sábado, 29 de agosto de 2009

O PAI E O FILHO

O homem saltou da cama cedinho. Encontraria o pai de qualquer maneira. Não importava o tempo da busca; iria em frente. Largou poesias, contos, vinhos e noites. Fechou a agenda e esqueceu os telefones. Sequer atenderia à repartição estadual do Tesouro, onde trabalhava; comunicou que faltaria, por motivo de doença. Permitiu-se à mentira, diante do acúmulo de férias não gozadas e licenças-prêmio convertidas. A ficha funcional recomendava-o com louvores.
Como nunca, bateu-lhe a certeza de que traria o pai para junto dele.
Quanto sofrimento estaria passando? - Pensava.
Ao colocar o pé direito na rua, atendera à superstição, visando atingir o objetivo perseguido desde a juventude. Não o perderia dessa vez.
Estaria num bar? Numa esquina? Sob uma marquise? Num banco de praça? Ou seria dos que andavam no anonimato dos excluídos, à beira das estradas?
Passavam caras de todo tipo, das quadradas às retangulares, das redondas às retilíneas. Seus passos pisavam becos, ruas e avenidas. Alguns rostos aproximavam-se do procurado. Só se aproximavam. A fisionomia era a de um homem que partira há muitos anos; que saíra pelo mundo buscando não sabia o quê. Talvez partisse para morrer, na bebida ou algo parecido. Oh, não, papai não era tolo! - Pensava, enquanto se lançava sobre paralelepípedos oleosos e poças d'água.
Havia mendigos, vendedores ambulantes, engravatados, operários, motoristas, bêbados, muita gente! O homem não identificava a função da maioria. Manhã de quinta-feira, as caras eram todas de quinta-feira, à exceção dos mendigos e bêbados. Mas seu pai era um deles. A angústia impedia sofreasse o ímpeto da procura.
Contara-lhe a mãe que seu pai chafurdara na bebida, atirando-se em trágico destino. Transformara-se num trapo fedendo a cachaça. Quando criança, ouvira dela que o pai abandonara o lar sem qualquer justificativa. Dissera-lhe, também, que conviveria com um cão, mas não coabitaria com seu pai. As informações soavam confusas e contraditórias. Com o tempo, porém, as mentiras vieram à tona, mostrando sua mãe como a verdadeira causadora da desgraça de seu pai. Ciente, pois, da verdade, abandonou a mãe e, desde então, procura pelo pai.
Com a tarde, chegou a aflição. Demorara para decidir; não voltaria para casa sozinho. Se o fizesse, poria termo à vida! Perturbava-o imaginar que seu pai sofria.
O movimento no centro da cidade atraiu-o. As caras passavam como bonecos animados diante de seus olhos súplices. Andava a passos lentos, revendo retratos memoriais. Um redemoinho no inconsciente facilitava-lhe delírios. Entrou num bar, tomou café, com a visão sempre voltada ao movimento na calçada, dinâmica irresistível à sua ânsia de procura. Ao sair, assumiu a multidão, logo esbarrando num velho de passos arrastados. Desculpas. Ao desculpar-se, as caras se confrontaram. O velho seguiu. O homem parou, acompanhando o velho com os olhos. De repente, desperta: É ele! E vai atrás. Passam-se os minutos. Anoitece. O movimento nas ruas diminui. O velho dirige-se a uma vila miserável, junto ao lixão, ingressando num beco curto e escuro. O homem se desdobra para não ser notado. Diante de um barraco coberto de tábuas, paredes de papelão e isopor, o velho desamarra a corda que prende um compensado marítimo, fazendo as vezes de porta. Entra, acende a lamparina e inicia fechar o barraco, quando o homem se anuncia.
- Quero lhe falar!
O velho suspende a lamparina até a altura do rosto e exclama:
- Você me esbarrou no centro da cidade!
- Sim, esbarrei.
- Que quer de mim?
- Saber se o senhor é o meu pai!
- Seu pai? Não é possível!- Exclamou o velho!
Após instante de silêncio, aproximou a lamparina do rosto estático do visitante. Outra exclamação e uma indagação:
- Inacreditável! Então... é o meu filho?
- É o que penso. Não posso me enganar mais.
- Digo-lhe o mesmo, meu filho.
- O que esperamos? Venha!
- Para onde?
- Minha casa. Devolver-te a paz que perdeste há anos.
No caminho, o velho falava de sua felicidade. O reencontro reacendeu a alegria no homem.
- Por onde andou durante esse tempo?
- Estudei. Formei-me em Direito. Sou funcionário público estadual. E o senhor, o que faz?
- Sobrevivo catando papel, papelão, latas e garrafas. Confesso-lhe que imaginava esse encontro. Até hoje, minha vida foi olhar as caras nas ruas.
- É o que faço desde jovem.
Conversaram sobre as aflições durante a procura de um pelo outro. Um forte e demorado abraço selou o reencontro.
No apartamento, o homem disse para o velho:
- Amanhã será um dia diferente, de reinício.
- Concordo, filho. Matemos o passado. Sepultemos as dores. Cansei de sofrer.
- Eu também, pai.
- Deus te abençoe, meu filho.

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