quarta-feira, 2 de setembro de 2009

O MORALISTA

Alfredo recebera educação esmerada. Cumpria com seus deveres, respeitador, bom marido, enfim, um homem de bem. Mas o instinto trazia lá reminiscências do animal irracional, como ele mesmo dizia, montando violações clandestinas na área da libido. Por essas e outras, todas as vezes em que via Doralice, o coração disparava, o sangue ardia de sensualidade, os olhos faiscavam.
Era a mulher de seu amigo e vizinho, Ronaldo Diaz, um descendente de peruano alto, cabelos negros e bastos, inteligente e de bem com a vida. Visitavam-se com frequência. A atração de Alfredo por Doralice, porém, ia um pouco além do que se permitiria nas circunstâncias. E ele não se sentia bem com isso. Afinal, tratava-se de mulher fiel ao marido. Acima de tudo, pensava, o respeito ao lar, à mãe, ao vínculo matrimonial.
Depois de questionar bastante, incapacitado de amainar as vivas emoções, diminuiu as visitas à casa dos amigos. Ao ser visitado, tinha sempre uma desculpa na ponta da língua para sair. Não estragaria a antiga amizade, nem destruiria uma família. Sua mulher notara diferenças, tanto que lhe perguntou o que acontecia. Tranquilo, respondeu que não era nada. Apenas andava atarefado com os relatórios da empresa.
Em decorrência da situação criada pelos sentimentos luxuriosos, abriu mão de uma série de outras visitas, inclusive à sua mãe e irmãos.Quanto às desculpas para ausentar-se, quando Ronaldo e esposa chegavam, dizia à mulher ser pura coincidência.
Já não suportava tanto engodo! Tanto foi que, certo dia,
anunciou que o transferiram para outra cidade. Não adiantaram os lamentos da mulher inconsolada. Em duas semanas, mudaram-se. Ela esbravejou, ameaçando com a separação. Mas partiram. Antes, contudo, não fugiu à festa de despedida em sua casa, onde reuniu vários casais com ele bem relacionados. Naquela noite, Alfredo testificou seu intenso desejo de possuir a mulher de Ronaldo. Somente não se lançou à empreitada de conquista, porque era sério, senhor de senso ético forte.
Respeitava as famílias; movia-o fé fervorosa. Era homem de ir à missa e comungar aos domingos. Para dizer bem de sua carolice, foi o fiel da paróquia que mais protestar, quando mexeram no molde confessional da igreja. Gostava de ajoelhar-se diante do padre e abrir o jogo. Nunca escondia nada. Sua inteireza moral era louvável. Por tudo e mais um tanto tramado no seu ardor concupiscente, afastar-se-ia do casal amigo. Já não suportava as impulsões desnorteadoras.
Contudo, sua mulher não conseguia ficar longe dos parentes e dos amigos. Fazia viagens frequentes à antiga cidade, onde os visitava, bem como assim aos amigos. Retornava para casa feliz, relatando os encontros, inclusive com Doralice e Reinaldo. No fundo, Alfredo gostava que sua mulher visitasse o casal. Não pretendia, era evidente, o rompimento da amizade, só porque o pecado lhe rondasse a porta. Não, isso não. Seria infantilidade.
Alguns meses depois, Reinaldo e Doralice aparecem de surpresa. Tudo bem. O tempestuoso sentimento dera uma trégua, aquietara-se. Manter-se-ia aquietado durante um fim de semana.
Conversaram muito, colocando a agenda em ordem e, à noite do primeiro dia de visita, sentaram-se para uma partida de buraco. A felicidade de sua mulher transcendia, bem como assim a das visitas.
Lá pelas tantas, flagraram Cidinho, filho de Alfredo, garoto mais que levado, empurrando um enorme vaso sobre um tripé. Colocava-se em visível estado de perigo; poderia lhe cair o objeto sobre a cabeça, com consequências imprevisíveis. Foi só um grito de Doralice e a mulher de Alfredo se levantou de súbito. Entretanto, ela não se livrou do cipó entrelaçado do assento da cadeira. Sua calcinha ficara presa numa ponta dele, no beiral da cadeira. Todos presenciaram a cena, inclusive Alfredo, que se levantara para acudir o menino. Inexplicável o fato de a calcinha ficar presa na cadeira, justo pelo elástico da cintura. Só se estivesse arriada até o meio da coxa. Criou-se situação desconfortável, mas ela se ajeitou e o jogo prosseguiu meio sem graça, mais por parte de Doralice e Alfredo; pela cara, Reinaldo não se abalara, dizendo, inclusive, que aquilo acontecia com cadeiras populares, farpadas, constituíndo-se, algumas vezes, em fonte de lesões. Só não explicou como a calcinha se prendeu pelo elástico da cintura...
Alfredo foi dormir sem graça. Não tocou no assunto com a mulher. Remoeu o acontecido. No dia seguinte, não muito tarde, o casal se foi.
A vida seguiu. Na semana seguinte àquela visita, a mulher de Alfredo aprontou-se para uma visita aos parentes e amigos. Nessas ocasiões, passava de dois a três dias em andanças. No mesmo dia de sua saída, à noite, Alfredo recebeu um telefonema. Era o detetive particular contratado para seguir sua esposa. Afinal, quando eram noivos e jogavam cartas, ela gostava que Alfredo colocasse o dedão do pé nas suas intimidades. Para tanto, arriava as calcinhas até o meio da coxa. Do telefonema, não colheu notícia boa: sua mulher encontrava-se num motel, em companhia de um cidadão de nome Reinaldo Diaz. Alfredo foi ao desespero.
De madrugada, a pressão era insuportável. Após breve leitura de textos bíblicos, sua força moral levou-o a tomar atitude extrema. Dirigiu-se à garagem e apanhou o recipiente com veneno destinado a ratos. No seu entender, comprava passagem para uma vida melhor.
Para sua mulher, não havia necessidade de bilhetes. Sua família, porém, recebeu uma carta, onde, ao fim, dizia que enterrariam um corpo moralmente falido, diante do acontecido nos bastidores de seu casamento. Disse, ainda, que tudo mudara e que só ele ficou a ver navios.
Para essa tragédia, quem apontaria culpados?



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