segunda-feira, 31 de agosto de 2009

HOMENS E BOTOS

A passeio na capital do Amapá, naveguei pelo Rio Amazonas, iniciando roteiro na hidroviária de Santana.
A ausência de hidroviária na Capital deve-se ao fato de o Rio Amazonas, ali, ser de pouco calado.
O destino era Santarém, no Pará. Dirigi-me ao camarote, onde, além de frigobar, havia local para atar rede, cama e ar condicionado. “São Francisco” era o nome do barco. Recebia em torno de cem passageiros. A paisagem deslumbrante da floresta, das ilhas, das várzeas, dos búfalos, das aves, enfim, tais cenários não tinham preço.
A primeira parada foi na hidroviária de Almerim. Ali, implantaram o Projeto Jari Celulose e Jari Caulim. Tudo começou com o Projeto Agropecuário do Jari, por iniciativa do norte-americano Ludwig, agora tocado em pequenas proporções por um consórcio nacional.
Seguindo viagem, o barco atracou na hidroviária de Prainha, cidade do interior do Pará, com cerca de 3.000 habitantes. Ainda no trapiche da hidroviária, observei as pernas de uma senhora debruçada no parapeito que dá para o leito do rio. Pareciam cicatrizes de arranhões profundos. Indaguei-me sobre o que teria acontecido com a jovem mulher. Uma onça, uma cobra com suas presas, um jacaré ou algo que o valha? A curiosidade me picou. Não deixei para depois.
- Olá, senhora! Sou de São Paulo e estou a passeio pela Região. Como muitos a bordo, também desci para e conhecer o lugarejo.
- Seja bem-vindo.
- A senhora reside aqui?
- Sim. Eu, meu marido e dois filhos.
- Ah, vocês devem ser muito felizes morando nesse paraíso, mesmo diante dos perigos da selva.
Ao que a Senhora emenda:
- Não só da selva, mas também os perigos do Rio Amazonas.
- Acredito que vocês, ribeirinhos, estejam precavidos contra as emboscadas da selva e do rio.
- Sim, estamos. Mas, às vezes, não depende da gente evitar que aconteçam certas tragédias, como foi o caso acontecido com meu primo, que perdeu uma perna devido a uma mordida de jacaré, no pátio de casa, quando cuidava das galinhas e dos porcos. Não foi descuido, pois se tratava de atividade do dia-a-dia cuidar dos animais.
- Vejo que o perigo está na rotina dos habitantes da cidade.
- Sim. Veja o senhor que, quando eu era criança, viajando de Prainha para Santarém com mamãe, à noite, enquanto ela dormia, fui para a parte aberta do convés. Dali para o leito do rio foi um pulo. Antes do amanhecer, mamãe sentiu minha falta e se desesperou. Desceu na hidroviária seguinte, na cidade de Monte Alegre. Lá, comunicou o fato às autoridades locais, que providenciaram na imediata divulgação dos fatos às embarcações, via radiofonia, e às cidade ribeirinhas periféricas, para procurar o corpo. Caí na metade do caminho entre Prainha e Monte Alegre. Estávamos a três horas de viagem, numa região conhecida como Caitucá.
- Qual era a sua idade?
- Cinco anos. Na verdade, não fui culpada. Se a proteção lateral da embarcação fosse eficiente, não teria passado no vão e caído na água. Hoje em dia, as embarcações são teladas por determinação da Capitania dos Portos. Durante a noite, tudo fica mais difícil no meio do rio.
Já muito cedo, os pescadores da região iniciaram as buscas nas praias, margens das ilhas, nas proximidades dos aguapés, canaranas, monturos de capim nativo, raízes à mostra dos aningais, manguezais e outros vegetais ribeirinhos.
Um pescador solitário corria às margens à procura de seus matapis, suas malhadeiras, visando colher camarões e peixes, quando escutou um choro vindo das margens, direção a um monturo de canaranas, tipo pequena ilhota flutuante. Dirigindo-se ao local, observou a presença de alguns botos. Eles pareciam me proteger até que chegasse socorro. Evidenciara-se que, caindo na água, os botos me acudiram. Estavam ali, porque os botos tucuxis acompanham os barcos de linha, para se alimentarem dos restos de alimentos jogados no rio. Ao verificarem que eu estava viva, algo que não sei explicar, como de resto ninguém explica, aconteceu. Dizem que o choro da criança é idêntico ao choro dos filhotes dos botos. Aí a única explicação que encontro para justificar a pronta tentativa de salvação a que se dispuseram os botos naquela noite. Lembro-me que não era um só, mas vários, empurrando-me em direção às margens. Alguns puxavam pelo vestido, outros me empurravam pelas costas. Senti que eles faziam de tudo para não deixar meu rosto submerso. O comportamento mudou a certa altura, quando não mais me mordiscavam, ferindo minhas pernas, mas me empurravam com o bico. As lesões na perna causadas pelos empurrões com o bico foram a causa das cicatrizes que despertaram sua atenção.
Interrompi, para perguntar como é que ela sabe que as cicatrizes chamaram a minha atenção, pois ao abordá-la nada mencionara sobre a perna. Ela respondeu que era assim que acontecia com todos os que dela se aproximavam para saber sobre a natureza das cicatrizes.
- É verdade que, durante algum tempo, imaginavam que, mordida por um jacaré, puxei a perna, ficando os arranhões provocados pelos dentes. Mas não foi assim. Na verdade, devo minha vida a um grupo de botos. Respeito-os porque há algo além da nossa imaginação, ligando o ser humano aos botos.
Depois dessa conversa, todas as vezes em que navego pelo Rio Amazonas, a história da jovem senhora me vem à lembrança.


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