quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O SERTÃO VAI VIRAR MAR. E VIROU

Balduíno, sertanejo forte! Crescera sob a vergasta das estiagens prolongadas, remoendo as adversidades da caatinga, cujo solo esturricado prometia dor e desânimo.
Ainda jovem, rendeu-se ao sonho. Casou e partiu em busca da realização familiar. Rosa fora seu primeiro e único amor. Depois - só Deus sabe como! - plantaram um rancho de pau-a-pique às margens do leito seco de um rio. Os anos trouxeram três filhos; com eles, o sentido amargo da desilusão. Dois faleceram ainda bem novos, sob a peçonha da fome.
O leite de Rosa não passava do colostro. Ao depois, era água com gotas de limão, adocicada com mel extraído da raiz do xiquexique. Um pouco mais crescidinha, a criança recebia pão de macambira, bromélia de duras e espinhentas folhas, sem qualquer valor nutritivo. Também se comia pão bró, alimento grosseiro feito de ouricuri, sem sustança qualquer. Os filhos, magérrimos e desnutridos, ganhavam da vida pouquíssima estrada.
Era seca braba! Balduíno não lembrava da última vez em que a roça lhe rendera algum feijão-de-corda, milho e macaxeira. Inclusive, pensou em partir para a cidade grande, visando salvar o filho restante. Mas, ao divisar nuvens, as esperanças se renovavam.
- O céu ainda se tomará de muitas nuvens! Choverá vários dias e agradeceremos a Deus pela dádiva! Os rios transbordarão; a terra encharcará. Teremos comida e seremos felizes!
Eis a reação de Balduíno, diante das súplicas da mulher para sair daquele inferno, onde até os bichos mais resistentes se negavam a viver.
Certa madrugada, trovejou. Eram muitos trovões. Balduíno saiu para o terreiro e rezou. Agradecia aos céus. Lembrou a Rosa sua profecia. Não demorou, relâmpagos e chuva! Era água que Deus dava! Quanto mais chovia, mais Balduíno orava, agradecendo ao Criador.
Agora, ele e a mulher dançavam no terreiro sob a chuva torrencial. Na sua imaginação, brotavam dos campos verdor exuberante. Antevia milharais e mandiocais vicejando; paióis abarrotados. Galinhas, porcos e vacas traduziriam a fartura no sertão. Pensou nos filhos que morreram sem assistir àquele milagre.
- Não lhe disse, mulher, que um dia Deus olharia por nós?
- Você tinha razão, Balduíno. Eu duvidava!
Dançavam e a chuva caía. Parecia um dilúvio, tanta era a água e os trovões. Balduíno, que construíra o barraco às margens do leito seco de um rio, agora ouvia seu marulhar.
- Ouça, Rosa! É o rio correndo no sertão!
- Sim, Balduíno! Água não nos faltará! Deus ouviu nossas preces!
Após a festa e os agradecimentos, retornaram ao casebre. Constataram com indiferença as muitas goteiras. Balduíno lançou mão de uma garrafa de aguardente, cujo conteúdo tomava em doses homeopáticas. Dessa vez, tomaria goles fartos, comemorando a chegada de um novo tempo. A luz da lamparina tremulava, tal a rebeldia da tempestade. Nonatinho, assustado com os clarões, embrulhou-se nuns trapos sobre o catre. Rosa estava feliz. Recostou-se à espera do amanhecer, que tardaria. Balduíno apagou o lume e se deitou ao lado de Rosa. O acontecimento despertou desejos. A vida desgraçada estava por um fio. Doravante, tudo seria diferente.
Lá fora, chuva grossa e incessante. O barulho ensurdecia. Por volta das quatro horas, Balduíno e Rosa despertaram assustados. Tudo tremia. O rancho desmoronava!
- Acuda-nos, Nosso Senhor! - Suplicou Rosa, diante da tragédia que se avizinhava.
Naqueles ermos, foram as últimas palavras ouvidas. O rio caudaloso subira mais e mais, levando tudo de roldão, arrastando a casa como uma folha. Com ela, o esperançado Balduíno, sua mulher e seu filho.
Durante dias seguidos, a chuva se manteve intensa. No local onde moravam, o nível do rio subira mais de dois metros, encenando temível corredeira.
Uma outra profecia substituíra-se a de Balduíno: "O sertão vai virar mar." E não deu outra. Uma vez mais a miséria pagara a conta pelos excessos da natureza.
Ninguém percebeu o sumiço da família. Miséria nunca teve endereço certo.

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