quarta-feira, 2 de setembro de 2009

O CIUMENTO

Zeca Barros roía-se de ciúmes. Mas suportava o tirão diante dos rabiscos de olhos atirados para cima de sua linda mulher. Disfarça daqui, disfarça dali, aparentava seriedade de zorrilho atolado. No verão, Dolores viajava para o Balneário do Rio Camaquã, onde inaugurava biquínis sumaríssimos. Aí, a coisa enfeiava!
Quando o uso de calça comprida para mulheres se tornou comum, ele quase morreu. Como pedir-lhe para não usá-la? Mortificava-o vê-la desfilando com a roupa grudada ao corpo, exibindo as formas tintim por tintim, despertando a imaginação luxurienta dos homens e, quiçá, de alguma duvidosa.
Ele sabia que ciumeiras abalavam o casal. "Sei que ciúme além da conta faz as mulheres enjoar dos homens" - pensava. Essa a razão de aguentar o tranco, triste que nem carneiro abichado na guampa.
Na época da anágua, piscava para Dolores, indicando-lhe a ponta da veste interna ressumbrando fora do vestido. Nunca se sofreu tanto, por causa do desgraciado sentimento! Sua alma era um caldeirão de amargores. Avolumava-se a cada decisão de não demonstrar ciúme.
A coisa era tão forte, que até de febre de origem desconhecida ele padecia. Professores secundários, ambos recebiam muitos amigos em casa. Era raro não aparecer visitas nos fins de semana. Zeca desconfiava até da sombra. Ficava zureta com Dolores, quando lhe aplicavam beijos de cumprimento. Reclamar, como? Cairia no ridículo, caso se irresihnasse diantes de tais manifestações de carinho. Já ele não cumprimentava as amigas com beijinhos. Fazia-o de propósito. Era uma forma de mostrar seu contragosto às intimidades com sua mulher. Não adiantava. Tanto foi que, como a calça comprida, passou a aceitar tais cumprimentos como normais. Ele mesmo passou a receber as colegas com um beijo na face. Nada de três beijinhos - para casar, como diziam. Nas reuniões sociais, não desgrudava da mulher. Ai se ela conversasse a um canto com alguém! Não dormiria à noite.
Dolores conhecia o marido que tinha, mas não imaginava a intensidade do ciúme. Bonita, professora de história requisitada, excelente mãe, dona de casa e boa amante, Zeca não desgrudava.
Não bastassem os transtornos do cotidiano, Zeca desconfiava que a mulher mantinha relações íntimas pensando noutros homens. Essa idéia tornou-se fixação.
Como acontece, novela tem sempre um galã, o bonitão conquistador, ideal, forte, valente, protótipo do amante mais-que-perfeito, do marido que as sogras desejam para suas filhas. Como não dava aulas à noite, Dolores acompanhava a novela das oito com atenção. Como se diz, era fissurada por uma novela. Zeca não suportava. Certo sábado, após o noticiário, Zeca permaneceu defronte à televisão e acabou assistindo à novela. Pra quê?! O galã, jovem empresário e solteiro, relacionava-se com uma mulher casada. Zeca assistiu logo os capítulos mais quentes, quando o casal se apresentava em encontros ardentes, na cama de casal da infiel. A cara do ciumento esquentou; o coração descompassou; a cabeça era um redemoinho. Naquela noite, fingiu-se com dor de cabeça e não quis intimidades com Dolores. Só cara feia. "Certamente, ela pensa naquele cafajeste, enquanto o boboca aqui é corneado descaradamente. Comigo, não!" - Pensou ele, com a alma cheia de grilos. Aqueles pensamentos não ficaram por ali. Reforçaram-se no dia seguinte. Teve vontade de tirar uma peça da televisão, avariando-a, até terminasse a novela. Porém, pensou nas crianças, nos programas infantis e por aí afora. Ao demais, teria que levar a televisão para conserto e o dinheiro estava curto. Por outro lado, levantaria suspeitas, caso ele mesmo mesmo encontrasse o "defeito" algum tempo depois. Ainda por cima, Dolores sabia que Zeca não entendia nada de nada, quando se tratasse de aparelho elétrico ou eletrônico. Durante toda a semana, Zeca se furtou a qualquer contato mais aproximado com Dolores. Ora alegava cansaço, ora dor de cabeça, ora preocupação com as prestações da geladeira.
No sábado seguinte, resolveu permanecer e assistir aos capítulos daquela noite. Lá estava o gostosão! De seu personagem, ninguém sabia a profissão, o que tocava, donde provinha a grana do feijão com arroz. Estava sempre atrás de uma enorme mesa, ao lado de belas secretárias. Era empresário, ninguém sabia de quê. Passava a novela inteira bolando um meio de fornicar com a amante casada.
Ela, a infiel, cheia de cinismos, servia o café da manhã ao marido, dava-lhe beijinhos quando este saía para o trabalho, enfim, uma grande mulher na idéia do guampudo.
Zeca imaginava Dolores dando-lhe beijinhos pela manhã, ao sair para dar aulas! Também aquela noite foi de solidão para Dolores. A cabeça de Zeca fervia. Nem se quisesse conseguiria algo na cama. Andava mais cego que gato embolsado.
Pela manhã, apanhou o jornal, sentou-se na varanda, acendeu um cigarro e percorreu o noticiário. Na capa, uma chamada interessou-lhe: "Marco Coralles e Suas Confissões Íntimas - Caderno da TV". Não perdeu tempo, buscando a notícia. De repente, suas feições transformaram-se. Encheu-se de estranha felicidade. Ali, Marcos Coralles, o machão da novela das oito, dizia-se homossexual, acrescentando que era muito feliz ao lado de seu homem, há mais de dez anos. Zeca levantou-se e saiu gritando pelo nome de Dolores.
- Dolores! Dolores! Onde está você?
Logo surgiu a mulher, tomada de espanto.
- O que houve, Zeca?
Resfolegando, soltou a voz:
- Olhe aqui! Não disse que esse cara era bicha? Logo que o vi, senti que não gostava de mulher!
- O que está dizendo? Nunca falou nada sobre isso.
- Nunca? É... acho que só pensei! Tudo bem.
- Ao demais, que Marcos Coralles seja boiola, já é coisa antiga. E quer saber, Zeca: sinto nojo desse cara!
Dolores olhou para o marido se afastando com o caderno da TV apertado nas mãos, vibrando da mesma forma quando seu time faz um gol. Fazer o quê? Voltou para a cozinha para terminar o prato predileto de Zeca: bucho com batatas e agrião. Afinal, agradá-lo era preciso, pois fazia uma semana que estava a pão e água. Pela cara do Zeca, acreditou que o jejum terminaria naquela noite.
E foi o que aconteceu. Pareciam em lua-de-mel.

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