sexta-feira, 4 de setembro de 2009

DECISÃO

Estava difícil. O Homem bebia todas as noites e gritava com a mulher e os filhos. Enquanto o vômito voava dentro do banheiro, excomungavam-no. Era fedentina dos diabos, mistura de torresmo com amendoim, salsichão com salada russa, tudo regado a vinho batizado pelo dono do bar, falsificação sem freios e arreios que, por tostões, viabilizava, além de um baita porre, muitas outras desgraças.
Rosa, filha mais velha, era linda e cobiçada. Os irmãos sofriam com o bate-boca do casal, até que a manhã despontasse. O pai tomava café e rumava para o porto. As crianças, para o colégio. Rosa frequentou escola até os doze anos; para além, faltou-lhe uniforme e material escolar. À decisão de abandonar a escola, não houve resistência, pois ajudava a mãe em casa, que gostava da companhia da filha. Ao seu lado, esquecia os problemas criados pelo marido.
Um dia, o velho sentiu dores no fígado. O médico diagnosticou cirrose hepática! Seu estado levou-o à aposentadoria. Recebia proventos miseráveis; pouco atendiam à subsistência das sete bocas. De tudo por tudo, dependiam daqueles parcos recursos. Rosa resolveu trabalhar. Empregou-se no bazar de um árabe viúvo, residente nos fundos do comércio.
O tempo levou Rosa a se inteirar das condições de vida do patrão. Sozinho, ele preparava suas refeições. Penalizada, Rosa colocou-se ao seu dispor para fazer o almoço. Ele exultou. Não cansava de elogiar a comida. Até engordou! Um dia, sem arreganhos, perguntou a Rosa se queria viver com ele. Ela se espantou. Virou a costa e foi para o balcão. À noite, ao deitar-se, pensou na proposta do homem solito e de razoável condição econômica. Dia seguinte, ele pediu desculpas a Rosa. Reconheceu a ousadia junto a quem tanto o ajudava.
As coisas pioravam na casa de Rosa. A irmã mais nova menstruara. Sequer havia papel higiênico. Usavam lencinhos de roupas velhas. Três moças, eram varais e varais secando dezenas de pecinhas íntimas. A vizinhança olhava com pena. O pai, na bebida, apressava a morte.
Numa segunda-feira, Rosa foi trabalhar com um vestido sensual. Fingindo não ver o árabe, acertava o sutiã com um dos seios à mostra. De repente, sentiu-o às costas, ofegante.
- Perdoa-me, Rosa, mas não resisti! É lindo!
- Oh, que imprudência! Por que não fui ao banheiro? – Disse a jovem comerciária.
- Desculpa! Eu é que não podia estar aqui! Mas gosto muito de você!
Lágrimas nos olhos, manifestando pundonor evidentemente dissimulado para aquele momento, levantou a cabeça devagar e perguntou ao constrangido patrão:
- Verdade?
- Sim. Você tem algum compromisso amoroso?
- Não tenho. Compromisso de pobre é lutar pela sobrevivência.
- Posso lhe dar o que quiser, sabe disso.
- Minha idade... Tenho dezessete anos. Sou menor e virgem.
- O que tem isso? O amor não escolhe idade.
Ele precisava de alguém. Rosa sabia disso. Em diante, muita coisa mudou na vida do solitário comerciante. Passou a andar bem vestido, cabelo aprumado, barba feita. Acontece que a diferença de idade era de quarenta anos!
Havia choro. Rosa ansiava melhor destino para seu corpo, um jovem esposo. Mas esperar essa realidade seria jogo arriscado. As emoções transluziam tristezas e mágoas. Sob sua ótica, homens e mulheres eram sombras e sonhos perdidos; transes, revoltas e vazios.
Pelas ruas, sentia o triste silêncio dos seres e das coisas; porém, não receava diante dos escuros. Leve sensação tomava-a de vez em quando, diante dos gritos interiores, indicando presságios. Rosa conhecia a gente sofrida, não curada; no entanto, não se entregava. Eram pessoas peregrinando ao longo das estradas, rumo às emboscadas da vida. Nas calçadas, sobravam lamúrias, notícias de agruras, amarguras inominadas, vontades sobre mortalhas, caminhos sem volta, gargantas sem voz. Mãos estendidas traziam
remédios tardios; a reza já não curava pecados; a voz da promessa era cantiga nojenta; o gosto de sangue explodia nas bocas: era a dura sentença dos corpos marcados. Navalhas afundavam na carne trêmula, decreto fatal carcomendo esperanças, fabricando manchetes para o dia seguinte, constituindo-se no rubro limite entre a dor e a tragédia. Os golpes desferidos pelo tempo curvavam idades sem volta, forjando disfarces no espírito-pranto, à luz dos sorrisos e gestos engodatórios.
Rosa se envolvera em brumas. Fazia-se necessária uma decisão. Não ficaria inerme. Tomaria um norte, fatal ou aberto ao amor e à vida. Qual fosse o caminho, porém, todos a levariam a algum tipo de morte. Mas não importava, diante do que via ao chegar em casa. A mãe em desespero; o pai agarrado à aguardente; os irmãos ao deus-dará.
Não demorou, Rosa tomou a frente das decisões:
- Creusa e Cremilda estão empregadas. Mamãe, em uma semana mudaremos desta casa. Pedro e Nataliel estudarão e trabalharão. Zezinho ajudará na casa, até se ajeitar. Eu e o patrão casaremos.
O pai, ouvidas as ordens da filha, gritou do corredor:
- Quem manda aqui sou eu! Ninguém vai a lugar nenhum! Você não casará com aquele turco de merda, velho nojento! Quero mais para minha filha!
Rosa virou-se para o pai e disse:
- Esquecia, papai. O senhor será internado no Hospital de Caridade. Curaremos a bebedeira e a cirrose hepática. O resto que se falar dentro desta casa é baboseira! Já sofri as mazelas possíveis! Agora é viver! Preparar o futuro, o meu e o de vocês. Tenho dito!
Dali, foi para o quarto chorar.

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