quinta-feira, 10 de setembro de 2009

A COBRA GUARDIÃ

Havia um trecho piscoso do Rio Paraíba do Sul, divisa de Minas com o Estado do Rio, onde não ousavam pescar. Os antigos alertavam sobre a existência de enorme cobra vigiando de margem a margem. Os pescadores nunca a viram, mas a respeitavam.
Era aviso de pai para filho. O local ficava abaixo da hidrelétrica da Ilha dos Pombos. Povo desconfiado, nem chegava perto da área esconjurada. Divertia-se noutras paragens. Havia rio demais para se preocuparem com trecho tão insignificante.
Caetano não era de crendices. Para ele, superstição significava carência de neurônios. Não se abalava com fantasmas, bruxas, cobras gigantes, vampiros e por aí afora. Nascera na cidade do Rio de Janeiro. Até ali, aprendera que o perigo morava dentro do homem. Assistira a coisas do arco da velha, inclusive já tropeçou em cabeças decapitadas por bandidos; conviveu com assaltos, estupros, sequestros, assassinatos brutais. Não tinha medo de balas perdidas. Assim, como ter receios de uma cobra, conhecida há anos como guardiã de um pedaço de rio? Pura gaiatice, pensou.
Aposentado, comprou um sítio defronte ao rio, próximo ao local perigoso. Ouvira a advertência, acreditando que o IBAMA fora quem plantara a idéia, visando a preservação de alguma espécie animal ou vegetal. Na região, margeia o Rio Paraíba respeitável mata.
Com o tempo, verificou tratar-se de assunto arraigado no espírito da comunidade. Sentiam arrepios só em falar no tamanho da cobra, seu furor e seus desígnios assassinos. Caetano ria-se por dentro. Educado, não contrariava os velhos moradores, que incutiam nos descendentes o estigma macabroso. Sua mulher se reservava. Não dizia que sim, nem que não. Os dois filhos não olhavam para as bandas enfeitiçadas do rio. Às vezes, preferiam não pescar. Liam, assistiam televisão, conversavam. Talvez a juventude mexesse com eles, pois leve temor balançava suas almas.
Certa feita, Caetano bandeou-se para os lados de Além Paraíba, acima da represa, onde, diziam, pescava-se muito piau. Retornou de fieira vazia.
De volta, uma luz! Havia peixe no tal lugar proibido. Ali não batiam tarrafa ou lançavam anzol, razão da piscosidade, em especial no poço entre as pedras tomadas de ingazeiros.
Esse negócio de superstição é coisa de trouxa! - Pensou, dirigindo-se para a margem direita, justo onde os mais crentes alardeavam encontrar-se o ninho da cobra, seu local de descanso após engolir intrusos. Entre os arvoredos, meio que sobre uma ilha de pedras de todos os tamanhos, sentou-se com seu equipamento de pesca. Vara para um lado, isca para outro, montou o instrumental. Não decorrera meia-hora, abarrotara o samburá. Nem lhe passavam pela cabeça as papagaiadas da vizinhança, sobre o perigo representado pela anaconda. Tanto que, sem pressa, tomou uma folha de bananeira, sobre a qual preparou um dourado para assá-lo sobre a laje de pedra. Nesse momento, soou uma sirene. Caetano não se tocou tratar-se de aviso da casa de máquinas das comportas. As aberturas G e H liberariam água em poucos instantes. Os variados avisos da hidrelétrica no correr do rio alertavam que, tocada a sirene, deveriam deixar o leito do rio e suas margens imediatamente, sob pena de ver periclitarem suas vidas, diante do roldão d'água descendo leito abaixo. Assim foi. Distraído, Caetano só despertou quando o barulho intenso explodiu perto de seus ouvidos, já não dando tempo para nada, senão subir num ingazeiro antigo, agarrar-se em seus galhos e ali ficar, até cessasse o turbilhão assolador. As águas levaram a eito todos os seus pertences. Ficou apenas com a roupa do corpo. "Ah, daqui a pouco a água baixa e saio daqui!" - Pensou.
O tempo escorreu, até que se passasse das dezoito horas. Entrava-se no crepúsculo. Passou-lhe a hipótese de escurecer e as águas não baixarem. Se lesse jornal, teria verificado que chovera muito em São Paulo, no Vale do Paraíba. Nesses casos, são frequentes as manobras na hidrelétrica, às vezes se demorando em reduzir o esgotamento do excesso d'água. Agarrara-se aos tenros galhos; estava nas grimpas àquela altura, totalmente indefeso em relação aos múltiplos perigos, dentre eles, as cobras venenosas que se envolviam na galhadura dos ingazeiros, arrastadas pelas águas das matas das margens. Foi então que sentiu sentiu uma picada na perna, picada ardida, penetrante, estranha. Pensou nas formigas. Qual nada! Fora picado por uma jararaca! Duas pequenas perfurações marcadas a sangue ficaram à vista de Caetano, ainda no lusco-fusco da passagem do dia para a noite. Mas essa agora! Preciso de socorro, senão morrerei envenenado! - Pensou. Gritava, ninguém ouvia. A corredeira ensurdecia.
A noite, agora, era pleno breu. A perna inchou. Brotaram-lhe ínguas. A água mantinha o nível alto. Os braços doíam, pouco se firmando nos galhos balouçantes. Os efeitos do veneno devastavam-no. Caetano perdia a noção das horas. Uma lanterna percorria a margem esquerda. Gritou a todo fôlego, mas foi inútil. As águas revoltas ensurdeciam. Em diante, longe dali, luzinhas do povoado rebrilhavam. Encontrava-se distante da casa de máquinas, numa das curvas do rio. A madrugada ia alta. Apavorado, ele amarrara as pontas da camisa e "se abotoara" num galho grosso, aliviando os braços. "Quando meus filhos amadurecerem, continuarão acreditando na existência da anaconda?" - Imaginava, num misto de cansaço e delírio. Lembrou-se do trato que fizera com o vizinho, para dividir as despesas da cerca. Construiriam, também, um açude para engorda de peixes. Não era coisa difícil.
Parecia que as águas batiam nas pedras e árvores com mais violência. A certa altura, Caetano levou a mão direita aos lábios; sentiu-os formigando. Tratava-se de entorpecimento fruto do veneno. A perna direita, era como se não a tivesse; a esquerda doía, dor aguda, como sendo arrancada do corpo. "O veneno da vadia provoca sensações surreais!" - Esbravejou.
A calça apertava a perna, estrangulando-a. Era o inchaço. O antídoto estava próximo, no posto de saúde. "Se saio daqui, as águas levarão meu corpo para Campos, em direção ao Oceano Atlântico, onde desemboca o Paraíba."- Lucubrou tenso.
De repente, um estrondo de águas rebuliçosas, árvores se partindo, barreiras se rompendo nas margens e pedras se batendo. O mundo vinha abaixo. Sequer deu tempo de gritar. Havia expectativa para tudo, menos para o ocorrido. Uma enorme pedra se desprendera e rolou em direção ao ingazeiro, projetando-se sobre o corpo de Caetano, juntando-o, como num sanduíche, ao tronco da árvore. Não sobrou osso inteiro, alguns espetando a própria árvore.
Ao amanhecer, ao acharem o corpo, depararam-se com os ossos moídos e a carne escurecida, efeito do veneno. A inchação deformara-o completamente.
Um antigo morador observou: " Eis o destino dos descrentes. A anaconda triturou-lhe os ossos, envenenou o corpo. Chegará o dia em que todos obedecerão à serpente guardiã."

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