinava absoluta nas suas fantasias. Alma em frangalhos? Talvez sim, talvez não. Havia uma confusão dos diabos a transtornar-lhe os sentidos. Pensava nas filhas maiores e nos dois netos que o filho vadio arrumara! Quanto à esposa, essa não entrava no jogo das culpas amontoadas. De jeito algum!
O pungente amor intruso dava-lhe poucas respostas sobre a ninfeta. Atendendo as aparências, Fátima namorava um garotão em casa, duas vezes por semana. Inclusive, Dorvalino sabia que o sortudo era cheio de gás. Ah, aqueles lábios de mel, aquela pele de pêssego! Aquelas coxas de anjo! Meu Deus do céu, tudo isso nas mãos daquele galinho novo!
O amante tomava-se de desassossego, mas Fátima lhe garantia dureza com o namorado, a quem dizia que não a despertasse, pois pretendia casar-se virgem. Beijar era o máximo permitido ao garotão, mesmo assim beijo de cinema, sem língua e sentimento. E, claro, algumas bolinações em zonas pouco erógenas. Ela se determinara a não dar muita chance à libido. As explicações de Fátima aliviavam-no.
Mais pensava na jovem, menos admitia a idéia de dividi-la. A mãe, uma tonta; o pai, um alcoólatra. Quem vigiava as mãos bobas do namorado? Passou a duvidar de Fátima. Ela era de responder "não" duas vezes, ao lhe coçar as intimidades. Que dor danada! - Suspirava Dorvalino, ao lado da esposa assistindo à novela das sete.
Tudo seria menos doloroso, não houvesse obstáculos impedindo Dorvalino de ver Fátima com mais frequência. Eram a mulher, os filhos e os netos grudados em seu pé, mais a falta crônica de dinheiro; uma porção de besteiras misturadas a coisas importantes interrompendo seu caminho rumo à amada. O tal namorado atrapalhava uma barbaridade! Aposentado, não parava um instante: era o chuveiro queimado, a tomada de energia com defeito, a caixa de gordura entupida, enfim, era sempre Dorvalino para salvar a pátria.
Sobrava-lhe a magra segunda-feira para apanhar Fátima na porta do colégio. Dali, iam ao cinema, depois comiam pizza. Esbaldava-se ao lado de seu amor.
Ela vibrava com os carinhos de Dorvalino. Era experiente, conhecia de tudo, dos beijos às bolinações. Ela se deliciava! Não contestava as mentiras do amante, tangente à alegada separação conjugal e ao fato de não ter filhos. Não ameaçaria a felicidade do homem que lhe dava prazer, colocando em perigo momentos de pura emoção. Embora nova, sabia que, na idade de Dorvalino, pressões sobre um coração apaixonado era enfarto na certa. Ao demais, sua companhia era preciosa na hidromassagem do motel. Virava criança, de tão feliz.
Nem tudo que pensa e se mexe na face da terra permanece vivo e inteiro para sempre. A esposa de Dorvalino saía aos domingos com os filhos, genros e netos. Passava o dia numa das praias de São Gonçalo, no Estado do Rio, fosse na Praia do Focinho do Porco, na Praia da Luz ou na Praia de São João. Num desses domingos, as coincidências marcaram encontro fatal.
Fátima não aceitava convite do namorado para frequentar as praias oceânicas de Niterói, tampouco as urbanas. Receava encontrar Dorvalino. Ao falar em praia, Fátima desviava o roteiro para São Gonçalo. Só faltou comunicação com o amante, pois Dorvalino não imaginaria seu amor por aquelas bandas; tratavam-se de praias pouco frequentadas, devido à lama e à sujeira. Localizavam-se no saco da Baía da Guanabara. Até feto boiava naquelas águas.
O pior aconteceu ao meio-dia, quando aquele mulherão caminhava pelas areias da Praia da Luz, trajando sumaríssimo biquíni, cheia de satisfação. Afinal, vinha das bandas da Praia de São João, lugar solitário e afrodisíaco, segundo antigos moradores do lugar.
De repente, os olhos da sereia bateram numa roda debaixo de uma árvore, onde se destacava o chefe da família: Dorvalino, sem camisa, vestindo enorme calção amarelo repintado de florzinhas! Abraçava a esposa, mulher de cinquenta e tantos, mas aparentando sessenta e mais alguns, desleixada de corpo e alma, usuária de perereca um tanto frouxa na arcada dentária superior. Era uma dona de casa comum, acompanhada do marido, netos, genros e noras. Trajava maiô de bolinhas dos anos sessenta.
Sobre a toalha estendida na grama, frangos assados com farofa. Um isopor trazia cerveja e refresco. Junto a Dorvalino, um litro de pinga chegava à metade.
Fátima enrubesceu, ao ver Dorvalino enaltecendo as qualidades da mulher, da mãe e da avó! A amante retornou, passando pelo mesmo local. Foi quando Dorvalino flagrou sua musa abraçada ao namorado, a caminho da Praia de São João. Dorvalino conhecia a fama da praia. Logo encerrou a conversa, tomando uma talagada da pinga. Ninguém entendeu seu silêncio.
Naquela noite, levaram-no ao Pronto Socorro Municipal para debelar uma falta de ar crônica. Já fazia efeito uma dúzia de pílulas, algumas sob a língua. Foi quando sentiu sair de dentro de seu corpo aquela armação amorosa que o aturdia. Fatinha se distanciava.
Pela manhã, fios pelo corpo, soro dependurado, agulha na veia, estonteado, acordou na UTI, sem saber das horas. Olhou para os lados e, calmo, disse para si mesmo, tomado de orgulho: "Sou outro homem! Agora, para ganhar minha alma, tem que pagar pedágio! Me chamo Dorvalino de Souza Araripe Ferrão das Cruzes. E Deus me livre cair noutra de amor!"

Nenhum comentário:

Postar um comentário