quarta-feira, 2 de setembro de 2009

O ATORMENTADO

Pedro ouvia vozes,  um burburinho estranho. Muito pouco identificava frases inteiras, apenas palavras soltas, lamentosas, pedindo ajuda. Passou a enfrentar essa situação depois de moço, 19 ou 20 anos. Antes, a vida transcorria normalmente; agora vivia sob o jugo de terríveis apreensões. Ao que apurara, detinha poderes de salvar almas penadas ou coisa parecida. "Dá-me tua mão! Dá-me tua mão!" Quer dizer, não era simples assim.  A voz  surgia gemebunda, arrastada e bem próxima. Com o tempo, acostumara-se aos calafrios. A dor maior era a de manter silêncio sobre tudo o que ouvia, sem poder compartilhar com parentes ou amigos. Temia ser chamado de louco e ser levado para o hospício. Ser-lhe-ia como a própria morte, ser tachado de esquizofrênico. Seria pior, muito pior, entregar-se a confidências com quem quer que fosse. A princípio, imaginou que tudo seria questão de tempo. Chegou a pensar em alucinações e que, em breve, se livraria do pesadelo. Qual nada! Passaram-se dois anos e ele definhava, pouco saía de casa. Às vezes, faltava o trabalho durante dias, entregando-se ao quarto fechado, sob lençóis ou cobertores. A situação recrudescia, quando eram muitas as vozes, em coro, donde se destacavam intensas súplicas: "Salve-me, pelo amor de Deus!"; "Já não suporto as chamas deste inferno!"; "Estão me levando, socorro, tirem-me daqui!"; "Não fiz nada, não fiz nada. Deixem-me em paz! Socorro!"; "O que fiz para sofrer tanto assim? Ai, meu Deus! Afaste esse abismo de meus passos!" Isso era todo dia. Já não comia direito. Seus pais, preocupados com sua saúde, não sabiam mais o que fazer. Certa noite, pela madrugada, ele despertou ouvindo uma voz diferente. Disse-lhe: "Sei que  seu desespero é grande. Muitas vezes, fica a pensar sobre a desgraça que se abate, sem saber a razão. Fique certo, porém, que não há mal algum no que lhe acontece. São espíritos que encontraram um canal aberto que atinge direto sua existência. O normal é não ouvirmos esses lamentos." Pedro Perguntou quem era ele e porque lhe dava aquelas explicações. A voz prosseguiu: "Não sou do bem nem do mal, não conheço o céu, nem o inferno. Vago a milhões de anos pelos universos habitados e sei o que acontece dentro de cada um dos seres vivos. Quando alguma coisa foge da normalidade, isto é, quando há alguma interferência entre a vida espiritual e a material, como no seu caso, fico observando e me divertindo, até entrar em cena para tentar afastar a tormenta do sofredor." Pedro agradeceu e perguntou quando se livraria daquelas vozes. O estranho respondeu que Pedro deveria, dentro de sete dias, visitar o cemitério municipal, à noite, e desenterrar o corpo de um homem sepultado na carneira número 1236. Após, pedir-lhe que o ajudasse a se livrar dos espíritos que o perseguiam. Realizada a tarefa, diria ao morto: "Vá com Deus! Vá com Deus! Vá com Deus!" Tudo muito simples, mas que teria de ser feito, para salvá-lo da multidão de espíritos que invadira sua privacidade - transmitiu-lhe a voz.
Pela manhã, Pedro estava em dúvida a respeito do que acontecera. Não sabia se sonhara ou se realmente uma voz recomendara-lhe a tarefa de ir ao cemitério para fazer o trabalho recomendado. Aquele contato conturbara-o. Soubera, certa feita, que o espírito saía do corpo enquanto a pessoa dormisse. Estaria ele recebendo a visita de espíritos, cujos corpos se entregaram ao sono? Seria de gente conhecida, pretendendo ajuda? Mas, e a ida ao cemitério, para desenterrar um corpo e pedir-lhe ajuda? Pensou em conversar com seus pais, mas estava com medo de intranquilizá-los.Tais os conflitos, que terminou perdendo o emprego. Os estudos, abandonara-os fazia alguns meses. Trancado em casa, ouvia as vozes indesejadas,  algumas ameaçadoras: "Se não me ajudar, eu buscarei você para caminhar pela eternidade." Pedro não tinha a menor idéia de como ajudar àqueles espíritos, ou pessoas, não sabia ao certo a quem. Aos clamores e súplicas, devolvia silêncio e medo. Achava-se perdido! O único aceno de ajuda partiu daquela voz que determinou fosse ele ao cemitério desenterrar um determinado corpo. Mas praticaria o crime de violação de cadáver! Falaria com o delegado? Não, não falaria com ninguém!
Os dias se passaram e, na véspera do sétimo dia, preparou uma pá e uma enxada. Duante a manhã seguinte, visitou o cemitério, para identificar a cova. Não indagou da administração o local. Resolveu ele mesmo peregrinar pelos estreitos caminhos do campo santo, até encontrar a cova 1236. Duas horas depois, encontrou a fila que daria nela, pois acompanhava os números 1221, 1222, 1223... 1228, 1229... 1233, 1234... 1236. Ali estava a cova... vazia! Ficou sem saber no que pensar. Naquele dia ou no dia seguinte seria enterrado ali o defunto, com o qual falaria, segundo a voz lhe revelara naquela madrugada. Resolveu passar a tarde na volta do cemitério, para ver se o enterro seria naquele dia. Nada! Foi para casa, tomou banho, jantou e foi dormir. Não bem se sentou na cama, sentiu uma forte dor no peito e gemeu. Sua mãe, ao chegar, encontrou o filho sem condições de falar, espumando a um canto da boa. Sofrera um enfarto fulminante, nada adiantando ser levado para o hospital. Foi velado em casa.  A mãe dizia que, nos últimos meses, seu filho não estava bem. Com certeza, escondia algo importante da família. No dia seguinte, por volta das l6 horas, o corpo baixou à sepultura. Cova nº 1236! Em diante, um espírito cheio de revoltas desencarnou, juntando-se aos demais. Agora alma errante, passou a compreender o desespero que ressumbrava daquele vozerio todos os dias. Eram espíritos inconformados com a morte, enganados por um ente maquiavélico que prometia salvação, mas que, no fundo, sabia do destino das pessoas. Pedro assistiu a muitos casos como o seu. Ele gemia, mas não variava nas suas súplicas: sempre pediu justiça aos pecadores e não pecadores.

Nenhum comentário:

Postar um comentário