domingo, 27 de setembro de 2009

MEU CANTINHO DE ROÇA

Sempre houve tempo de plantação e colheita. Nas piores fases, alguma produção se apurava nos cantos humosos da roça. Na maior parte do ano, havia abastança no paiol. Maxixe, jiló, quiabo e por aí afora. Abóbora de pescoço, nem se diga!, sem falar dos grelos das aboboreiras, essa colheita que resulta num quibebe de dar água na boca. Milho verde e feijão-de-corda enchiam cestos. Variava a verdurama e havia fartura de galinha e ovos. Mamão, mexirica, banana e algumas outras frutas nasciam assim, isto é, como se Deus semeasse.
Setembrina, parideira de primeira - mais pelo marido, porque por ela seria diferente -, descia todos os dias rumo à lavoura. Plantava de tudo. Colhia até arroz do sequeiro, num pequeno reserva-do de terra roxa. Para a lida, ia sozinha, chovesse ou fizesse sol. O trabalho virara hábito sem volta. Antes, porém, de rumar para o roçado, bronqueava com a meia-dúzia de filhos, como medida preventiva. Enxada e ancinho às costas, pequena matutagem para aguentar até o meio-dia, lá ia ela assobiando para espantar a preguiça e cobras do caminho. O marido ficava na carpintaria, confeccionando ou consertando rodas de carroça, atendendo às poucas encomendas. Tinha habilidade para a coisa e recebia elogios pelo exercício da arte. Mas o dinheiro que entrava era curto.
Setembrina não respondia às observações e perguntas do marido, a respeito desse ou daquele trabalho que ele faria naquele dia, enquanto ela estivesse fora. Ele se dava a pedir explicações justamente no momento em que a mulher saía para a lida. Acontece que Setembrina sabia que Nonô aguardava sua saída, para largar o serviço na carpintaria e partir para o mato, atrás de paca, tatu, cotia ou qualquer outra caça que deixasse trilha recente. Todos sabiam que aquele gosto por caçada era troço entranhado em seu espírito. Comia de cuíca a gambá, com maxixe ou banana verde. Até com jiló! Mas - coisa engraçada - não era explícito com Setembrina a respeito de sua paixão por caçadas. Nunca o fora. E precisava? Dizia apenas que era distração. Seu tempo passava sob mesmi-ces inconvenientes, mentiras sem importância, fatos e atos insignificantes. Nonô comia de tudo: rã, muçum, até filé de jibóia ao molho de tomate-mirim. Não era dos que se cutucavam com vara curta, no mister de sobreviver um dia após outro, sem ais e uis. No entanto, sua expansão não passava da cerca, se o embate fosse com a mulher. Coisa de pouco blá-blá-blá, já que não havia discussão séria. Discutir para quê? Havia mais o que fazer naqueles fundões de roça, pensava Setembrina.
Com jeito, de vez em quando comiam abóbora com carne-seca. Queriam mais o quê? O resto era ganância. - Pensava Nonô.
Um dia, a seca bateu forte por aquelas bandas. O tempo passava sem trazer nota de esperança. Parecia guerra, gemeção baixinha pelos quatro costados da morada, no quintal e na varanda. Dava dó ver a criançada se amiudando por falta do que comer. O mandiocal secou; depois, as bananeiras esmirraram!
Era guerra muda, quase silêncio, sem coaxar de sapo e rã, sem zunir de cigarra ou estridência de grilo, estes que, na roça, são prenúncios de chuva. Nonô e Setembrina entreolhavam-se na pequena sala de reza. Mas a água se distanciou e a terra se entregava de vez. Rios, lagoas e
barragens desapareceram da geografia impiedosa. O gado magérrimo entregava-se débil. Os animais do mato batiam em retirada. Pomba de bando, só em sonho! A criançada procurava não chorar, mas quando um começava, a choraminga era geral. Nonô distribuía o cacete. Juntava-se a fome à dor no lombo. Setembrina virava uma jararaca com ele. Acontece que o choro da molecada aporrinhava de verdade.
A coisa enfeou. Já faltava tesão ao caçador, que, com seus botões, se gabava não haver feitiço que o arriasse em negócio de mulher! Talvez essa a razão de Setembrina suportar tal inutilidade ao seu lado.
Os filhos debilitaram, jogados nos cantos da casa. Não era indolência de ociosidade, mas fraqueza por inânia. Em diante, valia tudo, de rato a lagartixa, de cacto a xiquexique. Foi aí que Setembrina fez reunião e lascou desabafo.
- Não aguento mais! Trabalho trabalho, mas continuo na mesma! O que cresceu no cercado foi essa prole sem eira nem beira! Diga-me, Nonô, qual a sua idéia? Você é ou não é o homem da casa?
Ele, mais que depressa, disse que só havia uma saída: subir no pau-de-arara, reto à capital. Chegara-lhe notícia de que lá o leite jorrava das torneiras.
- Deixa de sê besta, homenzinho malandro! Leite só jorra em torneira de trabalhador!
- É verdade, muié! Num tô mentindo não!
- Sinto pena dos meus filhos, com um pai desses! Idéia que é bom não há nessa cabeça de porongo! Está decidido: as meninas vão para a casa do Coronel Raimundo.
- Coroné Raimundo? Esse homem tem má fama. Gosta de se passar com mocinhas.
- Sê besta, Nonô! Se ele mete dedo numa filha minha, é homem morto. Ou você não me conhece?
- E os meninos?
- Eles me acompanham!
- E eu, muié?
- Você... você pode ir para os quintos do inferno! Ou pensa que vou trabalhar pra sustentar um homem que nem sabe pegar na enxada?
- Muié, não façamos dispersão de nossa gente! Sei lidá com roda de carroça, caçá, catá fruta no mato. Rápido busco palmito, mais severo seja o mato.
- Fala isso de pegar palmito na cidade que tu apanha. Mexer com roda de carroça é coisa de interior, Nonô. Não desejo velório de filho. Quero salvá-los. Um dia a gente se acha nesses cafundós.
Assim aconteceu. Severina partiu para a fazenda do Coronel Raimundo. Lá deixou as três filhas em mãos de dona Risoleta, esposa do coronel.
- Elas são prendadas, dona Risoleta. Não se arrependerá.
- Deixa estar, Setembrina. Serão tratadas como filhas.
Dia seguinte, Setembrina partiu com os meninos para a capital. Não demorou para arrumar-se num restaurante. Logo um filho empregou-se como garçom; os outros dois descambaram para a construção civil: ajudantes de pedreiro.
Mulher honesta, nem por isso deixou de sentir comichões. Amiudados os tesões, não se demorou a convocar o marido. A essa altura, alugara uma casinha na periferia da cidade e trazia planos para Nonô ganhar alguns trocados. Em pouco tempo, ele reuniu mais de meia-dúzia de jardins para tratar, quebrando um galho aqui, outro acolá, colaborando de verdade, pela primeira vez, com a economia doméstica. Setembrina labutava de sol a sol, como sempre. Nas folgas do restaurante, empenhava-se nas faxinas.
A cidade deixou Nonô mudado. Passou a beber e a chegar em casa perfumado. Setembrina avisou a primeira e a segunda vez. Na terceira, botou-o para correr de casa.
O tempo passou. Ela se manteve só. Os comichões, recebia-os com jeito e resolvia a seu modo. Chegara à conclusão de que homem era tudo igual. Conversa vai, bateu saudade imensa das filhas. Resolveu buscá-las para o seio da família. Não as via fazia três anos. Notícias, só através de cartas. Chegando à cidade, foi direto à casa do Coronel Raimundo. No portão, a primeira surpresa: Maria da Glória grávida! Não bastasse, servia feijão socadinho com angu ao primeiro filho, que já contava ano e meio. As outras... também grávidas, sendo que, como a mais velha, uma delas trazia um filho ao colo! Quem era o pai? A resposta veio logo: "Um sanfoneiro que bateu por essas bandas numa festa de São João e nunca mais voltou".
- Como nunca mais voltou, se vocês duas, além dos filhos no colo, encontram-se embuchadas? Não me façam de boba!
- Ele voltou sim, mãe, mas...
Ao pé do ouvido, Setembrina chamou-as de safadas, espinafrou-as. Após, reuniu a tropilha e partiu, excomungando o Coronel Raimundo, pois seus netos... ah, sim, seus netos era a cara de um, focinho do outro! Mas, que fazer com um coronel poderoso, latifundiário, cheio de políticos à volta lambendo seus pés, matador até por mau olhado? As Setembrinas do sertão nunca tiveram vez. Só os coronéis! Quem não sabia disso? Por mais jararaca se transformasse, como anunciava, Setembri-na não restauraria a dignidade da família violada.
Em casa, a mãe espalhou as grávidas pelo chão da sala e acomodou os netinhos no quarto dos meninos. Dia seguinte, compraria uma casinha para a família, com o dinheiro da indenização. Nessas atrapalhadas com as filhas dos outros, até que o Coronel Raimundo tinha bom senso; o desgraçado dava teto pros filhos que arranjava com as pobres moças. - Pensava vovó Brina, enquanto pitava seu cachimbinho de barro, sentada no tamborete da cozinha.
Dali em diante, talvez alguma idéia melhor pudesse orientá-la. Quem sabe esquecer aquela gente da cidade, voltar para o sertão, cuidar de seu roçado e se ajeitar nos braços de um homem que aliviasse seus desassossegos nas noites de lua cheia?


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