quarta-feira, 2 de setembro de 2009

O DESEMPREGADO

Não trabalhava fazia dois meses. Recessão pesada, havia poucos empregos no mercado. Corria os classificados do jornal todos os dias. Tânia, equivocada, taxara-me de pós-graduado em ociosidade. Era certa uma coisa: eu não me cagaria de graxa por nada nesse mundo! Merecia coisa melhor, como um escritório. Pensei em montar negócio próprio, mas não tinha dinheiro nem pro cigarro.
Atendendo a anúncio, compareci ao departamento de pessoal de um indústria moveleira. Exigiam do interessado letra boa, segundo grau e boa aparência. Trabalharia no setor de expedição. Quando criança, vovó me castigava sobre cadernos de caligrafia. Um passo à frente, imaginei. Na verdade, minha letra era invejável, tipo letra de professora primária!
Atendeu-me uma senhora muito séria, de óculos. Mandou-me aguardar na saleta ao lado, onde já havia cerca de dez pessoas. Perguntei a um rapaz se atendera ao mesmo anúncio. Confirmou. Entre os candidatos, havia três mulheres. Pretenderiam a mesma vaga? O anúncio falava em “chefe de expedição”. Indaguei-me sobre a expressão. Tinha um sentido forte, parecia cargo destinado a macho. Sim, “chefe de expedição” era coisa para homem! Curioso, perguntei às moças se buscavam a vaga, porque, após a minha chegada, duas outras entraram na saleta, àquela altura entupida. A resposta foi positiva: disputavam a vaga de “chefe de expedição”. Então, me toquei. Nunca ouvira mulher sendo chamada de chefa, o que, com licença do vernáculo, seria um termo para lá de sacal. Lembrei-me do substantivo comum de dois gêneros: o chefe, a chefe. Pensei: trumbique-se o pavio, a bomba explodirá mesmo! E esperei o chamado.
Olhava para a cara das pessoas; todas precisavam do emprego. Um esfregava as mãos sem parar. Vez que outra, passava o lenço no pescoço. Tirou o maço de cigarros do bolso várias vezes. Se fumasse ali, apanharia. A saleta estava abafadíssima. Uma loira gostosona lia sem parar um livro de bolso, dobrando as páginas como se lesse uma revista. Era desses livrinhos populares, descartáveis, onde os amantes brigam durante cento e noventa e nove páginas, dão tiros um no outro, corneiam-se a valer, para, depois de tudo, reconciliarem-se na penúltima página, testando a capacidade de condescender do leitor. Ao chegar à metade, o tal livreco se quebra; lido, vai ao lixo.
Um cara sentado na cadeira do canto não desviava o olhar da parede. Parecia hipnotizado. Usava aliança de noivo. Parecia decorar um texto. Coisa de louco. Ali, cada qual merecia um manicômio diferente. Somando todos aqueles desejos, levantaríamos edifícios de fumaça. Ou explodiríamos sob miríades de esperaças.
Uma vaga e um exército rezando. Nessa hora, a oração é geral. Deus pra lá, Deus pra cá, com quem ele está? Um rápido bate-boca entre dois mijões deixou-me pateta: um sustentava que era rezar; o outro, orar. Reza-se o que já está escrito, sacramentado; orar é improvisar o conteúdo da súplica ou algo parecido. Liguei-me por alto na filosofia do embate. Estava atento à tensão formada por causa da discussão. O cacete não comeu, porque um sujeito nervosão pediu um ponto final na encrenca, senão ele ia se meter a jeito! Rezando ou orando, ao chegar a frustração manda-se tudo às favas. O homem é assim. Medroso, perde a vergonha vez que outra. Eu não rezei. Deus não escolheria todos, embora todos rezassem. Isso passava na minha cabeça, no momento em que apareceu um rapaz na porta, calça azul marinho, camisa branca de mangas compridas, gravata preta, sapatos engraxados.
- O primeiro.
Entreolhamo-nos. Quem era o primeiro?
- Eu... Fui a primeira a chegar. - Disse uma senhora, uns quarenta e cinco anos.
- Sim. O primeiro é... tá aqui, dona Edeltrudes Ananias Rizoletta Oliveira Alves e Silva.
Pô, pensei, nome de aristocrata, sobrenome de presidente da república, atrás de um empreguinho mixuruca daqueles!
- Sou eu mesma. Cheguei primeiro e não abro mão.
- Então, entre.
Ao se apresentar, o candidato deixava o nome com a tal dona de óculos. Bastava o rapazinho chamar pelo nome, na ordem de chegada. Mas... começa aí a minha aporrinhação. Quando ironizo certas coisas, ou banco o cínico, não me entendem. Estão vendo o exemplo? Aliás, com aquele nome compridão, por que acrescentar "...e não abro mão?" Coisa de gentinha.
Dona Edeltrudes não demorou três minutos. Chorava como carpideira bem recompensada. Nessas horas, pensamos bobagens. Pior se saísse peidando ou reclamando de cantada mal dada. Quanta besteira! Mas era sinal da minha tranquilidade, naquele brete de gente nervosa.
- Isso é discriminação. Registrarei queixa no Escritório de Defesa dos Direitos Humanos, em Brasília e na ONU! - Vociferava a candidata recém entrevistada.
A idéia de todos era de que passaram a mão em suas coxas. Mas olhei a figura e descartei a hipótese. Ela cruzava, quando um candidato perguntou o ocorrido. Respondeu:
- A idade! Essa maldita idade! O vagabundo quer guriazinha nova! Perdi a manhã inteira, para ouvir que minha idade poderia atrapalhar. Se eu fosse um mulherão, peitinho duro e cintura fina, esqueceria da idade! Mas, depois de cinco filhos, tudo cai! Esse babaca é um pedófilo graduado!
- Emílio... Emílio Santelmo.
- Eu!
- Entra.
E o Emílio? O que seria dele? O entrevistador perguntaria: Nome completo. Lugar e data de nascimento. Ele responderia: Pindamonhangaba, São Paulo. Não sei por que pensei nisso. Num buraco daqueles, mil bobagens afloram. Ainda bem que fica tudo guardado com a gente, exceto quando a curiosidade cutuca forte. Emílio saiu. Como chamavam pela ordem de chegada, eu não seria o próximo. Segui Emílio.
- Emílio!
- Oi! Você me conhece?
- Não. Também sou candidato. Ouvi seu nome. Só por curiosidade: Você nasceu onde?
- Por que quer saber?
- Curiosidade, só.
- Nasci em Formiga, Minas Gerais.
- Pô, cara, legal! Me desculpe. Tinha quase certeza de que você nascera em Pindamonhangaba. Me desculpe. Gostou da entrevista?
- Acho que me dei mal. O entrevistador é um babaca engravatado, assessorado por uma morena gostosa. Quer saber o calibre das perguntas?
- Sim.
- Se eu já tive gonorréia! Pô, cara, isso é pergunta que se faça?
- O que tem a ver chefe de expedição com gonorréia?
- É o que quero saber. Acho que na cabeça daquele medíocre haja alguma relação de causa e efeito, entre o cargo e a gonorréia. Talvez trauma de infância, coisa de mãe tomada de males, zona do meretrício, sei lá!
- Me desculpe ter parado você. Eu vou pra lá, senão me chamam e..
- Passe bem. Boa sorte!
Voltei para meu lugar. Parecia um hospício. Eu já não queria nem boa nem má sorte. Desejava ir para casa.
- Jerônimo.
Lembrei de Jerônimo, o herói do sertão. Minha mãe passava roupa, eu me apoltronava para ouvir as aventuras da radionovela. Era empolgante. Criança se emociona à-toa. Adulto, só quando o emprego tá ameaçado. Mas eu tava cagando e andando. Até me divertia! Corria-me a sensação de que perdia tempo. Era a única coisa terrível que sentia. Perder tempo!
Jerônimo saiu com cara de esperançado. Chegou na saleta de volta, parou, suspendeu a calça, acertou a camisa, balançou o corpo e seguiu. Tinha cara de burocrata. Acho que gostaram dele, da sua elegância. Todos da empresa usavam uniforme. Na vida comum também deveria ser assim. Acabaria com a babaquice da discriminação por causa de roupa.
- Marlene!
Marlene lembrava uma pá de coisas, de cantora de rádio a empregada doméstica, de médica a balconista. Mas resolvi lançar para escanteio aquele jogo. Cansara-me de analisar as pessoas, imaginando besteiras. Todos se esperançavam com miséria. O salário não passava de meia-dúzia de cascalhos, merrecas insuficientes para atravessar os primeiros dias do mês. Pior que eu estava sem dinheiro até para o cigarro, pedindo algum emprestado a mamãe todos os dias, feito pinto novo com frio.
- Astrogildo!
Chegara minha vez, finalmente! Levantei-me e atravessei várias salinhas. Lembravam-me as pocilgas de uma fazenda que visitara. Em cada uma, dois a três empregados de calça azul marinho, camisa branca e gravata. Passei por uma garota compenetrada, conferindo notas. Imaginei-a na cama, depois de três uísques. O homem é assim: trás uma cara para sustentar as aparências, uma para enfrentar as paredes e outra para encarar as circunstâncias. Prefiro a última, onde até senadores da república engatinham.
Surpreendi-me com a ausência da secretária. Ia perguntar o porquê, mas...
- Boa tarde, senhor!
- Olá! Sente-se. O senhor é gaúcho?
- Não. Mas morei treze anos no Rio Grande do Sul. Só na cidade de Santa Vitória do Palmar, fronteira com o Uruguai, terra mui buena, foram seis anos. Representante de laboratório. Vendia xarope à base de mel e ervas.
- E daí? - Perguntou o poderoso chefão.
- O quê? O xarope?
- Não. O emprego.
- Gaúcho não é de tomar xarope. Quando a coisa enfeia, ele vira uma cachaça azulada do 5º distrito de Canguçu. Depois, lasca uma colherada de mel campeiro lá do Alegrete, com umas ervas estranhas. É receita que cura a gripe mais resistente! Havia mês que a comissão não comprava um cachorro-quente. Pedi as contas, pois não aceitaram meu pedido para trocar de região. Desejava Duque de Caxias, no Estado do Rio, onde o tal xarope faria bastante sucesso.
- Você vendeu xarope durante treze anos?
- Não. Em diante, vendi desde planos de aposentadoria de uma instituição de Santa Maria, parece-me que negócio de instituição militar. Quase me enrolei, pois o tal plano levou a breca. Também me meti com um tal de "Bolon de la Suerte", que se dizia garantido pelo Governo Uruguaio, com sorteio semanal pela televisão. Tudo mentira! Tratava-se de modelada picaretagem, sabe? Ao tipo de certas garantias dadas pelo governo brasileiro e depois, ó! Só que eu acreditava que a coisa era séria e me dava mal. A única atividade positiva foi a de vendedor de pêssego, morango e maçã numa banca do mercado municipal de Pelotas. O resto só me trouxe problemas. Quer saber a verdade? Pedi dinheiro emprestado para minha viagem de volta. Foram anos jogados no lixo, sentindo cheiro de churrasco e lambendo os beiços. Dei muito de frente com piratas!
- É. O senhor traz leve sotaque.
- Mas foram treze anos! Nasci em Santa Maria Madalena.
- Mas veja! Terra da dona Dercy Gonçalves!
- Sim. O senhor a conhece?
- Quem? A dona Dercy ou Santa Maria Madalena?
- Os dois.
- Nenhum dos dois. A dona Dercy, só na televisão. Saí de Madalena bem novinho.
- Ela é boa artista, não acha?
- Tem lá seu valor, pois vive sendo homenageada, fazendo anúncio na TV e xingando todo mundo nos programas dominicais.
Fiquei na minha. Falar mais o que de Dercy Gonçalves? Uma humorista reconhecida. Ao demais, não entendi aquela de chamá-la de “dona”. Vai ser respeitoso assim nos quintos do inferno!
- O senhor sabia que nossa empresa tem uma tradição de mais de cinquenta anos?
- Pois não.
- E que nosso lema é "Honestidade e Trabalho"?
- Pois não.
- E que aqui todos vestem a camiseta?
- Pois não.
- Qual a sua idade?
- Faço quarenta daqui a um mês.
- Quarenta? Desempregado?
- Como lhe contei. Ao chegar do Sul, empreguei-me numa fábrica de cera. Só que pegou fogo. Deixou todo mundo na mão. Foram três anos jogados fora. Depois, entrei noutra empresa.
- Esta outra tocava o quê?
- Transporte. Eu trabalhava no escritório. Certo dia, apareceram policiais e oficiais de justiça. Prenderam o gerente, lacraram os arquivos e o cofre. Mandaram os empregados aguardar em casa. Até minha indenização foi pro buraco. A empresa não depositava fundo de garantia. Tudo errado. Trabalhavam com mercadorias roubadas de caminhoneiros.
- O senhor ficou com um pé na frente e outro atrás?
- Exato. Felizmente, solteiro.
- É contra o casamento?
- Não. Mas hoje tá difícil casar. Já pensou se eu fosse casado? Estaria... ralado.
Quase falei um palavrão. Seria minha desgraça. Ele se parecia com um papa-missas, tipo irmão mariano.
- O senhor é simpático. Tem conta em banco?
- Não. Não tenho dinheiro, não tenho conta.
- Cartão de crédito?
- Não.
- Poupança?
- Não.
- O senhor não tem nada?
- Coragem e disposição. Garanto-lhe que me saio bem como chefe de expedição. Diga-me uma coisa: qual é o salário?
- O senhor se preocupa com o emprego ou com o salário?
- Confesso-lhe que me preocupo com os dois.
- Gostei da sinceridade. Passaram bons candidatos por aqui, mas nenhum se encorajou de falar em salário.
O dia que estourasse uma revolução, pensei com meus botões, aquele velho safado seria o primeiro a se esconder debaixo do penico.
- Colocarei duas cruzes ao lado do seu nome. Tem enorme significado na seleção. No setor de recrutamento, você não imagina o simbolismo dessas duas cruzes colocadas aqui. Eu sou diretor da empresa, você sabe, não é? Mando e desmando nessa joça!
- Muito obrigado. Como saberei do resultado?
- Tem telefone?
- Tenho, da minha tia. Todos os dias nos vemos.
- Ótimo. Escreva na ficha, nessa linha em branco.
Escrevi o número e fui dispensado. Aguardasse pelo resultado uma semana.
Despedi-me. Quando saía, me chamou.
- Mais um pouquinho. Tenho uma última pergunta. Já teve doença venérea?
Pensei um pouquinho e lasquei:
- Já. Gonorréia.
- Curou?
- Sim. Só que, depois, peguei um tal de cancro mole.
- Cancro mole?
- Exato. É uma doença venérea causada pelo estreptobacilo de Ducrey. Quase perdi o pênis, senhor. Mas me salvei e estou aqui, inteirinho da silva. Já perdi a conta de quantas dei, depois da cura. A libido ficou até mais apurada, por incrível!
- Muita sorte sua! Já pensou perder o pênis?
- Quer saber de uma coisa, senhor? Há milhares de homens no Brasil que vivem sem esse apêndice. Doença mal curada, câncer, por aí.E passam a não sentir falta dele. Mais alguma coisa, senhor diretor?
- Não. Está dispensado.
Quando alcançava a porta de saída, o velho chamou para uma última pergunta.
- Joga no bicho?
- Que bicho?
- Jogo-do-bicho.
Pensei rápido e disse que não, ao que o velho lascou:
- Pois então tente! O número do telefone de sua tia é muito bonito. Até lá!
Senti que o velho era um baita sacana, irônico para mais de metro. Gozava com a minha cara. Só podia. Mas eu não deixei por menos.
Retornando à saleta, observei as cadeiras tomadas. Era uma vaga para muitos candidatos. Cruzei por uma fêmea exuberante. Se fosse eu o responsável pela entrevista, tava resolvido. Sentaria ao meu lado todos os dias, no final do expediente. Tinha uma cara de quem gostava de bolinagem.
Quando atingi o térreo e coloquei o pé na rua, virei para mim mesmo e disse:
- Tu és um babaca!
Ao chegar em casa, Tânia estava uma fera.
- Você se meteu aonde?
- Atrás de um emprego, pô! Entrevistou-me o gerente de uma empresa. Um cocô empalhado. Dezenas de candidatos para uma vaga. Pensei não mais existisse lugar igual aquele. Todos vestindo calça azul, camisa branca e gravata. As mulheres uniformizadas, saia azul e blusa branca, com uma fitinha vermelha amarrada no pescoço. Pareciam colegiais. Ninguém calçava tênis. Era silêncio de cemitério. Concentração geral. Todos escreviam, conferiam notas e batiam carimbos. Nunca vi tanto carimbo! Era plac pra cá, era ploc pra lá, era pluc pracolá. Senti-me dentro do ninho da burocracia nacional. O entrevistador era um coroa, bigode fininho, cara larga; vestia um terno pesadão, gravata do início do século; dava ordens atrás de uma mesa que teria, no mínimo, cem anos. Eu queria ver aquele sujeito dentro de um quarto com uma mulher nua, do tipo capa de revista! Acho que ele me fez de bobo. Escuta bem, Tânia: ele me fez de bobo!
- É assim mesmo, Astrogildo. Essa gente precisa escolher bem seus empregados. Afinal de contas, quem te conhecia lá? Concorda? Você chega com esse jeitão de indiferença e termina se ralando! Aliás, quem está por baixo, precisando, sempre acha que é feito de bobo.
- Se me conhecessem, tudo seria diferente. Vejo-me sentado e aquele cara chamando Dercy Gonçalves de “Dona Derci”. Olha, se eu tivesse tomado uma boa dose, mandaria ele se cagar. Fui educado. Aliás, tava difícil superar sua hipocrisia, seu deboche, sua ironia, seu cinismo. Ao me dar conta, estava lá fora, na calçada, com um tremendo peso na cabeça, como se tivesse levado um chifre. Arrependidão de não tê-lo mandado às favas!
- Eles são assim mesmo.
- Escute, Tânia. Aceitarei qualquer emprego, inclusive de vendedor de Carnê da Felicidade. O dinheiro da entrada é do vendedor e é pago na hora?
- Ninguém tá mais nessa de comprar Jogo da Felicidade. Tá faltando dinheiro até pro pão! Essa gente anda numa merda que faz gosto. Rico não compra carnê, para depois trocar por panelas, frigideiras e copos superfaturados.
- É verdade. Só pobre se mete nessa. E pobre tá ralado. Mal consegue uma galinha no final da semana. Mas meu caso é trabalhar. Provarei isso. Desfolharei os classificados, enquanto meus dedos suportarem.
- E eu te sustentando!
- Pô, você me ama ou engana?
- Amar um cara igual a você cansa. Nunca me deu boa vida. Jamais me convidou para jantar fora. Sequer pagou um pastel com caldo de cana. Com você, é só na base do venha a nós!
- Escuta uma coisa, Tânia, se eu tivesse seu corpo, estaria independente. Como é que você ganha dinheiro? Não é tirando dos otários? Você não faz força. Aliás, a força que faz é tirar a roupa e aguentar um vagabundo alguns minutos em cima de você. Traz para casa dinheiro limpinho, com imposto de renda descontado na fonte e tudo mais.
- O corpo é meu e eu sei como faço as coisas. Não há prazer nessas relações. Não o traio, você sabe. Trabalho por necessidade, minha e sua.
- Só não tenha prazer com esses vagabundos! Se isso acontecer, quebro-lhe a cara!
- Pare de ameaças e vá trabalhar. Com que moral você diz isso? Me dê um tapa que eu largo tudo. Aí, sim, você verá o que é bom!
- Me desculpe. Ando nervoso. Tomemos uma cervejinha. Amanhã, enfrentarei um calhamaço de classificados.
Desisti de vender carnês, verdadeiros blocos de algodão doce para cima do pobrerio. Ele não cai mais na esparrela de acreditar em prêmios fabulosos, tipo casas, carros, passeios, terrenos, barras de ouro e dinheiro. Uma senhora idosa disse-me que não era à-toa que o troço tinha o nome de Jogo da Felicidade. Era verdade. O Brasil estava atolado de arapucas, do Oiapoque ao Chuí.
Naquele morrer de tarde, depois de rodar mais que pião em mão de moleque arteiro, cheguei em casa morto de cansado, mas feliz por uma coisa: jogara toda a papelada do Jogo da Felicidade dentro de um valão. Não passaria incautos para trás.
Tânia saíra para o trabalho. Trabalho, nada! Fornicar, divertir-se e ganhar dinheiro! Sentei na varanda e tomei todas que pude. Depois, comi um angu frio com ovos e feijão e dormi. A manhã seguinte esperava-me com uma porrada de ofertas de emprego. Eu tinha que agir, senão a Tânia me mandaria para a casa da mamãe, como fizera da outra vez. Ela não acreditava no meu empenho para arrumar emprego decente.
Por volta das nove, chegou um moleque correndo e gritando meu nome.
- Seu Astrogildo! Seu Astrogildo!
Que merda. Eu estava no melhor do sono, as pernas enroscadas nas pernas de Tânia, que chegara quase de manhã da boate. Não houve jeito. Parecia que o mundo acabaria. Levantei e o atendi.
- O que é, moleque?
- Venho a pedido de sua tia. Toma o bilhete.
Agradeci. Abri o papel de embrulhar pão e li o bilhete:
"Caro sobrinho, há pouco recebi um telefonema da Empresa Mundial de Exportação e Importação. Falava o Diretor, um tal de dr. Durval, dizendo que você foi classificou em primeiro lugar para a vaga de Chefe de Expedição. Fiquei tão feliz, meu querido sobrinho, que quase tive um troço. Sempre acreditei em você. Boa sorte. Mostre para essa gente que você é da família dos Talarico Bravo da Silva! Um beijo, da sua querida tia."
Que porcaria. Acabou a sopa! Já não sei como agir para me afastar desses compromissos desagradáveis! Tânia se esbaldará com a notícia!

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