tag:blogger.com,1999:blog-31963534438207700942024-02-20T07:10:26.100-03:00CONTOS DE ANTONIO KLEBER MATHIAS NETTOAntonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.comBlogger29125tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-87904057254470028602009-10-13T01:07:00.001-03:002009-10-13T01:11:38.224-03:00MISÉRIA POUCA É BOBAGEM<div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Era muita miséria! A prole, amontoada no pequeno quarto, ouviu a mãe proclamar a hora de dar rumo àquela desordem. Cedinho, botou-os para fora de casa. Fossem os moços para o lixão; as moças, às faxinas!</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Roberval mandava pouco. A filharada constituía-se em exército rebelde. Atendia à mãe por capricho. Sustentavam o brocardo: Mãe é mãe, o resto é conversa!</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Durante muitos anos, sobreviveram ao custo do emprego de Roberval, cobrador de ônibus. Juntava o pouco que ganhava com o da mulher, lavadeira, e tocavam a vida que Deus dava. As crianças, enquanto pequenas, empurravam com a barriga. Acontece que cresceram: O mais novo com 13, a mais velha com 20, os seis filhos já estavam adultos para a vida. No entanto, amontoavam-se no pequeno quarto, como antigamente, quando duas camas abrigava-os e, com jeitinho, ainda sobrava lugar.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Que miséria estuporada! Parecia filme sobre desgraça! Mas seguiam!</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Certo dia, Glorinha chegou em casa cabisbaixa, lamentando os azares e os tropeços.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Que houve, filha?</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Estou grávida, mãe!</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Alvoroço geral, até que o pai de Glorinha pediu silêncio e disse:</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Seja lá como for, tira esse filho! Juntamos um dinheirinho para o aborto. Conheço um doutor que é bom nisso!</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Assim foi feito. Junta daqui, junta dali, conseguiram o valor correspondente ao preço solicitado pelo aborteiro. Para lá se dirigiram Glorinha e os pais.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Aguardando a vez, ali estava o retrato da mais triste desolação. Pai, mãe e filha tentando se afastar de outro problema, empurrados pela miséria. Uma menina engravidar não significava situação de ordem moral, mas material. Seria menos uma filha a trabalhar e mais uma boca a sustentar.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Dona Glorinha!</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>A moça entrou. Menos de cinco minutos após, homens armados entraram no consultório, dando voz de prisão aos que ali se encontravam. Encurtando a história: Glorinha estava na maca; submetia-se aos preparativos para o aborto. A polícia interrompeu o processo.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Resultado: pai, mãe, filha, médico e enfermeira respondem a processo pela prática de crime de aborto, na forma tentada. Quase todos os meses enfrentam demoradas audiências no fórum. A primeira vez, foi o interrogatório. Depois, oitiva de testemunhas. Decerto, pelas provas, submeter-se-ão ao crivo do Tribunal do Júri, por tratar-se de crime contra a vida.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Ao nascer o neto, Roberval tomou um gole de café, acendeu um cigarro e lascou:</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Fiquem tranquilos. Na atual situação, desesperar é doidice. E mais: eu e a mãe de vocês já estamos mais para o lado de lá. Se o processo der cadeia, não se apavorem. Teremos comida e acomodações dignas. Soube que o pessoal dos direitos humanos fiscaliza a situação das penitenciárias no Brasil. A coisa vai melhorar! Ah, esquecia: hoje, pela manhã, Gildinha – a irmã mais nova - me procurou. Também engravidou! Alguém tem idéia melhor do que a do aborto? Se não, tá na hora de enfrentar o mundo, caso contrário não haverá feijão no almoço. Afinal, suas galinhas de uma figa - disse o velho em bom desabafo -, miséria pouca é bobagem! Vamos em frente que atrás vem gente!</em></strong></span><br />
</div>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-56432615549232679362009-10-08T01:21:00.002-03:002009-10-08T01:23:57.258-03:00O ACIDENTADO<div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif; font-size: large;"><strong><em>Era um bóia-fria chegando da lida. De súbito, viu-se lançado fora da estrada. A marmita e um dos sapatos ficaram no acostamento; tomara-lhe desagradável tontura.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif; font-size: large;"><strong><em>Noite, bruma e silêncio, trilogia desassossegante para o pobre homem, agora inerte no valetão úmido e escuro, obra de um motorista imprudente.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif; font-size: large;"><strong><em>Tinha medo de cobra, de animais peçonhentos em geral. Mas naquele instante as dores no corpo e o sangue tomando-lhe o abdome não lhe permitiam medo ou nojo.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif; font-size: large;"><strong><em>Após minutos aflitivos, decidiu gritar por socorro. A hora noturna ia adiantada, mas, decerto, chamaria a atenção de quem passasse na estrada. Entretanto, quem passaria àquela hora por ali? Lembrou-se do Nico, do Inácio, do Pavani e do Gentil, amigos que permaneciam até tarde no bolicho da Suzana, bebendo e comendo salame. Será que o ouviriam, estando bêbados? Ao tentar o primeiro pedido de socorro, sentiu intensa dor no peito. Imaginou fraturas nas costelas. Notando a perna direita inerte, logo se aquietou. Aliás, não movia palha. Partira a canela. Fratura exposta.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif; font-size: large;"><strong><em>O tempo escorria num vagar angustiante. Raros veículos cruzavam. Se chegasse ao acostamento, o socorro ficaria fácil! - Pensava o pobre diabo, tiritante de frio, dor e medo. </em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif; font-size: large;"><strong><em>Lembrou-se da mulher, dos filhos, dos quefazeres. O que diria o patrão pela manhã, diante de sua ausência? Estava há pouca distância de casa; uns cento e cinquenta metros. </em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif; font-size: large;"><strong><em>Uma chuva fina e impertinente incomodava-o. O adensamento da neblina tornava o ar pesado e a escuridão espessa. Os raros faróis transmitiam-lhe essa percepção. </em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif; font-size: large;"><strong><em>Empapado de sangue, doía-lhe da cabeça aos pés. Não detinha os gemidos; na sua imaginação, serviam-lhe como alternativa, caso alguém os ouvisse da estrada.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif; font-size: large;"><strong><em>Aqui e ali, praguejava o atropelador, por não ter prestado socorro. </em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif; font-size: large;"><strong><em>A hemorragia debilitava-o. Sobre o mato molhado e o chão lamacento, sentia-se perdido. Não conseguiria socorro antes do amanhecer. Diante do quadro, optou pela imobilidade, para não complicar a situação que se agravava. </em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif; font-size: large;"><strong><em>Perturbava-o a viscosidade do sangue. Percevejos, ratos, cobras, baratas, enfim, nada o apavoraria tanto, como a impossibilidade de ver-se socorrido. </em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif; font-size: large;"><strong><em>Acentuava-se o desespero. Suplicava a Deus que o encontrassem.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif; font-size: large;"><strong><em>As dores, àquela altura, eram lancinantes. Uma friagem sintomática tomava-o dos pés à cintura. À sua determinação de ficar imóvel, juntou-se uma paralisia compulsória, decorrente das múltiplas lesões. O processo hemorrágico tramitava implacável. </em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif; font-size: large;"><strong><em>Ao cessar a chuva, a madrugada se despedia. Sobre o valetão, dissipava-se a neblina. Um cheiro nauseante de pântano inundava ao redor. Mudara a direção do vento. Era cheiro de peste. Uma nuvem de mosquitos aporrinhava-o, mas nada podia fazer. Ao sangue escorrendo de várias partes do corpo, eles preferiam o método tradicional da picada para alimentar-se. Porém, salvante a irritação causada pelos zumbidos, nada mais importunava; grande parte da superfície de seu corpo tomara-se de aflitiva insensibilidade. </em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif; font-size: large;"><strong><em>Não sabia das horas, mas um galo cantou. Era seu carijó, com certeza! Sua mulher levantaria para fazer café, fritar bolinhos de farinha de trigo e ajeitar os meninos para a escola. Os agricultores caminhariam pelo acostamento, rumo às roças. Renovavam-se as esperanças! </em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif; font-size: large;"><strong><em>Como por magia, pairou sobre o moribundo encantadora serenidade. Abriu os olhos, pálpebras leves, e divisou a estrela matutina. Linda, coruscante! Enfim, aproximava-se o resgate. </em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif; font-size: large;"><strong><em>Os pensamentos viajavam. No cosmo, penetrava as infinitudes estelares. Estava feliz com as novidades prazeirosas. De repente, sentiu-se removido para uma ambulância. Ele pedia cuidados, pois as dores eram muitas. Mas ninguém o ouvia. Em sua viagem, recém chegara à primeira estrela.</em></strong></span><br />
</div>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-38656351277635383582009-10-08T00:45:00.000-03:002009-10-08T00:45:38.987-03:00O SERTÃO VAI VIRAR MAR. E VIROU<span style="color: blue;">Balduíno, sertanejo forte! Crescera sob a vergasta das estiagens prolongadas, remoendo as adversidades da caatinga, cujo solo esturricado prometia dor e desânimo. </span><br />
<span style="color: blue;">Ainda jovem, rendeu-se ao sonho. Casou e partiu em busca da realização familiar. Rosa fora seu primeiro e único amor. Depois - só Deus sabe como! - plantaram um rancho de pau-a-pique às margens do leito seco de um rio. Os anos trouxeram três filhos; com eles, o sentido amargo da desilusão. Dois faleceram ainda bem novos, sob a peçonha da fome. </span><br />
<span style="color: blue;">O leite de Rosa não passava do colostro. Ao depois, era água com gotas de limão, adocicada com mel extraído da raiz do xiquexique. Um pouco mais crescidinha, a criança recebia pão de macambira, bromélia de duras e espinhentas folhas, sem qualquer valor nutritivo. Também se comia pão bró, alimento grosseiro feito de ouricuri, sem sustança qualquer. Os filhos, magérrimos e desnutridos, ganhavam da vida pouquíssima estrada. </span><br />
<span style="color: blue;">Era seca braba! Balduíno não lembrava da última vez em que a roça lhe rendera algum feijão-de-corda, milho e macaxeira. Inclusive, pensou em partir para a cidade grande, visando salvar o filho restante. Mas, ao divisar nuvens, as esperanças se renovavam.</span><br />
<span style="color: blue;">- O céu ainda se tomará de muitas nuvens! Choverá vários dias e agradeceremos a Deus pela dádiva! Os rios transbordarão; a terra encharcará. Teremos comida e seremos felizes!</span><br />
<span style="color: blue;">Eis a reação de Balduíno, diante das súplicas da mulher para sair daquele inferno, onde até os bichos mais resistentes se negavam a viver.</span><br />
<span style="color: blue;">Certa madrugada, trovejou. Eram muitos trovões. Balduíno saiu para o terreiro e rezou. Agradecia aos céus. Lembrou a Rosa sua profecia. Não demorou, relâmpagos e chuva! Era água que Deus dava! Quanto mais chovia, mais Balduíno orava, agradecendo ao Criador. </span><br />
<span style="color: blue;">Agora, ele e a mulher dançavam no terreiro sob a chuva torrencial. Na sua imaginação, brotavam dos campos verdor exuberante. Antevia milharais e mandiocais vicejando; paióis abarrotados. Galinhas, porcos e vacas traduziriam a fartura no sertão. Pensou nos filhos que morreram sem assistir àquele milagre.</span><br />
<span style="color: blue;">- Não lhe disse, mulher, que um dia Deus olharia por nós?</span><br />
<span style="color: blue;">- Você tinha razão, Balduíno. Eu duvidava!</span><br />
<span style="color: blue;">Dançavam e a chuva caía. Parecia um dilúvio, tanta era a água e os trovões. Balduíno, que construíra o barraco às margens do leito seco de um rio, agora ouvia seu marulhar.</span><br />
<span style="color: blue;">- Ouça, Rosa! É o rio correndo no sertão!</span><br />
<span style="color: blue;">- Sim, Balduíno! Água não nos faltará! Deus ouviu nossas preces!</span><br />
<span style="color: blue;">Após a festa e os agradecimentos, retornaram ao casebre. Constataram com indiferença as muitas goteiras. Balduíno lançou mão de uma garrafa de aguardente, cujo conteúdo tomava em doses homeopáticas. Dessa vez, tomaria goles fartos, comemorando a chegada de um novo tempo. A luz da lamparina tremulava, tal a rebeldia da tempestade. Nonatinho, assustado com os clarões, embrulhou-se nuns trapos sobre o catre. Rosa estava feliz. Recostou-se à espera do amanhecer, que tardaria. Balduíno apagou o lume e se deitou ao lado de Rosa. O acontecimento despertou desejos. A vida desgraçada estava por um fio. Doravante, tudo seria diferente.</span><br />
<span style="color: blue;">Lá fora, chuva grossa e incessante. O barulho ensurdecia. Por volta das quatro horas, Balduíno e Rosa despertaram assustados. Tudo tremia. O rancho desmoronava! </span><br />
<span style="color: blue;">- Acuda-nos, Nosso Senhor! - Suplicou Rosa, diante da tragédia que se avizinhava.</span><br />
<span style="color: blue;">Naqueles ermos, foram as últimas palavras ouvidas. O rio caudaloso subira mais e mais, levando tudo de roldão, arrastando a casa como uma folha. Com ela, o esperançado Balduíno, sua mulher e seu filho.</span><br />
<span style="color: blue;">Durante dias seguidos, a chuva se manteve intensa. No local onde moravam, o nível do rio subira mais de dois metros, encenando temível corredeira.</span><br />
<span style="color: blue;">Uma outra profecia substituíra-se a de Balduíno: "O sertão vai virar mar." E não deu outra. Uma vez mais a miséria pagara a conta pelos excessos da natureza.</span><br />
<span style="color: blue;">Ninguém percebeu o sumiço da família. Miséria nunca teve endereço certo.</span>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-31334539583684826482009-10-01T13:23:00.000-03:002009-10-01T13:23:49.914-03:00O TUXAUAO mano Zequiel não descansava. Clinicava pelas bandas de Casimiro de Abreu, mantendo pacientes psiquiátricos no distrito de Barra de São João. Era corrida doida! Às segundas e quartas, atendia a praça de Cabo Frio; garantia a semana psicanalisando clientes cativos. Fala mansa, estribava-se na medicina naturalista, analisada sob ângulo muito pessoal, cujos resultados terapêuticos rendiam-lhe boa fama na Região dos Lagos.<br />
Não era de laçar com sovel curto. Nos embaraços, tinha saída pra tudo. Troçando, fala-va tão a sério, que o interlocutor ficava de queixo caído. Zequiel mantinha a peta por dias seguidos. Dizem que há gente segurando engodos como verdades até hoje! <br />
Numa dessas, um colega seu, também psiquiatra, assumiu funções na Secretaria de Saúde de Rio das Ostras. Conheceram-se num dos encontros regionais de psiquiatras, ocasião em que Zequiel soube da preferência naturalista do colega, dedicado ao estudo dos vegetais. Apanhou Zequiel na feição, pois este era aficionado pelo estudo das propriedades medicinais das folhas. Seu amigo, de nome Salvatore, ficou feliz, sabendo-se tão próximo de colega seguidor de suas mesmas linhas terapêuticas para tratar doenças mentais. Também ele comungava com a máxima: “Manicômio não é lugar para enfurnar maluco”. <br />
Decorridos alguns meses, mais íntimos, Salvatore revelou um segredo a Zequiel: desejava conhecer os mistérios da floresta, as manhas que a envolviam e a potencialidade das folhas na cura das doenças. Foi além: ansiava transformar-se num tuxaua, obter os conhecimentos de um chefe indígena. Diante da surpresa de Zequiel, Salvatore registrou: tuxaua só no conhecimento!- Citadino, não diria outra coisa. Logo Zequiel o convidou a visitar seu sítio em Casimiro de Abreu, localizado no meio de uma floresta muito bem preservada.<br />
Numa manhã de sábado, Zequiel, vindo de Cabo Frio, apanhou Salvatore e esposa em Rio das Ostras, e rumaram para o sítio.<br />
- Sairás formado em Tuxaua, conhecendo folhas, flores, frutos silvestres, pequenos e médios animais, aves, rios, noite, dia, alguns mistérios e muito mais.<br />
- Que ótimo, Zequiel! É tudo o que quero! <br />
- Após o almoço, partiremos.<br />
Dito e feito. No início da tarde,dirigiram-se à cachoeira, onde se formava belo lago. Tomariam banho; o aprendizado incluía as “lições das águas”. <br />
No meio do caminho, Salvatore revelou que tinha medo de raio. Zequiel o acalmou, dizendo-lhe que o tempo estava bom. Chegando ao lago, os cães latiram. Havia alguém nas proximidades. Zequiel se adiantou e, na primeira quebra da trilha, deu de cara com um sujeito estranho carregando uma mochila e assustado.<br />
- Que houve, companheiro?<br />
- Fomos atacados por uma onça, eu e meu amigo.<br />
- Onça?<br />
- Sim. Uma onça, com uma cabeça enorme!<br />
- E ele?<br />
- Trepou numa árvore! Não sei se ainda está vivo!<br />
Salvatore e a mulher se juntaram a Zequiel e a tudo ouviram, ele de olhos acesos.<br />
- É verdade, moço! Há muita onça por aqui! Surpreendo-me com a coragem de vocês! Eu conheço os caminhos. Safo-me bem diante dos inúmeros perigos. - Disse Zequiel ao estranho, ciente de que onça, por aqueles lados, só fantasmas de suas ancestrais.<br />
- Já me vou. Procurarei ajuda para meu amigo.<br />
Salvatore, assustado, estrilou.<br />
- Por que não me falaste das onças?<br />
- Não te preocupes. Se há alguma onça, não nos alcançará. Pulamos na água e nos salvamos. - Referiu-se assim, para testar a coragem do amigo.<br />
Lá se foram os três para dentro do lago. Mas eis que, olhando para o céu, depararam-se com negras nuvens.<br />
- Estranhas aquelas nuvens, Zequiel. – Disse Salvatore, feições estranhas.<br />
- É verdade, Salvatore. Não se esperava chuva por estes dias. Mas as nuvens dizem o contrário.<br />
Ao longe, roncaram os primeiros trovões. O tempo escureceu. Não demoraram os raios.<br />
- Vou-me embora. Entre os raios e as onças, prefiro as últimas! - Dito e feito: Salvatore botou o pé na trilha. Sua mulher dizia a Zequiel que Salvatore só se acalmaria ao encontrar um pneu para servir-lhe de isolante.<br />
- É verdade, Salvatore tem razão. Nada como subir num pneu nessas horas.<br />
De imediato, Zequiel e Vera foram atrás de Salvatore, que, àquela altura, corria mais que lebrão assustado.<br />
Na metade do caminho, Salvatore divisou um pneu velho de trator jogado à margem. Não contou até três para nele subir e ali ficar, até que os companheiros chegassem.<br />
- Olá, Salvatore! Mais calmo? - Perguntou Zequiel.<br />
- Sim. Agora não corro perigo.<br />
Vera, aproximando-se, deu um grito.<br />
- Salta daí, Salvatore! Há uma cobra sob o pneu!<br />
Uma enorme cobra! A cabeça, pressionada pelo corpo de Salvatore, escorregou para fora, ficando visível.<br />
- É cobra para mais de metro e meio! - Gritou Zequiel.<br />
De pronto, Salvatore correu em direção à cerca, disparando rumo ao campo do vizinho, evidenciando ter mais medo de cobra do que de raios e onças... juntos!<br />
Ao chegar em casa, Zequiel, vendo Salvatore encolhido na carroça, observou:<br />
- Amigo, estás reprovado no vestibular para índio! Raios, cobras e onças fazem parte do currículo de formação dos Tuxauas. Ao demais, aquela cobra se tratava de uma jibóia morta por aquele malandrão encontrado próximo ao lago. Pensou que fôssemos do IBAMA e aplicou aquela mentira, dizendo que levaram uma corrida de onça e que o amigo subira numa árvore. Tudo mentira! Semana que vem, recomeçaremos. Tens direito a uma segunda época!<br />
Salvatore caiu fora. Largou a idéia de ser tuxaua. Era coisa de maluco.Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-3030034382655254992009-10-01T13:15:00.002-03:002009-10-07T23:32:18.044-03:00OPÇÃO<div style="text-align: center;"><br />
</div><div style="text-align: center;"><i><strong><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Sentado na calçada, João recebia o peso do silêncio madrigal. A neblina ajeitava-se nas ruas quase vazias. Como fantasmas, ninguém dava sinal de seu destino.<br />
Fazia frio, mas ele suportava a intempérie. Havia um coração descompassado, sofrendo dores de paixão. Não se desvencilhava do nó na garganta. Eram mulheres trazendo cargas de melancolia para suas horas de solidão! João se aborreceu com a causa de sua depressão. <br />
Um cão atravessou a rua; um pio acenou maus presságios; a gata no cio encantava o fio do muro. A madrugada indicava caminhos aos personagens, inclusive ao mendigo.<br />
Inúmeros fatos eclodiam diante de um João melancólico. Era um filme sem enredo, estampando situações de pouco ou nenhum significado aos seus olhos indiferentes. Para ele, a prostituta convocando ao prazer tinha lugar; mas não esquecera da mulher envolvente do dia anterior.<br />
Onde andaria? Ah, como saber? Interessava o sentido de sua dor e ir para casa dormir. Mas a realidade não funcionava daquela forma. Há muita armadilha no cérebro. Cientificara-se de que o homem criava recursos masoquistas, para afrontar fatos e atos espinescentes. <br />
Desempregado, credores mordiam-lhe os calcanhares; os poucos bens, todos penhora-dos! Fazer o quê? Ao redor, constatou a realidade crucial chegando com o tempo. De fato, havia indiferença de sua parte em relação ao mundo exterior; bloqueara-o um oceano de dívidas. <br />
Devagar, passou a entender o artifício que o envolvia, enchendo sua imaginação de possibilidades amorosas. Só que afundava em tristeza. Já antes, observara a si mesmo a banalidade da causa que o fazia macambúzio. Sentia um artimanhoso processo afastando-o da realidade, levando-o para longe de suas responsabilidades.<br />
Sentado no meio-fio, contemplava a paisagem, perdendo-se sob a fantasia de uma pai-xão consumidora, que logo se consumia como o éter, fazendo sua cabeça vazia. Transtorno puro! Havia problemas subjacentes que não combinavam com paixão, madrugada e sonhos.<br />
De súbito, espantou-se de vez com o volume das necessidades imediatas, mortificando-se com a série de compromissos para o dia seguinte, alguns irresolúveis no momento. Enrodilhara-se na insolvência; não havia perspectivas de soerguimento econômico. A essa altura, mãos no rosto, olhos fechados, passeou sobre as desgraças envolventes, incluídas, aí, a família esfacelada, o abandono dos amigos e o crédito suspenso. <br />
Sob tais pesos, enlouquecia, quando uma brisa soprou seu rosto. Abriu os olhos e viu a neblina se dissipar, desnudando a rua. Um cenário de luzes mostrou-lhe detalhes coruscantes. Os pensamentos transmudavam-se, como num passe de mágica. A imagem da mulher festejada postou-se diante dele; sua consciência ingressou na trama e trabalhou na escolha de caminho menos íngreme. Olhou para o telefone celular.<br />
Passo a passo, concluiu que, naquela quadra difícil, a melhor opção estava no entregar-se à paixão, acomodando-se à válvula de escape da imaginação. Sofrer de amor, sem dúvidas, consolidava-o no processo do viver, fosse qual fosse o engodo articulado pela imaginação para submergi-lo no oceano da alma. <br />
O céu se limpara. Restabeleceu-se a indiferença em relação aos</span></strong></i><br />
</div><div style="text-align: center;"><i><strong><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">acontecimentos. </span></strong></i><br />
</div><div style="text-align: center;"><i><strong><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Restou-lhe o caderno e um poema. </span></strong></i><br />
</div><div style="text-align: center;"><i><strong><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">O último verso </span></strong></i><i><strong><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">impulsionou-o a andar em direção à sua casa.<br />
Afinal, passara a hora de dormir.<br />
<br />
</span></strong></i><br />
</div>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-37651213140361649572009-10-01T13:09:00.000-03:002009-10-01T13:09:37.159-03:00REVIVÊNCIA<div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Roberval passeava pelo imenso e antigo jardim da fazenda, construído pelos avós. Bancos de pedra bem trabalhados, flores variadas, pequeno chafariz e gorjeio da passarada. </em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Com o tempo, o abandono assenhoreou-se do local. Árvores enfermiças, arbustos indefinidos, canteiros desfeitos, inço, teias de aranha, formigueiros, enfim, pouca coisa lembrava o jardim de outrora.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>O mato emergia agressivo no caminho de pedras por onde os velhos trilhavam pela manhã, segundo contara-lhe a mãe. Só os bancos sobreviviam perfeitos. Roberval sentou-se num deles, perdendo-se nas horas do passado distante. </em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Conhecera os avós, ambos já idosos. Novos, só em fotografias. Num momento, trouxe-os à lembrança, dando-lhes vida; colocou-os num jardim restaurado pela imaginação. No banco à frente, Roberval materializou-os de mãos dadas, românticos, inflados por paixão arrebatadora, sob terna troca de olhares.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Nas férias e fins de semana, ao tempo de criança, Roberval descia e subia pelas alamedas, rompendo caminhos na mata e no pomar. Não se detinha aos detalhes do jardim, da fonte, dos desenhos formados pelos canteiros floridos, dos arbustos, dos belos bancos e tudo o mais; suas brincadeiras eram um exercício de dar asas à liberdade. </em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Roberval entregara a juventude aos estudos. longe da fazenda, formando-se em agrono-mia. Adulto, trabalhou em várias instituições. Aposentado, dedicou-se a escritório de projetos agropecuários.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Com a morte do pai, logo secundada pela da mãe, retornou à fazenda. Filho único, casado e com dois filhos, assentou morada na propriedade, prosperando na pecuária. Um dia, doença grave levou sua esposa. Três anos depois, sucumbia a filha, vítima de complicações de parto. Os infortúnios culminaram com o trágico acidente aviatório na Europa, arrebatando-lhe o filho, a nora e dois netos. </em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Ficara só. A solidão integrou-o ao velho jardim. Ali, não sentia sua mãe brincando pelas calçadas de pedra, mas notava a presença dos avós sob o olor da mata e das flores, ao canto dos pássaros. </em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Um sentido de revivência tomou sua alma. As brisas sacudiam as mechas encanecidas. Ideais, pensamentos e sonhos introverteram-se. Havia séculos de ascendência gritando em sua memória. </em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>De repente, do silêncio, brotou o murmurejar da água na fonte; as flores vicejaram; a mata se encheu de sons e cores; mãos amigas puxaram Roberval para uma dança de roda.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Altas horas da noite, Roberval respirava. Mas não despertou às sacudidelas do capataz. Aliás, nunca mais despertou.</em></strong></span><br />
</div>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-2628082828549600542009-09-28T11:55:00.000-03:002009-09-28T11:55:58.073-03:00UMA ONÇA EM MEU CAMINHO<div style="text-align: justify;"><i><span style="font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><span style="color: blue;"><b>Zé da Casquinha saía cedinho para pescar. Gostava de percorrer as margens dos igarapés-mirins do Baquiá Grande, lugarejo há algumas horas de barco de Macapá, Capital do Amapá, onde, não raro, matava peixes graúdos que Rosinalda preparava com arte e zelo.<br />
Ele nasceu ali, no ventre da selva. Pais e avós também. Os olhos riscados indiciavam genes europeus, mas, diferente da gente da cidade, disso nunca cuidara. Não lhe retiraria nem traria mais coragem para enfrentar os perigos da floresta.<br />
Quando porreteava cabeça de tucunaré, soltava exclamação de espantar cardume: “Eta, bicho bom! Tu não me escapa, diacho!”<br />
No entanto, ao perder a presa num golpe inexitoso, a fala diferia: “Diabo de peixe! Não me faça perder a paciência, que eu mergulho e te trago a tapa!” A seguir, franzia o cenho e atirava-se às remadas, sussurrando: “Qualquer hora, derrubo um pirarucu daqueles e ponho minha gente a salgá-lo. Então, descansarei por uns dias, comendo peixe com banana verde!”<br />
Oito filhos sob sua dependência, alguns casados, não havia como fugir daquele destino. “Filho é filho, neto é neto e gato-açu é um bicho”, não cansava de dizer. Mas era feliz. Estava onde vivia na plenitude: no meio da selva. Nunca fora mesmo de muita gente à volta que não fosse da família. De vez em quando, rezingava com genro e nora. Também já não lhe davam bolas, de tão acostumados com seu mau humor.<br />
Numa bela manhã, ei-lo feliz nos preparativos para mais um dia de pesca. Agora arrumava a fisga que lhe trouxera de Macapá o sr. Grimaldo, produtor de açaí na região do Baquiá. Sabia que era da necessidade do velho pescador tal instrumento. O pescado representava a base de sustento da numerosa prole.<br />
Já com o pequeno barco em movimento, costeava a margem, dela não se afastando. De repente, sentiu que algo acontecia sob as águas. A superfície borbulhava. Não era cardume de piranha com a voracidade costumeira devorando alguma vítima, mas não era coisa pequena. Abriu um sorriso, pois ali se desenhava boa pescaria, ao gosto de seus sonhos. E logo naquele dia em que levara fisga nova! Logo enxergou o dorso de imenso pirarucu, preparando-se para lançar a fisga. De pé, deslizando o barco silenciosamente, já bem próximo da presa... vupt! Ao tempo em que a fisga penetrava o peixe, Zé da Casquinha ouviu forte rugido vindo da margem, bem próximo dele. Ainda de soslaio, deparou-se com imensa onça - tipo canguçu, a da cabeça grande - que, preparado o bote, lançou-se sobre o barco, garras e dentes afiados à amostra. Ato simultâneo, largou a fisga - cuja corda presa à vara amarrara à canoa -, lançando-se às águas. <br />
O mundo parecia vir abaixo. Ao pular da canoa, agarrou-se na popa, enquanto olhava apavorado para o imenso animal equilibrando-se no meio da embarcação. A onça fitava-o cheio de ferocidade, mostrando caninos sequiosos. Durante bom percurso, este foi o cenário. Barco à deriva, muitos pensamentos convulsos se batoam na cabeça do velho pescador. “Valha-me, São Pedro!”, dizia baixinho aqui e ali.<br />
Como seja quase certo que nenhuma desgraça vem desacompanhada de outra, eis que, da margem oposta, lançaram-se à água vários jacarés-açus, que ali - bela prainha - lagarteavam sob o sol da manhã. Pelo molde de lançarem-se n'água, Zé da Casquinha sentenciou: "Estão famintos!". Aí lembrou de seu pai, que não cansava de avisar: “Meninos, não esqueçam de afastar porcos, patos e galinhas das margens do igarapé, principalmente nas cheias. O jacaré-açu, numa bocada, acaba com a sorte de qualquer ser vivente! Com fome, então, só Deus salva!”<br />
“Estou frito!”, pensou o transtornado Zé da Casquinha, vendo aqueles dorsos escuros e limosos se aproximarem, ao mesmo tempo em que, bem próximo da canoa, centenas, talvez milhares de piranhas iniciavam a devoração do imenso pirarucu. O sonho que o alentara pela manhã esvaía-se nos dentes afiadíssimos do cardume. Sobre a família, fez apenas uma indagação: "O que será de Deusdete, Resolina e Charlenildo, os mais precisados da família?". No mais, não dava tempo para pensar mais nada.<br />
Com o movimento do barco para a frente, levado pela corrente, parte do pirarucu ficou na superfície, preso à fisga. Era imenso! As piranhas provocavam o maior rebuliço, fervendo à volta do peixe, que se debatia para livrar-se de seus devoradores. Inútil. Grande parte de seu corpo fora consumida àquela altura.<br />
Estava certo de que, dali, nem sua alma escaparia. Onça, jacarés-açus e piranhas formavam trilogia diabólica, fatal. Restava rezar, embora nunca aprendera reza que prestasse. A Ave-Maria e o Padre Nosso estariam de bom tamanho, pensou, mas não sabia sequer começar. Imaginou que boas intenções também levavam as pessoas para céu. Por isso, pouco ligou para sua ignorância religiosa. <br />
Como Deus e o Diabo nunca estão muito longe um do outro, diante da movimentação dos jacarés e o barulho originado pelo fervilhamento das agitadas piranhas, a onça não perdeu tempo: saltou para a margem com especial habilidade, safando-se de também ser eventualmente devorada pelos jacarés e servir de sobremesa às piranhas. Talvez não desconhecesse o velho ditado: “Mais vale um passarinho na mão, que dois voando”. Não queria perder, de uma só vez, a presa e a liberdade. Garantiu-se de que, cedo ou tarde, abocanharia pescador menos ágil.<br />
O primeiro impulso de Zé Casquinha, ao ver a onça pulando do barco, foi entrar nele para safar-se dos jacarés e das piranhas, que, àquela altura, já pinicavam feridinhas de sua canela. Decerto, o pirarucu não bastaria para atender a tantos glutões.<br />
Naquele dia, Zé da Casquinha chegou em casa cheio de agrados a genros, noras, filhos e cunhados. Sobre a pescaria, deu de ombros, dizendo-se cansado da lida. Após, alardeou que, a partir da manhã seguinte, cumpriria trinta dias de férias!</b> </span></span></i><br />
</div>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-6625275196618439622009-09-27T22:05:00.000-03:002009-09-27T22:05:24.053-03:00MEU CANTINHO DE ROÇA<div style="text-align: justify;"><i><b><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Sempre houve tempo de plantação e colheita. Nas piores fases, alguma produção se apurava nos cantos humosos da roça. Na maior parte do ano, havia abastança no paiol. Maxixe, jiló, quiabo e por aí afora. Abóbora de pescoço, nem se diga!, sem falar dos grelos das aboboreiras, essa colheita que resulta num quibebe de dar água na boca. Milho verde e feijão-de-corda enchiam cestos. Variava a verdurama e havia fartura de galinha e ovos. Mamão, mexirica, banana e algumas outras frutas nasciam assim, isto é, como se Deus semeasse.<br />
Setembrina, parideira de primeira - mais pelo marido, porque por ela seria diferente -, descia todos os dias rumo à lavoura. Plantava de tudo. Colhia até arroz do sequeiro, num pequeno reserva-do de terra roxa. Para a lida, ia sozinha, chovesse ou fizesse sol. O trabalho virara hábito sem volta. Antes, porém, de rumar para o roçado, bronqueava com a meia-dúzia de filhos, como medida preventiva. Enxada e ancinho às costas, pequena matutagem para aguentar até o meio-dia, lá ia ela assobiando para espantar a preguiça e cobras do caminho. O marido ficava na carpintaria, confeccionando ou consertando rodas de carroça, atendendo às poucas encomendas. Tinha habilidade para a coisa e recebia elogios pelo exercício da arte. Mas o dinheiro que entrava era curto. <br />
Setembrina não respondia às observações e perguntas do marido, a respeito desse ou daquele trabalho que ele faria naquele dia, enquanto ela estivesse fora. Ele se dava a pedir explicações justamente no momento em que a mulher saía para a lida. Acontece que Setembrina sabia que Nonô aguardava sua saída, para largar o serviço na carpintaria e partir para o mato, atrás de paca, tatu, cotia ou qualquer outra caça que deixasse trilha recente. Todos sabiam que aquele gosto por caçada era troço entranhado em seu espírito. Comia de cuíca a gambá, com maxixe ou banana verde. Até com jiló! Mas - coisa engraçada - não era explícito com Setembrina a respeito de sua paixão por caçadas. Nunca o fora. E precisava? Dizia apenas que era distração. Seu tempo passava sob mesmi-ces inconvenientes, mentiras sem importância, fatos e atos insignificantes. Nonô comia de tudo: rã, muçum, até filé de jibóia ao molho de tomate-mirim. Não era dos que se cutucavam com vara curta, no mister de sobreviver um dia após outro, sem ais e uis. No entanto, sua expansão não passava da cerca, se o embate fosse com a mulher. Coisa de pouco blá-blá-blá, já que não havia discussão séria. Discutir para quê? Havia mais o que fazer naqueles fundões de roça, pensava Setembrina.<br />
Com jeito, de vez em quando comiam abóbora com carne-seca. Queriam mais o quê? O resto era ganância. - Pensava Nonô.<br />
Um dia, a seca bateu forte por aquelas bandas. O tempo passava sem trazer nota de esperança. Parecia guerra, gemeção baixinha pelos quatro costados da morada, no quintal e na varanda. Dava dó ver a criançada se amiudando por falta do que comer. O mandiocal secou; depois, as bananeiras esmirraram!<br />
Era guerra muda, quase silêncio, sem coaxar de sapo e rã, sem zunir de cigarra ou estridência de grilo, estes que, na roça, são prenúncios de chuva. Nonô e Setembrina entreolhavam-se na pequena sala de reza. Mas a água se distanciou e a terra se entregava de vez. Rios, lagoas e <br />
barragens desapareceram da geografia impiedosa. O gado magérrimo entregava-se débil. Os animais do mato batiam em retirada. Pomba de bando, só em sonho! A criançada procurava não chorar, mas quando um começava, a choraminga era geral. Nonô distribuía o cacete. Juntava-se a fome à dor no lombo. Setembrina virava uma jararaca com ele. Acontece que o choro da molecada aporrinhava de verdade. <br />
A coisa enfeou. Já faltava tesão ao caçador, que, com seus botões, se gabava não haver feitiço que o arriasse em negócio de mulher! Talvez essa a razão de Setembrina suportar tal inutilidade ao seu lado.<br />
Os filhos debilitaram, jogados nos cantos da casa. Não era indolência de ociosidade, mas fraqueza por inânia. Em diante, valia tudo, de rato a lagartixa, de cacto a xiquexique. Foi aí que Setembrina fez reunião e lascou desabafo.<br />
- Não aguento mais! Trabalho trabalho, mas continuo na mesma! O que cresceu no cercado foi essa prole sem eira nem beira! Diga-me, Nonô, qual a sua idéia? Você é ou não é o homem da casa?<br />
Ele, mais que depressa, disse que só havia uma saída: subir no pau-de-arara, reto à capital. Chegara-lhe notícia de que lá o leite jorrava das torneiras.<br />
- Deixa de sê besta, homenzinho malandro! Leite só jorra em torneira de trabalhador!<br />
- É verdade, muié! Num tô mentindo não!<br />
- Sinto pena dos meus filhos, com um pai desses! Idéia que é bom não há nessa cabeça de porongo! Está decidido: as meninas vão para a casa do Coronel Raimundo.<br />
- Coroné Raimundo? Esse homem tem má fama. Gosta de se passar com mocinhas.<br />
- Sê besta, Nonô! Se ele mete dedo numa filha minha, é homem morto. Ou você não me conhece?<br />
- E os meninos?<br />
- Eles me acompanham!<br />
- E eu, muié?<br />
- Você... você pode ir para os quintos do inferno! Ou pensa que vou trabalhar pra sustentar um homem que nem sabe pegar na enxada?<br />
- Muié, não façamos dispersão de nossa gente! Sei lidá com roda de carroça, caçá, catá fruta no mato. Rápido busco palmito, mais severo seja o mato.<br />
- Fala isso de pegar palmito na cidade que tu apanha. Mexer com roda de carroça é coisa de interior, Nonô. Não desejo velório de filho. Quero salvá-los. Um dia a gente se acha nesses cafundós.<br />
Assim aconteceu. Severina partiu para a fazenda do Coronel Raimundo. Lá deixou as três filhas em mãos de dona Risoleta, esposa do coronel.<br />
- Elas são prendadas, dona Risoleta. Não se arrependerá.<br />
- Deixa estar, Setembrina. Serão tratadas como filhas.<br />
Dia seguinte, Setembrina partiu com os meninos para a capital. Não demorou para arrumar-se num restaurante. Logo um filho empregou-se como garçom; os outros dois descambaram para a construção civil: ajudantes de pedreiro.<br />
Mulher honesta, nem por isso deixou de sentir comichões. Amiudados os tesões, não se demorou a convocar o marido. A essa altura, alugara uma casinha na periferia da cidade e trazia planos para Nonô ganhar alguns trocados. Em pouco tempo, ele reuniu mais de meia-dúzia de jardins para tratar, quebrando um galho aqui, outro acolá, colaborando de verdade, pela primeira vez, com a economia doméstica. Setembrina labutava de sol a sol, como sempre. Nas folgas do restaurante, empenhava-se nas faxinas.<br />
A cidade deixou Nonô mudado. Passou a beber e a chegar em casa perfumado. Setembrina avisou a primeira e a segunda vez. Na terceira, botou-o para correr de casa.<br />
O tempo passou. Ela se manteve só. Os comichões, recebia-os com jeito e resolvia a seu modo. Chegara à conclusão de que homem era tudo igual. Conversa vai, bateu saudade imensa das filhas. Resolveu buscá-las para o seio da família. Não as via fazia três anos. Notícias, só através de cartas. Chegando à cidade, foi direto à casa do Coronel Raimundo. No portão, a primeira surpresa: Maria da Glória grávida! Não bastasse, servia feijão socadinho com angu ao primeiro filho, que já contava ano e meio. As outras... também grávidas, sendo que, como a mais velha, uma delas trazia um filho ao colo! Quem era o pai? A resposta veio logo: "Um sanfoneiro que bateu por essas bandas numa festa de São João e nunca mais voltou".<br />
- Como nunca mais voltou, se vocês duas, além dos filhos no colo, encontram-se embuchadas? Não me façam de boba!<br />
- Ele voltou sim, mãe, mas...<br />
Ao pé do ouvido, Setembrina chamou-as de safadas, espinafrou-as. Após, reuniu a tropilha e partiu, excomungando o Coronel Raimundo, pois seus netos... ah, sim, seus netos era a cara de um, focinho do outro! Mas, que fazer com um coronel poderoso, latifundiário, cheio de políticos à volta lambendo seus pés, matador até por mau olhado? As Setembrinas do sertão nunca tiveram vez. Só os coronéis! Quem não sabia disso? Por mais jararaca se transformasse, como anunciava, Setembri-na não restauraria a dignidade da família violada.<br />
Em casa, a mãe espalhou as grávidas pelo chão da sala e acomodou os netinhos no quarto dos meninos. Dia seguinte, compraria uma casinha para a família, com o dinheiro da indenização. Nessas atrapalhadas com as filhas dos outros, até que o Coronel Raimundo tinha bom senso; o desgraçado dava teto pros filhos que arranjava com as pobres moças. - Pensava vovó Brina, enquanto pitava seu cachimbinho de barro, sentada no tamborete da cozinha. <br />
Dali em diante, talvez alguma idéia melhor pudesse orientá-la. Quem sabe esquecer aquela gente da cidade, voltar para o sertão, cuidar de seu roçado e se ajeitar nos braços de um homem que aliviasse seus desassossegos nas noites de lua cheia?<br />
</span></b></i><br />
<br />
</div>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-47884742483382781522009-09-27T21:07:00.000-03:002009-09-27T21:07:46.424-03:00O DESPERTAR DO MENINO<div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><i><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong>Era conhecido como Toquinho, alusão ao tamanho e à idade, em contraste com a gente adulta das carvoarias. Talvez nem lembrasse do nome de batismo. Acostumara-se ao apelido.<br />
Desde cedo, rodeava os fornos montados nos sítios e fazendas do interior do Estado do Rio de Janeiro, envolto na negritude do pó de carvão. Era como tantos outros adolescentes espalhados pelo Brasil. Sofria as agruras e reveses inerentes à atividade laboral, percorrendo as “praças” para servir aos senhores gananciosos. <br />
Representava instrumento de carne e osso, jogado ao léu pelos infortúnios da vida. Muitos enriqueciam às custas da mão-de-obra infantil; pagavam baixos salários ou retribuíam o labor por alimento superfaturado. Quase uma relação escravagista. <br />
No rastro da miséria, sem a justa recompensa, convocavam-no a tarefas sobrecarregadas.<br />
Não descansava o necessário ao abrandamento da fadiga. Atividade ininterrupta, acentuava-se ao se fecharem contratos com estradas de ferro, para alimentação das marias-fumaça, ou siderúrgicas, grandes consumidoras do produto.<br />
Começava com o assentamento dos carvoeiros na mata, munidos de foice e machado. Após limparem o terreno, derrubavam e desgalhavam as árvores. Poucos dias após, secas as folhas e galhos, ateavam fogo nas coivaras de adrede arrumadas. Finda a etapa, partia-se para o corte da lenha chamuscada, amontoando-a em pequenas toras. Quando não em lombo de burros, os meninos faziam o trabalho de formiga, transportando-as para a praça, onde se procedia à queima nos balões. Via-se, então, Toquinho arrastando pesadas peças, visando o rudimentar processo de carbonização.<br />
Versátil, ele se qualificara para quase todas as etapas, desde a colheita e limpeza da matéria-prima, passando pelos balões, até a fase da queima e depuração final do produto.<br />
Trata-se o balão de uma engenhoca com mais ou menos seis metros de circunferência, exigindo habilidade na sua construção, pena tornar-se inexitosa a destinação. Mas aquela gente não errava; o aprendizado acompanhava-a desde a infância.<br />
Primeiro, aproveitam-se as toras menores no preparo do funil, com cerca de dois metros de altura, no meio do que se constituirá o "balão". Ao seu redor, empilha-se a lenha em sentido vertical. No centro fica a abertura denominada "chaminé central". Lança-se, por ali, o fogo que queimará as toras.<br />
Amontoada a lenha, folhas e capim seco envolvem-na, enchendo-se os vazios. Após, faz-se um revestimento com terra. Estará pronto o "balão" para receber fogo.<br />
A queima é lenta, para não perder o trabalho. Leva de dois a três dias. A vigília do balão é obrigatória; tornando-se intenso o fogo, coloca-se pela chaminé pedaços de lenha, reduzindo-se o poder de queima sobre a madeira destinada ao carvão. Denominam-se esses acréscimos de "comidas do balão".<br />
No início, a fumaça é densa e negra. Ao tornar-se azulada, a queima está finda. Aí se afoga a caieira, isto é, tapa-se a chaminé e se aguarda a extinção das brasas. Em seguida, separa-se a terra do carvão com a peneira. O produto é ensacado no local e transportado no lombo dos burros em direção à cidade ou à estrada, onde caminhões ou carroças o recolhem.<br />
Toquinho dominava a arte da carvoaria. Com quatorze anos, domava como ninguém a insurreição das chamas com as "comidas do balão", vencendo, assim, o excesso de fogo.<br />
Abandonado, Toquinho ficou órfão aos seis anos. Sozinho, morou com um casal, cujo marido era carvoeiro. Com a morte da mulher, o menino, com doze anos, acompanhava-o ao trabalho. Foi assim que aprendeu a profissão.<br />
Ele vivia no mato, ao lado de homens rudes, sem nenhuma instrução formal. Moravam em casebres de pau-a-pique, cobertura de sapé. Aos quatorze anos, viu seu protetor morrer picado por uma jararaca. Outra vez sozinho, o sonho se restringia em adquirir mais habilidade como carvoeiro, pois queria sobreviver. Não fazia outra coisa; sequer assinava o nome. Aproximava-o dos civilizados a fé em Deus. O resto, coitado!<br />
Requisitavam-no bastante para o serviço, devido à responsabilidade demonstrada junto às obrigações, em especial no tocante aos "balões", à noite, evitando a violência do fogo. Ao demais, não ingeria bebida alcoólica. A maioria dos carvoeiros gostava de uma cachacinha. Como seria diferente, mergulhados naquela atividade desgastante e desumana? <br />
Os homens não mudavam. Toquinho carvoejava para usinas, marias-fumaça e fábricas em troca de salário indigno. A exploração atingia seu ápice, embora a rijeza das leis, no tangen-te ao labor de menores naquele tipo de atividade lesiva à saúde. Eram vãs as sanções ameaçadoras. Fazendeiros e sitiantes não temiam o regramento jurídico, tocante às proibições e punições.<br />
A lenha esfumadora dos sonhos de Toquinho era a que fornecia luz e calor aos sonhos dos senhores da elite. <br />
Seus pés imitavam os negros pés da escravidão sofrida: ambos pisavam espaço limitado,sob a vigília dos grilhões. Toquinho devia ao armazém da fazenda; esse fato frustrava seus an-seios. As ameaças aterrorizavam as tentativas de fuga. Eram dívidas impagáveis, obrigando os carvoeiros a permanecerem sob o jugo das capatazias desumanas.<br />
As denúncias sucediam-se na imprensa. Sobre o tema, os políticos falastrões da República preferiam o silêncio da omissão. Tudo terminava em fogo de palha.<br />
O corpo de Toquinho não se limpava no intervalo da noite para o dia. O encardido re-crudescia para o sujo, manchas escuras, numa transmudação desagradável.<br />
No suceder do fumo no forame, seguia Toquinho analfabeto, subnutrido, triste, desamparado, sem vontade própria, bicho falante arraigado na faina protagonizada pela exploração.<br />
Entretanto, da mata ceifada sem controle, donde se abatia a riqueza das florestas em favor e a mando de meia-dúzia de depredadores, Toquinho via surgir, embora debilmente, uma estranha luz, que ele imaginava ser a da liberdade. Mas, dos que fariam algo por ele, nada se esperava; todos manejavam a mesma rede opressora sobre a fraqueza dos meninos carvoeiros. Poucos sabiam que o país comemorara quinhentos anos de seu descobrimento. Uns afirmavam que só conheceram anos de violência. O que dizer?<br />
Naqueles fundões do Brasil esquecido, Toquinho soubera, através de um velho carvoeiro, que no tal Congresso Nacional havia muitos fazendeiros, donos de enormes extensões de terra; havia deputados e senadores que, embora não fossem proprietários, mantinham estreitas relações com os coronéis da terra, graças aos quais conquistavam seus cargos eletivos. Cientificara-se, também, de que os sucessivos governos avalentoavam-se contra pobres e miseráveis, porém, contra a aristocracia rural, agiam com tibieza repugnante. O velho falara mais coisas ao menino, que se espantava a cada esclarecimento e denúncia, embora pouco entendesse sobre Congresso Nacional, governos, latifúndios improdutivos, elites e aristocracia rural. Mas captara o bastante para saber-se perdido naquela terra de ninguém.<br />
Certa tarde, deambulando pela mata, impressionou-se com uma cena que mudou com-pletamente sua vida; mudou seu modo de ver e sentir o mundo. Algumas jovens, filhas e parentes do dono das terras, passando férias na propriedade, banhavam-se numa cachoeira em trajes sumaríssimos, a maioria delas com o seio desnudo, algumas em pelo.<br />
Toquinho despertou! Seu sangue ferveu! Sua vontade transcendeu aos sentidos da sub-missão que, até ali, atendera com tanta subserviência.<br />
Em diante, só duas saídas norteavam-lhe os sentidos: ou ganharia o mundo na carroceria de um caminhão, rumo à cidade grande, de onde ouvira maravilhas, ou, numa daquelas madrugadas de solidão amarga, multiplicaria os ventiladores de uma carvoeira, com os buracos virados contra o vento, atiçando o fogo do "balão", e mergulharia de cabeça na chaminé central! No dia seguinte, o carvão de seu corpo se confundiria com o vegetal. Interpretariam sua ausência como a debandada de mais um moleque devedor e fujão. Para Toquinho, depois do que vira, pouco lhe importariam as conclusões a que chegassem sobre seu sumiço.<br />
É como ainda acontece com os meninos carvoeiros, quando algo de extraordinário mexe com seus corpos e suas almas.</strong></span></i><br />
</div>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-77563781294064732362009-09-27T20:52:00.000-03:002009-09-27T20:52:55.938-03:00DOROTÉIA<div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><i><span style="font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><b><span style="color: blue;">A vida tece mudanças, mas certas influências sobrevivem no âmbito do tosco, do bruto, do primitivo. O elementar fica no passado. Das alterações, o noviciado substitui-se à ancianidade, resultado da evolução no interior do homem. A natureza reedita proezas e especializa a raça, dotando-a de novas qualidades e características. No tangente à hibridização, só se compreenderiam à luz de ação milagrosa. Anote-se, como exemplo resplendente, o caboclismo.<br />
A história de Dorotéia é sintomática, mode entender-se a sertaneja. São fatos atuais, correspondendo aos reflexos do processo evolutivo. Mostra o crescimento da mulher, sem que deixe de ser ela mesma em sua essência feminina. Indica sua influência junto ao companheiro e filhos nos tempos modernos, sem se afastar, contudo, das condicionantes milenares, embutidas nas regras impostas pela convivência. Este é um processo vivo que não se perde nunca.<br />
Do futuro, quem conhece?<br />
Do passado, fervem as vísceras nas lembranças mais recônditas, revelando meandros misteriosos, desconhecidos. Para trás, amontoam-se incógnitas. Disso ninguém duvida.<br />
Dorotéia trazia sangue índio e português a morder-lhe as entranhas. Chegara das fraldas da Serra de Ibiapaba, proximidades de Viçosa do Ceará. Exercia a agricultura. Aproximou-se de Sobral, porque os filhos cresciam. Não teriam o destino dos pais. Assentaram-se em Massapê, município do interior, sobre sítio humoso, ao norte de Sobral. Decisão dela, vendo mais longe que o abestiado do marido, cujo processo de miscigenação o degenerara em coisa à-toa. <br />
“A mulher cearense hasteou a bandeira da liberdade, tecida sob a força da fusão genética arrumada pelos avós não tão antigos assim”, imaginava Dorotéia cheia de viço e entusiasmo,rasgando o tempo na roça, sem medo do agora, confiante no amanhã, colocando inveja nos homens quando no trato da enxada e do ancinho.<br />
Desgrilhoada, assumia ferramentas e rompia caminhos, até chegar à várzea para lavração. Levava as coxas molhadas e íntimas, passos curtos em roçar de ânsias, como uma deusa a processar desejos.<br />
Mulher séria, fiel, dona das ancas mais cobiçadas do sertão. É maneira de dizer, porque deixava os homens com as idéias vacilantes. Qual outra despertou cobiça tanta naqueles fundões? <br />
Um dia, acordou de ventre aceso, esfogueada. Volteou pelo terreno formigando de prazer, bufando libido pelas ventas arfantes. O andejo lhe dava agradável sensação. Não tivera sonho ruim naquela manhã, mas sono inteiro nos braços de homem irrequieto, diferente do morcego de tapera roncando ao seu lado todas as noites, soltando puns, cheio de pesadelos. O ente onírico não era seu marido! Era graça pousada em madrugada de paz, dando asas a desejos não cumpridos. <br />
“O que há igual a beijo, se o desejo rasga caminhos em direção a lábios de fogo? Mas, ah, desgraçado! Por que viras fumaça ao amanhecer, enquanto minha carne trema e minha alma prossiga em chamas?”<br />
Ficava assim, entre perquirições e desconsolos, apaixonada e sonhadora, doando-se às fantasias da imaginação. Dizia aos botões ao fim dos ais e respiração ofegante:<br />
“A paixão pode tudo, eis o perigo. Os nós mais difíceis se desamarram sem esforço.”<br />
Mas era mulher honesta! “E o respeito, sô?” - Indagava, logo se livrando da possibilidade de pecar em ação e pensamento, este muito recorrente, só que, dessa vez, chegara com intensidade inaudita. Dorotéia não era boba. Sabia que coragem de amor desanda em imprudência.<br />
“Minha luta, fui eu quem lutei. Por isso, sei dos meus limites e das minhas chances de errar.” - Dizia, ao embaralhar-se nas encruzilhadas, saindo fora de compromisso demeritório. <br />
De manhãzinha, feijão-de-corda na caldeira, carne-de-sol pronta para o fogo e batata-doce cozida; após, determina a hora para o quiabo e a macaxeira frita. Retornaria pouco antes do almoço, cansada, suada, desarrumada, barro, terra e tabatinga seca e rachada nas canelas, cor de inhame cozido. Era assim todo dia. Mas sempre trazia boa intenção para o tempero da comida. Acebaldo era o pai daquele mundéu de crianças, quase todos com nome emprestado e sem rumo.<br />
Quando a matança de jegues estava no auge, ele comandava como chefe de família. Depois, entregou-se a falar mal dos negócios, resmungar, botar defeito em tudo! Andava como coisa sem valia pelos cantos da casa. No entanto, seu sangue permanecia nas veias das crianças.<br />
“Naqueles sertões, sonho era sonho! A verdade morava nos dias claros, onde as ex-clamações se sucediam, desanuviando espíritos e aliviando pecados”. - Pensava a bela mulher, cabecinha cheia de artes, molejos e intenções. Mas nunca passou disso.<br />
Para falar o certo, quando nada se queria, o sonho era estorvo. O importante estava em casa, para quando a comichão batesse entre as coxas e o ventre. Não era coceira de barro seco na pele, mas coisa de dentro, do instinto, tipo cio rompendo a pele como lava fervente, descendo e subindo pelo abdome. Era de fechar os olhos e pensar no sanfoneiro da cidade, que tocava forró no salão paroquial nos fins-de-semana, sem, contudo, dar atenção às mulheres do lugar. Daquelas bandas de Dorotéia, nem se diga! O padre conversara ao pé da orelha do músico, dizendo-lhe do recato das paroquianas. Avançando sinal, o músico não mais seria contratado para as quermesses! Quanto mais indiferença, mais as mulheres grudavam o pensamento no pecado. Coisa de mulher! Mas pecado com sanfoneiro o padre sabia já no dia seguinte, no primeiro ato de confissão. <br />
Terminada a festa, a imaginação ganhava espaço e mundo, levando o mulheril a traquinar sob sentidos de lascívia proibida. Eram pensamentos antigos, egressos das idéias das parteiras. A cada parto, monte de recomendações caprichadas enchia a cabeça das parturientes. Bem que Dorotéia reservava-se em devotado respeito; não construía culpas para não sofrer; mas trazia tratados de fantasias na memória, alegando para si que era “coisa dos antigamentes”, tipo avós deitados nas alfombras com índias dispostas, ou guerreiros atraídos por européias carentes, ou europeus atazanados de luxúria, diante da nudez singela, ingênua e livre das mulheres cor de canela.<br />
Fosse Dorotéia mais estudada, falaria em memória genética. Após os sonhos, ela entesava na imaginação. Ao fim dos pensamentos, obrava em solidão dolorosa, rendida à sublimação, levitando e afastando de uma vez por todas as peripécias da libido maculadora. A filharada ajudava nesse processo de resfriamento lascivoso. <br />
“Não fosse a força de vontade, andaria de olheiras para lá e para cá!”, pensava Dorotéia.<br />
Nos sítios isolados e tranquilos, macega alta, bananeiras e coivaras para mais de metro, não era de se duvidar. Não só isso. Havia outros recursos!<br />
Dentro daquele corpo, mil capetas brandiam lanças e tacapes. Sua resistência conhecia abismos. Para ceder, bastava um relampear. Era fechar os olhos e socar a vergonha num caritó do rancho. Mas Dorotéia era forte, aliás, era mulher e meio no desiderato de superar obstáculos. <br />
Pois bem! Naquele dia, almoçaram rapidinho. Não havia tempo para conversas. O arado e a terra aguardavam-na. Acebaldo rabiscava-lhe o olho. Getúlio, Cosme e Dodô acompanhavam a mãe pela manhã. À tarde, estudavam. O restante da prole ficava em casa, formando barafunda, cagança e aporrinhação para quando a mãe chegasse do roçado ao anoitecer. <br />
Acebaldo vivia de empreitadas de pouco futuro. Dentre outros bicos, catava lenha e caçava. Dentro do mato, era homem doido, trincando dentes e apostando que daria golpe certeiro em caça grande. Arrasta-la-ia mato afora até o pátio da casa, para Dorotéia ver que sua eficiência ia além do imaginável. Idéia antiga, era dos que, por dentro, mais se parecia com índio.<br />
“Duvido que exista algum bicho desse mato, quanto mais enorme de dar medo, ou garantidor da subsistência da família”, pensava Acebaldo, embora não perdesse oportunidade de prometer o feito. Ele não jogava utopias no lixo. Precisava de bengalas para viver e acreditar na sorte.<br />
Um quarto de hora andado. Dorotéia parou para beber água na fonte, domando a solidão e o calor do corpo. Água limpa, colhida na folha de taioba. Debruçada em direção à fonte, correu-lhe doce quentura, como sentira pela manhã. Mas ali, como por encanto, o rosto enrubesceu. Afloraram olhos mágicos, tez resplendente, fisionomia sensual. Mirava os seios túmidos e doirados refletidos no espelho d'água. Orgulhosa, disse baixinho: “São lindos!” Não era narcisismo. Ali estavam os mais belos da região!<br />
O pecado mandou aviso. Ela se manteve indiferente, mas deu asas ao sonho. Os filhos não desmereceram suas belas maçãs. Bem abrigada sob a encosta de flora exuberante, banda noruega do caminho, bem mais assombreada que a outra, afastou vestido e sutiã. Em seguida, apertou levemente os mamilos com os dedos, acompanhando o movimento refletido n'água, locupletando-se de luxúria. <br />
“Ah, que besteirada é essa!”, pensou, lançando mão da taioba para atirar água nas partes íntimas, refrescando-se. Daí, amansou-se da montanha de desejo. Não seria naquele momento que a dança ritual explodiria em ais. O refrígero mineral aprumou-a, interrompeu o frenesi. Partiu para a roça, onde gradearia o solo para dar-lhe sementes no dia seguinte. <br />
Ela perdia o viço na poeirada. Só emergia de si mesma ao soltar sucessivos aboios: “Eia, menina, eia!”, levando a égua adiante no manejo da terra. Então, o rosto brilhava de formosura. <br />
Naquele dia - eta mulher arretada!- era sensação pura, poeira, suor, sol nas ancas, na bunda torneada, nas canelas, nas coxas peludas e no rosto. Predicados que tantos convites formalizaram para que fosse morar em São Paulo. Dorotéia lindava com o gozo a cada passo e grito, a cada lembrança e sonho perturbador. Pela primeira vez, dava de comer a pecado tão cheio graça. O corpo se energizara. Necessitava dar vazão às ânsias reprimidas<br />
À tarde, ao retornar, perturbava-a o príncipe encantado. Ele estaria na fonte; ela esqueceria as atribulações por um instante. Escorregando sobre a rampa íngreme, encontrou abrigo na frescura do chão alfombrado. O crepúsculo tirara claridade à nascente. Ela já não divisava os seios com clareza. E o príncipe, que nada revelaria do que acontecesse ali? Dorotéia se remexia, mode lacraia na cinza. Um lado dizia não; outro, dizia sim. E o sangue dos índios kariris, paiacus, tocarubas e surucus? De súbito, conscientizou-se de que nada daquilo era coisa sua. Impulsos transcendentes levaram-na ao coração descompassado e à alma confusa, diante das bisavós devorando secundinas e cordões umbilicais cozidos. Algum europeu evitara precipícios! <br />
Chegara apertando coxa com coxa, mãos na cintura em bailado de coreografia sensual, cheiro de fêmea no cio. Roncava desejo; atiçava seu príncipe a tirar-lhe a calcinha. Foi atendida. Seus dedos, nos de Dorotéia, arriaram a peça íntima. Após, sentou-se na areia, rogando-lhe um abraço. Seus braços fecharam-se sobre o próprio corpo e se sentiu apertada pelos do príncipe. Delirava! Nem parecia a Dorotéia das obrigações. Agora era Dorotéia de Deus, da Criação, da Natura!<br />
Fazia mês e meio que o marido se preocupava com o tal bicho enorme. Por isso, a quantidade de sonhos; não parava de sonhar! Olhos cerrados, dizia ao príncipe: <br />
"Vamos, sou toda sua! No seu mergulho, iremos juntos ao paraíso. Não pare, vamos, galope! Suas mãos fortes, seus músculos rijos... Vamos, toma-me por inteiro!"<br />
Solenidade pura, Dorotéia tratou com inacreditável decência o soquete de feijão preso aos pés, untado de banha. Dedilhando os mamilos, idéias atiradas no mar das simbologias do inconsciente, pedia ao príncipe que a envolvesse toda, possuindo-a com volúpia e vigor.<br />
Ao fim, que viagem fez Dorotéia agarrada àquele príncipe de fumaça, como erva - de-passarinho dominando árvore robusta!<br />
Relaxada, não tardou a divisar o rancho e a filharada, a tempo de ver Acebaldo moqueando um gambá. Ninhada à volta, um que outro jogava adivinhação sobre o jantar. Naquela noite, Dorotéia permaneceria com os olhos em descanso, sem que os globos variassem em torno de nortes e buscas. Ela gostava de tentar tirar leite de vaca morta; naqueles fundões, os prazeres eram raros. Por muitos anos, fez-se parideira exemplar. Todo o resto ficava por conta da imaginação, que lhe proporcionava viagens de puro algodão doce. Após arrancar a caça das mãos do marido, lançou anúncio, sem dar explicação.<br />
- Quem engorda, o gato come. Jantaremos ensopado de gambá com banana verde!<br />
Ouviram-se vivas e a noite se foi como as outras: neutra, nem triste, nem alegre. <br />
Essa e outras histórias correm pelo sertão de boca em boca. São causos anunciando que as mulheres romperam barreiras, enquanto os homens caçam, pescam e dormem, como se venerassem tradições indígenas residentes em algum lugar do sangue, da memória ou da alma. <br />
Sabe-se lá onde!<br />
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</span></i><br />
</div>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-75692367753059323412009-09-27T20:44:00.000-03:002009-09-27T20:44:03.307-03:00A GRASNADELA DO CORVO<div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>João ficara. Mulher e filhos foram ao povoado, visando buscar vaga na frente de trabalho aberta pelo governo. Ardendo em febre, João não tinha condições de acompanhá-los. A enxada quase lhe tosara o dedão do pé. A ferida desandara em séria infecção.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Lá fora, o sol inclemente a tudo esturricava. Sequer uma brisa aliviava a secura do ar, embora João dela não necessitasse, pois espantava os tremores causados pela febre sob velho cobertor. Sobre a banqueta, ao lado do catre, moringa, caneca e comprimidos compunham o retrato da natureza morta de suas desgraças.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>A tarde avançava. João já consumira um punhado de velhos comprimidos. Contudo, não aplacaram as dores do moribundo.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>A ferida latejava. Enorme íngua instalara-se na virilha.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Um silêncio de tempo finda pairava em derredor, edificando mórbida impaciência no acamado. Preocupava-se com a demora da mulher e filhos, pois a noite não tardaria. Pensou em acender a lamparina, mas desistiu; decerto, chegariam antes do anoitecer. Enganara-se. A tarde fora rápida e o crepúsculo, fugaz.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Era dor intensa e contínua, provocando João a providenciar emplastro para a ferida e procurar ajuda. Febre e dor rompiam-lhe as resistências. Fora cabeçudo: o dia passou e se garantiu, apenas, na promessa muda de algumas aspirinas vencidas.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Noite fechada, determinou-se a acender a lamparina. Ao descer do catre, constatou a incapacidade de apoiar-se sobre a perna lastimada, cuja dor lancinante levava-o a sérias con-torções. Sentou-se. Não acreditava no que acontecia. Destemido, trabalhador e irrequieto, de repente, viu-se entrevado.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Que fazer naquela escuridão? Sem lhe dar tempo para respostas, misteriosa grasnadela partiu dos escuros próximos à casa. Não era diferente da que ressonara tantas vezes pelas caatingas no seu tempo de menino, quando se agarrava à saia da mãe, pressupondo tratar-se de espírito do mal, ameaçando sua família naqueles rincões desertos. Mas um homem naquele estado não tinha condições sequer de intimidar-se com fantasmas.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>A dor monopolizava e não permitia outro tipo de medo que não se ligasse às suas próprias causas. De fato, o temor concentrava-se na possibilidade de a ferida arruinar. Das almas penadas, safar-se-ia; mas da ferida, não sabia como. Ao demais, tratava-se de um corvo, apenas um corvo. De súbito, indagou sobre o que fazia um corvo perdido naquelas paragens. Bateu-lhe confusão, decorrente mesmo da debilidade físico-mental, tornando precário o exercício da razão. Em consequência, imaginou tratar-se o grasnar de aviso funéreo. Afinal, a seca levara para longe todos os seres vivos da região, menos os homens e suas crenças nos mistérios do além.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Findas as lucubrações pertinentes à ave, arrastou-se até o fogão, onde achou fósforo e lamparina. Doía-lhe todo o corpo, tomado de extrema sensibilidade. Sentia frio, estranho frio. Com imensa dificuldade, sustentando-se na perna esquerda, atingiu o intento. Tímida luz propiciou-lhe locomoção mais desenvolta. A febre provocava-lhe náuseas e tontura, não lhe permitindo acender o fogo e preparar o emplasto. Como há pouco anoitecera, calculou que a mulher chegaria a qualquer momento e, então, cuidaria de fazê-lo.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Deitado, gemia. Não dobrava mais a perna. O mal recrudescia. Lá fora, cessara o grasnado. Nem um pio; sequer um farfalhar de folha seca. A natureza esvaziara-se diante da estiagem prolongada. Até as lagartixas debandaram.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>A vida inteira de miséria multiplicara-lhe a revolta. Naquela noite, porém, a intensidade febril subtraíra-lhe até a legitimidade de revoltar-se contra as necessidades prementes.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Piorava seu estado geral. Lembrou-se de orações recitadas na infância. Elevou preces a Deus; desculpou-se pelos anos de negligência com os preceitos bíblicos. Rogava ajuda, penitenciava-se, orava e foi por aí durante algum tempo, até que a febre abrisse a porta da alucinação. Em diante, a imaginação construía-se ao custo de terríveis cenas. Curtos espaços de sono levaram-no a mergulhar em pesadelos indescritíveis.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>O tempo passava. O quarto transformou-se num inferno. Rondavam-no animais estranhos, verdadeiros monstros ameaçando destroçá-lo com suas garras e dentes afiados. Noutros momentos, aves negras e gigantes, bicos pontiagudos, atiravam-se contra seu corpo para, em seguida, pulverizarem-se em mágico sumiço, dando lugar a serpentes brotadas das paredes em sua direção. Pedia pelo amor de Deus que o deixassem em paz. Não adiantava repetir-se em orações, pensava. Era castigo divino a cobrar-lhe pecados. Mas que pecados, se não os tinha? - Chegou a balbuciar.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Nos pequenos intervalos da intermitência convulsiva, pensava no sofrimento da mulher, a quem prometera vida menos amarga. Entrava ano, saía ano, era danação sem fim, seca desgraçada, enquanto diziam que, sob o solo, um mar de água doce aguardava poços artesianos prometidos pelas autoridades. Mas quem era essa gente que nunca dera as caras por aquelas bandas? - Protestou. Diante da agonia, um filme de miséria mostrava sementes esterilizadas pelo tempo seco; a água salobra chegada no lombo dos jumentos ou na cabeça da mulher; os teiús dos tempos imemoriais. Agora, tudo era fim de mundo; mal se conseguia um calango. Até os ratos debandaram. Sobraram cactos! Entregue às recordações, concluíra que sua mulher era uma heroína. Suportava tempos ruins, diante do sofrimento dos filhos, sem dar importância aos paus-de-arara acenando a boa-vida das cidades grandes. Sua esperança era maior que as promessas.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>O inchaço da perna era péssimo sinal. O dedão gangrenara. Já não sentia o pé. Restava procurar socorro na casa do compadre Raimundo, a poucas centenas de metros dali. Mas como, se quase não conseguira acender a lamparina? E os tremores, o delírio, as dores, as visões alternadas de instante a instante? E como andaria o jumento àquelas horas, sem ração e água durante o dia inteiro? Mesmo combalido, com relances alucinatórios, arrastar-se-ia até o animal. A escuridão abissal recebeu-o no terreiro. Já não ficava de pé. Tateou uma vara para apoiar-se. Encontrou-a, mas em vão. Pensou na lamparina, mas como retornar? Rastejou em direção ao potreiro chamando pelo animal que não dava as caras. Constatou que se evadira. Praguejou-o, mas logo lhe deu razão. Com sede e fome, escapara. Não seria diferente.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Tudo conspirava contra João. Ruim lá dentro, pior cá fora.Tentou retornar ao casebre. Inútil. Enfraquecera. Recostou o corpo na cerca para recuperar-se.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Milhares de estrelas dançavam nos seus olhos. Naquela noite, pareciam-lhe multiplicadas, algumas muito reluzentes. De repente, a dor cedeu. Instalou-se profunda paz interior, levando-o a percorrer o firmamento, como se fora enorme ave.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Não demorou, um barulho de carroça despertou-o de sua viagem fantástica. Um risco de esperança tomou-lhe a alma. Sentia-se melhor e o socorro chegara! Uma voz gritou seu nome. Reconheceu-a. Era Raimundo. João respondeu debilmente. Havia mais alguém, pois ouvia conversa. Ao aproximar-se, Raimundo acocorou-se e lhe perguntou o que fazia deitado no terreiro. Arrastando as palavras, falou do ferimento, da febre, da dor e da impossibilidade de locomoção. Sem perda de tempo, o amigo e os dois acompanhantes, soldados da força pública, afastaram-se da carga que traziam e levaram o enfermo para o casebre, onde constataram seu estado desolador. Os soldados entreolharam-se, permanecendo mudos. Para prestar-lhe socorro, necessitariam da carroça. Foi aí que Raimundo revelou: sua mulher se envenenara, levando consigo os dois filhos. Estavam ali com os corpos. Ela deixara bilhete pedindo-lhe desculpas. Segundo Raimundo, ela não conseguira vaga na frente de trabalho. </em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Sua ação fatal moveu-se pelo desespero.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Mas seja forte, João! A vida continua! Ainda há muito chão pela frente! Acreditemos no futuro! - Disse-lhe Raimundo. </em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Talvez João não ouvisse a recomendação de Raimundo. Seus olhos semi-abertos já não brilhavam. Apenas uma lágrima luzia no rosto duro, refletindo a tênue luz da lamparina.</em></strong></span><br />
</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-56355686401291550472009-09-21T23:31:00.000-03:002009-09-21T23:31:00.981-03:00A ARCA DO TESOURO<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Pedrinho determinara-se a descobrir a fórmula da felicidade, algo que o fizesse tão feliz como os meninos residentes nos bairros ricos.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Era muito pobre. Não conhecera o pai. A mãe sustentava quatro filhos com lavação de roupa. Não bastasse, a avó materna residia junto à família no barraco apertado. Frequentara os três primeiros anos do curso primário. Embora gratuito o ensino, havia uniforme, sapatos, alimentação, passagem de ônibus, ao mesmo tempo em que se tratava do filho mais velho, muito requisitado na ausência da mãe. Afinal, sua avó vivia entrevada numa cama, doente, quase cega. Pedrinho tomava conta dos irmãos menores e alcançava remédios à avó. Havia, pois, muitos problemas impedindo-o de continuar os estudos. Resolveu sair de casa.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Ele sonhava muito. Não compreendia como havia meninos bem vestidos, tênis de marca, boa alimentação, belas bicicletas, cinemas e passeios, desejos atendidos, enquanto outros passavam por necessidades, inclusive fome. Os privilegiados tinham tudo o que queriam, vida de príncipes.Foi o desejo de conquistar essas maravilhas que impulsionou Pedrinho a sair de casa. Descobriria o caminho da felicidade. Já no primeiro dia, constatou que, sem dinheiro, não usufruiria as coisas boas da vida. O coitado estava sem vintém, não tinha sequer para comprar um pão. Começara a provar os amargos dercorrentes da decisão de sair de casa. Lá, ao menos, sua mãe conseguia o mínimo para não deixar a família passar fome. Sua avó, num golpe de sorte, alcançara uma pensão. Recebia um salário-mínimo mensal. Seu marido fora operário naval e trabalhara quarenta e tantos anos com carteira assinada. Mas o que fezia o garoto, agora longe de casa?</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Enturmado com alguns flanelinhas, sobrevivia dos trocados recebidos dos motoristas nos estacionamentos da via pública. Por mais que tentasse, não vislumbrava como atingir os objetivos. Na lida diária, observava que não era só ele o desprotegido pela sorte. Centenas, milhares de garotos perambulavam pelas ruas, mal vestidos e com fome, dormindo sob pontes, viadutos e calçadas, vivendo da caridade alheia. Alguns não tinham sequer família, situação pior que a sua. Contudo, os sonhos borbulhavam: roupas novas, casa com televisão, geladeira, máquina de lavar roupa e tudo o mais que pudesse adquirir para dar conforto à mãe. Compraria computador, iria ao parque de diversões e ao circo. Não esqueceria da avó, que seria atendida numa pomposa clínica, supervisionada por bons médicos. Automóvel? Ah, claro que teria um! De preferência vermelho! No natal, um belo pinheirinho cheio de luzes piscando, cercado de presentes, bolas de futebol e bicicletas para os irmãos; vestidos, blusas e belas sandálias para a mãe e para a avó; presunto, frutas, bolos e outras guloseimas natalinas... Assim vivia o garoto, cheio de imaginação e vontade.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Prometera a si mesmo que só voltaria para casa quando descobrisse a fórmula de realizar os desejos. Entretanto, a cada dia se decepcionava com o mundo, pois encontrava as portas fechadas aos seus anseios. Não conseguia transpor a vida de garoto de rua, cujos ganhos como flanelinha mal davam para atender à sua necessidade alimentar. Dormia sob marquises em companhia de outros meninos, sobre jornais e papelão. </em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Certa noite, pouco depois de se deitar, teve uma visão fantástica. Uma grande arca pousava sob as águas do mar, proximamente à praia. Estava abarrotada de jóias, diamantes, rubis, esmeraldas e dobrões de ouro. A visão levava-o a um lugar já conhecido, uma enorme pedra a cerca de vinte metros da areia, na praia de Copacabana. No silêncio da madrugada, aquela visão, de tão viva, real e intensa, despertou-o à realidade. Lançou os olhos à escuridão das ruas, impressionado com o que terminara de lhe acontecer. Seria uma mensagem vinda dos céus? - Imaginou. Agradeceu a Deus e rezou, como fazia sempre antes de dormir. Virou-se para o lado e logo pegou no sono. Ainda bem não amanhecera, partiu para o local indicado na visão. Ao chegar defronte à enorme pedra, sentou-se na areia. Finalmente, estava próximo de atingir seus objetivos. Sentiu renovadas as esperanças de vida. Não se demorou muito sentado. Aos primeiros raios de sol, tirou a camisa e mergulhou em direção ao tesouro. Próximo a pedra, submergiu e nadou ao encontro da arca. As águas estavam claras, muito claras, como nunca vira. Em braçadas lentas, foi-se ao fundo de areias brancas. Sua mãe não mais lavaria roupas para fora. Sua avó restabeleceria a visão, removendo a catarata. Seus irmãos estudariam, ganhariam brinquedos e não passariam fome. Atenderia ao sonho materno: seria doutor! Enquanto a imaginação tomava-lhe a mente, o tempo passava. Os olhos vasculhadores percorriam cada trecho submarino; seu corpo bailava por dentre cardumes multicoloridos. Os peixes pareciam velhos amigos a acompanhá-lo na busca ao tesouro. Sob as águas, imperava silêncio absoluto. A expectativa transmitia-lhe emoção sedutora. De repente, eis a arca! Era enorme e antiga, parecida com as dos filmes de pirata. Seu coração disparara de felicidade. Aproximou-se e abriu-a. Durante alguns instantes, ficou estático, deslumbrado com a quantidade e o brilho das jóias e das pedras preciosas. Tudo como lhe aparecera na visão: diamantes, pérolas, rubis e moedas de ouro. Deus atendera suas preces. Doravante, viveria como os meninos dos bairros rico, que possuíam tudo o que desejavam. Diante da arca, lançou as mãozinhas no seu interior e trouxe um lindo colar com um pingente incrustado de belas gemas. Suspendeu-o à altura dos olhos, imaginando-o no pescoço de sua mãe. Pedrinho era só felicidade!</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Naquele mesmo instante, enquanto a manhã enchia-se de bela luminosidade, uma lágrima escorria no rosto de sua mãe. Para ela, não lhe era estranha a razão de seus pressentimentos. Com o tempo, certificou-se da desgraça que se abatera sobre Pedrinho. Para sua infelicidade, os demais filhos tiveram visões parecidas. Todos foram protagonistas inconscientes de um final trágico para suas vidas.</em></strong></span>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-59454012570200613702009-09-21T23:11:00.001-03:002009-09-21T23:13:51.229-03:00RECORDAÇÕES<div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Passava da meia-noite. Manchas argênteas esparramavam-se na sala. Eram folhas, galhos, símbolos estranhos, figuras de chumbo espalhadas no chão e na parede, resultantes do luar rompendo nuvens pressagiosas. </em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Nunca houve atraso tão elástico. Afinal, Madalena confirmara a visita. </em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>O martírio recrudescia a cada minuto. Lá fora, um que outro carro aligeirava-se barulhento. De repente, um táxi defronte ao edifício! Seria ela? Não, apenas um bêbado resmungando por um amor ausente. Em diante, nenhum outro veículo estacionou por dali.</em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Ah, espera tensa, ruindades registrando sentimentos amargos!</em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Havia certeza de sua chegada. Traria balas de coco para o filme das 22 horas. Porém, a frustração desajeitava-me, cutucando-me forte com o correr das horas.</em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Nos instantes do silêncio dilatado, imaginei que os carros não passariam mais; cães e gatos sossegariam; eu me entregaria aos zumbidos junto ao travesseiro. Logo, porém, uma buzina gritava, latidos ecoavam, transeuntes conversavam e felinos atendiam à libido.</em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Meus olhos grudavam no relógio, sentindo a lerdeza dos segundos na alma dos que esperavam com sofreguidão. Os relógios são perversos com os solitários. </em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>O que fazia Madalena naquela noite de ansiedades? Escolhera, tantos anos depois, reservar-se aos meus sentimentos para organizar dúvidas em minha alma? Faria isso comigo, seu dileto companheiro? Não, não faria! Ela não era uma jovem encantada com firulas do coração, para brincar com relações maduras. Seria recaída. Ademais, ela conhecia minha repulsa a esse tipo de comportamento. Dizia-lhe que a idade não comportava certos jogos da alma.</em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>No fundo, acreditava que Madalena não tinha a exata compreensão da falta que me fazia. Culpa minha, qum sabe, mas meu jeito era assim. Não demonstrava minhas intensidades amorosas. Coisa de machismo besta de que me arrependo muito, mas que me acompanha desde rapazote. Se me comportasse diferente, ela pensaria que eu não conseguia viver sozinho, isto é, que ela integrava meu mundo. Eu evitava esse entendimento, não sei porquê. </em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Fazia-me durão; minha realidade interior não emergia induvidosa do meu gesto e da minha palavra, quando Madalena penetrava meu pequeno universo, sorriso aberto e franco, trazendo luz e alegria ao meu ambiente, seduzindo-me. Como fui tolo durante esses anos! </em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Jamais exteriorizei minha felicidade. Fui uma besta! Certos homens aguardam o segundo tempo para arrependimentos e mudanças. Que ilusão!</em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Para ela, fui frio, sem emoções, indiferente à palavra e ao carinho. Quiçá, um ingrato! Na verdade, meu interior não funcionava assim. Ela era a única amiga, meu porto e verdadeiro amor. Com a idade, a memória atulhou-se de lembranças sobre fatos e acontecimentos marcantes. </em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Então, já não era mais moço. Meu relacionamento traduzia-se por sentimentos maduros, alguns mais resistentes que o próprio amor.</em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Fazia-me falta o companheirismo. Pouco vivíamos na relação de amantes. Sublimáramos o sexo em vivências múltiplas e compensações alicientes. Com a idade, é resoluta a exigência de ter-se alguém ao lado, para transcendentalizar o amargo imposto pela solidão. Chega o momento de reverenciar a vida em tom de experiência. Só isso. Nesse trânsito, são poucas as alternativas, sem esquecer do perverso egoísmo embrutecedor da alma. Mínimos detalhes transformam-se em problemas enormes. Alguns sonhos não se realizam por picuinhas alimentadas contra o parceiro. Sofrerão ambos, devido às posições malbaratadas. </em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Na juventude, as portas se abrem às aventuras. Mas me reservava e não mudaria, no que tange à forma de ser e ver o mundo, em especial o jeito de conviver com Madalena. Não possuía o dom de mudar do dia para a noite. Jamais extravasava. Ela não me sentia de maneira diversa, senão da forma como eu era e sempre fora. Seria estranho para Madalena, isto sim, a mudança repentina do meu caráter. No fundo, eu acreditava no seu gosto por certas peculiaridades do meu conduzir. Não o fosse, ela teria me abandonado há tempo. Ao demais, nunca imaginei reformar minha vida, com simples alteração de personalidade. A realidade mostrava minha alma sedimentada, e Madalena, mulher inteligente, conhecia esse particular. </em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Naquele dia, se chegasse, mesmo tarde, eu passaria um mata-borrão nas minhas lamúrias. Madalena constituía-se na jóia mais preciosa da minha vida. Mas ela não chegava.</em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Os ponteiros do relógio transtornavam-me; o menor tripudiava-me sem freios, ao emplacar outra hora de desilusão. Que noite vazia! Madalena nunca endurecera o jogo; na hora marcada, ei-la chupando bala de tamarindo ou de mel. Ao abrir a porta, estampava largo sorriso de alegria. Por que, ao menos, não telefonou?</em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>A decepção trouxe a insônia. Passeei com os olhos sobre a cômoda, o guarda-roupa, o criado mudo. Os objetos levavam-me ao passado. Perquiria a razão das antigalhas, mimos que, naquela madrugada, faziam-me sofrer. Eram lembranças ardendo na alma. Bibelôs, jarrinhas, flores secas, agendas antigas, porta-retratos, cigarreiras, uma infinidade de presentes recebidos de Madalena, ao chegar de seus passeios. Sempre lembrava de mim.</em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Aqueles objetos transmudaram-se em mágoas naquela madrugada de ausência. Uma faquinha de madeira, presente de minha avó para cortar papel, quando eu era criança, parecia penetrar-me, lancinando a alma; levava-me à infância, às ruas antigas, aos meus pais, irmãos e sobrinhos, às festas de aniversário na casa materna. Anatematizei todos os objetos; apertavam-me o coração, ao invés de trazer felicidade. Chorei feito criança, um homem de cabelos encanecidos. E os quadros nas paredes? Desalentador! </em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Madalena nunca faltara sem explicação. Naquela noite, senti o quanto era penoso esperar em vão uma pessoa querida. Mas fechei os olhos.</em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Pela manhã, tomei café e acendi o cigarro. Reuniria o badulaques que jogaria no lixo! Depois, sairia pelas ruas como cachorro sem dono, até reencontrar outro motivo para sorrir. Minhas cargas pesavam. Havia desalento. Se Madalena troçava, eu pedia que não fosse comigo.</em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Por volta das oito horas, tocou a campainha. Chegara a triste notícia de que Madalena morrera! Oh, que desgraça! Como pensara mal de minha amiga, minha amada! Eu que imaginara a ausência noturna como forma de fazer-me figa! Que imbecil! Madalena nunca usaria tal recurso, comum aos adolescentes, para perturbar meus sentidos.</em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Agora chorei sua morte como uma criança. Aos oitenta anos, dizem, não há mais lágrimas. Ledo engano. Chorei por Madalena durante muitas noites, recordando a juventude, a paixão, a amizade e o companheirismo, saudoso das balas de coco, do licor de jenipapo e dos causos antigos que contávamos um atrás do outro. Era a solidão de verdade.</em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Nos seus setenta e oito anos, Madalena trazia um amor cheio de vida. Isso a empolgava. Morreria apaixonada, dizia. Justificava amor tão duradouro no fato de não morarmos juntos. Ah, Madalena, por que pensavas assim? Um dia cederias, e nem por isso deixarias de me amar!</em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Ainda pela manhã, reuni os objetos, como me propusera na noite anterior objetivando vingança. Só que não os joguei ao lixo. Retirei a poeira e os recoloquei em seus lugares. A caixinha de música, presenteada há mais de cinquenta anos, levei-a para conserto.</em></strong></span><br />
</div><div align="justify"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Em diante, meu mundo existe em função de lembranças. Não necessito sonhar com outra mulher. Seria demais para mim!</em></strong></span><br />
</div>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-24959926014436713722009-09-12T02:38:00.000-03:002009-09-12T02:38:55.907-03:00AMOR INTRUSO<div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Uma ânsia de amor profundo abraçou a alma de Dorvalino, rompendo resistências, ganhando-o por inteiro. Não havia lugar onde não se manifestasse: em casa, nas ruas, no mercado. Dorvalino era um sítio tomado em estratégia guerreira: sucumbido, entregue. Coisa de cinquentão caído por ninfeta. Seus suspiros davam na pinta, mas ninguém comentava. Ruim com ele, pior sem ele, dizia a mulher aos filhos, quando via o marido sonhando sob a jaqueira.</strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Conscientizara-se de uma luta interior intensa, flagelo de canções de abandono, forçando o poeta ao rigor dos abrolhos. Dorvalino poeta? Até isso! Escrevia suas linhas piegas, cheio de dúvidas sobre o futuro. Coisa de poeta encasquetado por amante esfogueada. </strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Mas Dorvalino era dos Souza Araripe Ferrão das Cruzes, gente resistente do sul da Bahia, praqueles lados de Teixeira de Freitas, onde homem que se lastimava à-toa, inclusive por mulher, era tachado de fresco. </strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Eta, gente! Como pensar assim, se alma é coisa que nem mulher nem homem dominam? Ah, aquela invasão do amor, dolorida e resistente! Fazer o quê para livrar-me e viver como antes? - Assim Dorvalino reagia, porque entender a cabeça daquela gente, impossível!</strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Recorrendo à bebida, frustrava-se. Os impulsos acendiam-se, emergindo desejo de busca. Mas não buscava; havia dia e hora para encontro. Compromissara-se como o Papa.</strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Safada, a ânsia sorrateira e sem tamanho, marcada ao ferrete dos sonhos, tomou-lhe a alma de assalto, usucapindo-a ponto a ponto. É claro que tudo acontece, quando se encontra a porteira aberta. Dorvalino era mais viciado em garota nova que raposa em galinheiro aberto.</strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Não era homem novo. Encontrava-se na perigosa meia-idade do leão, onde o camarada se constrange só em pensar numa relação extraconjugal. Imagine-se a situação em que se metera, envolvido até o gogó com uma ninfeta de dezesseis anos, Lolita a transgredir-lhe princípios, todos eles, até os penais! Ao fim, praticava escancarada corrupção de menores, cuja sanção faria o pecador mofar na penitenciária. Mas Dorvalino sequer sabia de tal tipificação no Estatuto Penal. Passara a vida numa fábrica de tecido lubrificando engrenagens e olhando as pernas das operárias. Aposentado, foi para casa aporrinhar a mulher e os filhos, com surpreendentes novidades domésticas.</strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Estudava uma forma de diminuir as chamas do amor. Noites inteiras envolvia-se naquela entrega, tal adolescente apaixonado por colega de escola. Sua dor geraria frutos úteis no dia seguinte da espera, imaginava. Encontraria uma saída honrosa.</strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Como sofria! Um sentimento resistente alojara-se no fundo da alma. O enredo amoroso fustigava-o. Fazer o quê? Quanto mais lutava, mais se atolava, enredado nas angústias.</strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>A linda menina, seios de pera, olhos de jabuticaba e mãos de veludo, reinava absoluta nas suas fantasias. Alma em frangalhos? Talvez sim, talvez não. Havia uma confusão dos diabos a transtornar-lhe os sentidos. Pensava nas filhas maiores e nos dois netos que o filho vadio arrumara! Quanto à esposa, essa não entrava no jogo das culpas amontoadas. De jeito algum!</strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>O pungente amor intruso dava-lhe poucas respostas sobre a ninfeta. Atendendo as aparências, Fátima namorava um garotão em casa, duas vezes por semana. Inclusive, Dorvalino sabia que o sortudo era cheio de gás. Ah, aqueles lábios de mel, aquela pele de pêssego! Aquelas coxas de anjo! Meu Deus do céu, tudo isso nas mãos daquele galinho novo!</strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>O amante tomava-se de desassossego, mas Fátima lhe garantia dureza com o namorado, a quem dizia que não a despertasse, pois pretendia casar-se virgem. Beijar era o máximo permitido ao garotão, mesmo assim beijo de cinema, sem língua e sentimento. E, claro, algumas bolinações em zonas pouco erógenas. Ela se determinara a não dar muita chance à libido. As explicações de Fátima aliviavam-no.</strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Mais pensava na jovem, menos admitia a idéia de dividi-la. A mãe, uma tonta; o pai, um alcoólatra. Quem vigiava as mãos bobas do namorado? Passou a duvidar de Fátima. Ela era de responder "não" duas vezes, ao lhe coçar as intimidades. Que dor danada! - Suspirava Dorvalino, ao lado da esposa assistindo à novela das sete.</strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Tudo seria menos doloroso, não houvesse obstáculos impedindo Dorvalino de ver Fátima com mais frequência. Eram a mulher, os filhos e os netos grudados em seu pé, mais a falta crônica de dinheiro; uma porção de besteiras misturadas a coisas importantes interrompendo seu caminho rumo à amada. O tal namorado atrapalhava uma barbaridade! Aposentado, não parava um instante: era o chuveiro queimado, a tomada de energia com defeito, a caixa de gordura entupida, enfim, era sempre Dorvalino para salvar a pátria.</strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Sobrava-lhe a magra segunda-feira para apanhar Fátima na porta do colégio. Dali, iam ao cinema, depois comiam pizza. Esbaldava-se ao lado de seu amor. </strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Ela vibrava com os carinhos de Dorvalino. Era experiente, conhecia de tudo, dos beijos às bolinações. Ela se deliciava! Não contestava as mentiras do amante, tangente à alegada separação conjugal e ao fato de não ter filhos. Não ameaçaria a felicidade do homem que lhe dava prazer, colocando em perigo momentos de pura emoção. Embora nova, sabia que, na idade de Dorvalino, pressões sobre um coração apaixonado era enfarto na certa. Ao demais, sua companhia era preciosa na hidromassagem do motel. Virava criança, de tão feliz.</strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Nem tudo que pensa e se mexe na face da terra permanece vivo e inteiro para sempre. A esposa de Dorvalino saía aos domingos com os filhos, genros e netos. Passava o dia numa das praias de São Gonçalo, no Estado do Rio, fosse na Praia do Focinho do Porco, na Praia da Luz ou na Praia de São João. Num desses domingos, as coincidências marcaram encontro fatal.</strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Fátima não aceitava convite do namorado para frequentar as praias oceânicas de Niterói, tampouco as urbanas. Receava encontrar Dorvalino. Ao falar em praia, Fátima desviava o roteiro para São Gonçalo. Só faltou comunicação com o amante, pois Dorvalino não imaginaria seu amor por aquelas bandas; tratavam-se de praias pouco frequentadas, devido à lama e à sujeira. Localizavam-se no saco da Baía da Guanabara. Até feto boiava naquelas águas.</strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>O pior aconteceu ao meio-dia, quando aquele mulherão caminhava pelas areias da Praia da Luz, trajando sumaríssimo biquíni, cheia de satisfação. Afinal, vinha das bandas da Praia de São João, lugar solitário e afrodisíaco, segundo antigos moradores do lugar.</strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>De repente, os olhos da sereia bateram numa roda debaixo de uma árvore, onde se destacava o chefe da família: Dorvalino, sem camisa, vestindo enorme calção amarelo repintado de florzinhas! Abraçava a esposa, mulher de cinquenta e tantos, mas aparentando sessenta e mais alguns, desleixada de corpo e alma, usuária de perereca um tanto frouxa na arcada dentária superior. Era uma dona de casa comum, acompanhada do marido, netos, genros e noras. Trajava maiô de bolinhas dos anos sessenta. </strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Sobre a toalha estendida na grama, frangos assados com farofa. Um isopor trazia cerveja e refresco. Junto a Dorvalino, um litro de pinga chegava à metade. </strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Fátima enrubesceu, ao ver Dorvalino enaltecendo as qualidades da mulher, da mãe e da avó! A amante retornou, passando pelo mesmo local. Foi quando Dorvalino flagrou sua musa abraçada ao namorado, a caminho da Praia de São João. Dorvalino conhecia a fama da praia. Logo encerrou a conversa, tomando uma talagada da pinga. Ninguém entendeu seu silêncio.</strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Naquela noite, levaram-no ao Pronto Socorro Municipal para debelar uma falta de ar crônica. Já fazia efeito uma dúzia de pílulas, algumas sob a língua. Foi quando sentiu sair de dentro de seu corpo aquela armação amorosa que o aturdia. Fatinha se distanciava. </strong></em></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><em><strong>Pela manhã, fios pelo corpo, soro dependurado, agulha na veia, estonteado, acordou na UTI, sem saber das horas. Olhou para os lados e, calmo, disse para si mesmo, tomado de orgulho: "Sou outro homem! Agora, para ganhar minha alma, tem que pagar pedágio! Me chamo Dorvalino de Souza Araripe Ferrão das Cruzes. E Deus me livre cair noutra de amor!"</strong></em></span></div>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-1193773186124582402009-09-12T01:01:00.001-03:002009-09-12T01:04:26.402-03:00O TEXTO BÍBLICO<div style="text-align: justify;"><strong><em><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Nos</span><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"> </span>confins do Ceará, Veneraldo, Dorcelina e seis filhos sobreviviam da agricultura. Fazia meses que não chovia. Da última precipitação, não restara sequer a lembrança.</span></em></strong></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Veneraldo passava o dia pensando no seguinte, olhos no crepúsculo pressagioso, pés sobre o solo esturricado. Não havia pior miséria, do que ver os filhos e a mulher famintos, transformados em chocalhos de ossos vivos.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Dia sim, dia não, trovejava ao entardecer nos fundões do leste, onde nuvens pesadas alegravam a alma. Era só promessa. Noticiando chuva, as cigarras estardalhaçavam seu canto. Era alarme falso. Também os insetos deliravam ao rigor da canícula perversa. Veneraldo acreditava no coaxar da saparia. Entretanto, onde sapo, onde brejo, se tudo virara um só sequeiro? Manhã seguinte, o sol estendia seu manto causticante sobre os homens, sobre as plantas, sobre a terra e as ilusões.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Certa tarde, Dorcelina não retornou da cacimba. Pai e filhos caminharam em procissão de reza pura durante horas, na crença de que a mulher se acometera de algum mal. Que nada! Do que ouviram, Dorcelina abandonara a família na garupa do jegue de Zé Fadinho, em direção a um pau-de-arara destinado à cidade grande. Frustrados, retornaram praguejando o mundo. Fazer o quê, senão excomungar a desonrada desertora?- Pensara Veneraldo, constrangido diante dos filhos, imaginando como viver sem as costelas da mulher. Os dias passaram. Só o mandacaru mantinha-se de pé nos arredores do casebre.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Numa noite de lua cheia, as crianças cantavam modinhas. Desajeitadas, cirandavam e riam. Ao fim, recolheram-se. Veneraldo comoveu-se. Não lhe passara a idéia de que tamanha miséria concedesse espaço ao canto, ao riso, à felicidade. Resolveu procurar depressa uma solução. Sentira o quão dificultoso fora às crianças realizar simples dança de roda. Não sofreriam mais. A subnutrição fazia e desfazia de seus corpos esquálidos. Não mais comeriam calangos e ratos, mesmo porque estes já rareavam no estéril cenário da seca. Tampouco saciariam a sede nas águas salobras, turvas e fedorentas das terras do Genivaldo da Otília, que anunciara intenção de botar preço nas latas de vinte litros. Fugir? Para onde? Veneraldo rompeu a noite lavrando projetos. Olhava para o céu, rezava e pedia solução. Até que deu um estalo! Sem mulher, sem chuva e sem saída, a morte seria a melhor dádiva. As crianças não se importariam de ir para o céu mais cedo. Seria a salvação, pensou, diante dos poucos pecados apurados durante a vida.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Pela manhã, convocou as crianças para dizer-lhes que a solução seria procurar refúgio no céu. Lá encontrariam o mínimo para vencer a eternidade: farinha de mandioca, rapadura e água limpa. Orozimbo, o menor, lambeu os beiços; Serena torceu-os, com ares de dúvida; Querubim manteve-se estático, olhos fixos no rosto do pai, imaginando a fantástica viagem divina; Evanildo coçou o queixo, achando excelente a saída; César idealizou viajar para a Capital, onde, segundo diziam, jogavam leite e mel nas lixeiras. Veneraldo afirmou, porém, que a morada do capeta era justo na Capital, ao que César logo anuiu. Marinalva, a mais velha, com 13 anos, detestou a opção paterna; contrariava ensinamentos bíblicos. Passavam por uma provação e, se tentassem contra a vida, o destino não seria o paraíso celestial, mas os caldeirões do inferno. O pai e os irmãos olharam-na surpresos, pois Marinalva não se dava bem com as orações. O pai a obrigava à leitura de trechos da Bíblia, por ser a única alfabetizada. Ela disse, ainda, encontrar-se no livro sagrado a maldição pesando sobre os que põem cobro à vida: Deus os mandaria de volta à Terra em forma de bichos. Veneraldo pediu que ela mostrasse onde estava a prescrição do castigo. Marinalva folheou o livro, parou numa página e leu: "Aquele que desistir voluntariamente de viver, pretendendo as delícias do paraíso, encontrará as portas do céu fechadas, retornando à Terra em forma de bicho". Foi o bastante para desistirem da idéia do suicídio. De repente, trovejou forte; Marinalva alertou ser mandado de Deus, renovando as esperanças dos descrentes. Veneraldo sentiu arrepios; àquela hora do dia, não era comum trovejar. Ao demais, o estrondo se dera no momento imediato à leitura do trecho bíblico. Marinalva fechou a Bíblia e se aquietou em reservada satisfação. Sucumbira o projeto absurdo do pai!</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Daquele dia, decorreram quatro meses. Veneraldo, até ali, enterrara cinco filhos, todos mortos de inanição. Agora, Marinalva enterraria o pai que morrera de fome, tristeza e desesperança. Não suportou o suplício. Sepultado, ela se sentou na soleira da porta e chorou. Convenceu-se de que o falso texto bíblico lido ao pai e irmãos continha verdadeira e severa sentença. Mas naquele momento seu descortino não alcançava solução diversa da indicada pelo sofrido homem.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Já era noite. Um gemido ecoou pelo descampado sertanejo. Uma velha faca, usada para cortar cactos, alimento que lhes restara na lavoura da miséria, rompera o coração da jovem.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Dia seguinte, enquanto chovia torrencialmente, uma cascavel refugiava-se na desolada tapera, junto ao corpo da menina-moça.</em></strong></span></div>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-40466034056728823642009-09-12T00:29:00.001-03:002009-09-12T00:29:57.184-03:00CAÇA AO FRANGO<div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Domingo, André comeria galinha ao molho pardo. No sábado, foi ao abatedouro com a esposa. O atendente colocou-os à vontade na escolha da ave. Num amplo galpão, onde centenas delas se alvoroçavam, André apontou para uma penosa bem gorda, logo atingida pelo puçá preso a um cabo de vassoura. Nesse momento, de inopino, André avançou galinheiro adentro atrás de um frangote chegado a carijó. Seu gesto subitâneo colocou as aves em polvorosa. Sua mulher, o atendente e os fregueses espantaram-se. O homem enlouqueceu? - Pensaram.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Quero aquele frango pintado!- Gritou ele, atrás do ágil galináceo.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>A confusão alertou o dono do estabelecimento. Ninguém explicava o comportamento de André. Cansado, pediu ajuda à mulher.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Já escolhi a nossa galinha, André!</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Levamos a galinha e o frango! - Respondeu ele.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Não há necessidade, amorzinho.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Não discuta! Pare de falar e me ajude a pegar esse desgraçado!</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>A coisa ficou nebulosa. André parecia enraivecido. 'Desgraçado' passou a ser elogio.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Num dado momento, ele se confundiu. Apareceu outro frango igual ao perseguido. Deu meia parada e pediu à esposa para não deixar passar nenhum tobiano.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Meu bem, tobiano é cavalo com manchas brancas sobre pêlo avermelhado ou escuro.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Dá no mesmo, Joana. Quero os frangos pretos pintados de branco, tipo carijó falsificado.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Em diante, todos ajudaram, aprisionando quatro frangos pretos com pintas brancas.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Levarei os quatro, mais a galinha.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Meu bem, o que deu em você?</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Depois falamos! Não importune. Em casa, eu explico.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Mato os quatro? - Perguntou o dono do abatedouro.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Não, não. Só a galinha. Reserve o sangue, pois será à cabidela. Levarei os frangos para criar. Agrada-me o colorido de suas penas.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Os fregueses entreolharam-se, reprovando o péssimo gosto de André.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Quase num murmúrio, sua mulher perguntou:</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Como criaremos frangos em apartamento?</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Rispidamente, porém baixinho, respondeu:</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Cala a boca, mulher!</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Da barafunda, ele saiu meio envergonhado. O dono do comércio meteu ripa:</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Cada louco com sua mania.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Em casa, André emborcou um cesto sobre os frangos e apanhou uma faca afiada.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Para que a faca?</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Você é curiosa, faz muita pergunta. Trinta anos de casados, só agora descubro sua língua e sua mente como péssimas aliadas para acompanhar-me no dia-a-dia.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Oh, André, o que deu em você?</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Cuide da galinha e me deixe com os frangos!</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>André apanhou o primeiro e firmou sua cabeça no esfregador de roupas do tanque. Num golpe, decepou-a. Ainda se mexendo, André rasgou-o com precisão cirúrgica, sacando o papo e a moela. Tirou o alimento e colocou num prato: areia, milho, ração e por aí. Até uma miçanga azulada ele encontrou. Depois de vasculhar, jogou o conteúdo do prato na lixeira.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Joana, depene este.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Você faz a coisa errada. Primeiro, mergulha-se o frango na água fervente, retirando-se as penas. Depois é que se extrai o papo.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Sei o que faço! Você já está enchendo o saco!</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Vai para o molho pardo?</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- É muita coisa. Limpa e põe no freezer!</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>André partiu para o segundo frango. Matou-o, retirou a moela e o papo. O mesmo procedimento anterior. Depois de bem esmiuçado o alimento do miúdo sobre o prato, lançou-o à lixeira. Após, entregou-o à mulher para depená-lo, partindo para o terceiro frango.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Vai matar outro?!</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>André já não falava. Apenas balançava a cabeça.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Joana estranhava seu comportamento. Desde que iniciara a perseguição aos frangos no matadouro, não mais sorriu. Ar circunspecto, falava de lado. De súbito, Joana assustou-se:</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Achei! - Gritou André, esfuziante, enquanto Joana corria ao seu encontro.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Achou o quê, André?</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Vamos, Joana, passe-me o álcool e aquela cola rápida que está na porta da geladeira!</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>André trancou-se no banheiro, levando bons minutos para sair. Quando o fez, era outro homem. Até sua cor melhorou. Voltou a ser o homem que Joana conhecia: alegre, comunicativo, sorridente e amoroso. Pediu-lhe desculpas por algumas grosserias.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Resgatado o pivô e o respectivo dente que soltara da arcada dentária, no momento da escolha da galinha no matadouro, não havia mais motivo para tristeza e cara fechada. O frango engolira a peça e André tinha a exata noção de quanto pagara ao dentista pelo serviço.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"></div>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-1078975950615264182009-09-10T11:35:00.000-03:002009-09-10T11:35:18.162-03:00A COBRA GUARDIÃ<div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Havia um trecho piscoso do Rio Paraíba do Sul, divisa de Minas com o Estado do Rio, onde não ousavam pescar. Os antigos alertavam sobre a existência de enorme cobra vigiando de margem a margem. Os pescadores nunca a viram, mas a respeitavam.<br />
Era aviso de pai para filho. O local ficava abaixo da hidrelétrica da Ilha dos Pombos. Povo desconfiado, nem chegava perto da área esconjurada. Divertia-se noutras paragens. Havia rio demais para se preocuparem com trecho tão insignificante.<br />
Caetano não era de crendices. Para ele, superstição significava carência de neurônios. Não se abalava com fantasmas, bruxas, cobras gigantes, vampiros e por aí afora. Nascera na cidade do Rio de Janeiro. Até ali, aprendera que o perigo morava dentro do homem. Assistira a coisas do arco da velha, inclusive já tropeçou em cabeças decapitadas por bandidos; conviveu com assaltos, estupros, sequestros, assassinatos brutais. Não tinha medo de balas perdidas. Assim, como ter receios de uma cobra, conhecida há anos como guardiã de um pedaço de rio? Pura gaiatice, pensou.<br />
Aposentado, comprou um sítio defronte ao rio, próximo ao local perigoso. Ouvira a advertência, acreditando que o IBAMA fora quem plantara a idéia, visando a preservação de alguma espécie animal ou vegetal. Na região, margeia o Rio Paraíba respeitável mata.<br />
Com o tempo, verificou tratar-se de assunto arraigado no espírito da comunidade. Sentiam arrepios só em falar no tamanho da cobra, seu furor e seus desígnios assassinos. Caetano ria-se por dentro. Educado, não contrariava os velhos moradores, que incutiam nos descendentes o estigma macabroso. Sua mulher se reservava. Não dizia que sim, nem que não. Os dois filhos não olhavam para as bandas enfeitiçadas do rio. Às vezes, preferiam não pescar. Liam, assistiam televisão, conversavam. Talvez a juventude mexesse com eles, pois leve temor balançava suas almas.<br />
Certa feita, Caetano bandeou-se para os lados de Além Paraíba, acima da represa, onde, diziam, pescava-se muito piau. Retornou de fieira vazia.<br />
De volta, uma luz! Havia peixe no tal lugar proibido. Ali não batiam tarrafa ou lançavam anzol, razão da piscosidade, em especial no poço entre as pedras tomadas de ingazeiros.<br />
Esse negócio de superstição é coisa de trouxa! - Pensou, dirigindo-se para a margem direita, justo onde os mais crentes alardeavam encontrar-se o ninho da cobra, seu local de descanso após engolir intrusos. Entre os arvoredos, meio que sobre uma ilha de pedras de todos os tamanhos, sentou-se com seu equipamento de pesca. Vara para um lado, isca para outro, montou o instrumental. Não decorrera meia-hora, abarrotara o samburá. Nem lhe passavam pela cabeça as papagaiadas da vizinhança, sobre o perigo representado pela anaconda. Tanto que, sem pressa, tomou uma folha de bananeira, sobre a qual preparou um dourado para assá-lo sobre a laje de pedra. Nesse momento, soou uma sirene. Caetano não se tocou tratar-se de aviso da casa de máquinas das comportas. As aberturas G e H liberariam água em poucos instantes. Os variados avisos da hidrelétrica no correr do rio alertavam que, tocada a sirene, deveriam deixar o leito do rio e suas margens imediatamente, sob pena de ver periclitarem suas vidas, diante do roldão d'água descendo leito abaixo. Assim foi. Distraído, Caetano só despertou quando o barulho intenso explodiu perto de seus ouvidos, já não dando tempo para nada, senão subir num ingazeiro antigo, agarrar-se em seus galhos e ali ficar, até cessasse o turbilhão assolador. As águas levaram a eito todos os seus pertences. Ficou apenas com a roupa do corpo. "Ah, daqui a pouco a água baixa e saio daqui!" - Pensou.<br />
O tempo escorreu, até que se passasse das dezoito horas. Entrava-se no crepúsculo. Passou-lhe a hipótese de escurecer e as águas não baixarem. Se lesse jornal, teria verificado que chovera muito em São Paulo, no Vale do Paraíba. Nesses casos, são frequentes as manobras na hidrelétrica, às vezes se demorando em reduzir o esgotamento do excesso d'água. Agarrara-se aos tenros galhos; estava nas grimpas àquela altura, totalmente indefeso em relação aos múltiplos perigos, dentre eles, as cobras venenosas que se envolviam na galhadura dos ingazeiros, arrastadas pelas águas das matas das margens. Foi então que sentiu sentiu uma picada na perna, picada ardida, penetrante, estranha. Pensou nas formigas. Qual nada! Fora picado por uma jararaca! Duas pequenas perfurações marcadas a sangue ficaram à vista de Caetano, ainda no lusco-fusco da passagem do dia para a noite. Mas essa agora! Preciso de socorro, senão morrerei envenenado! - Pensou. Gritava, ninguém ouvia. A corredeira ensurdecia.<br />
A noite, agora, era pleno breu. A perna inchou. Brotaram-lhe ínguas. A água mantinha o nível alto. Os braços doíam, pouco se firmando nos galhos balouçantes. Os efeitos do veneno devastavam-no. Caetano perdia a noção das horas. Uma lanterna percorria a margem esquerda. Gritou a todo fôlego, mas foi inútil. As águas revoltas ensurdeciam. Em diante, longe dali, luzinhas do povoado rebrilhavam. Encontrava-se distante da casa de máquinas, numa das curvas do rio. A madrugada ia alta. Apavorado, ele amarrara as pontas da camisa e "se abotoara" num galho grosso, aliviando os braços. "Quando meus filhos amadurecerem, continuarão acreditando na existência da anaconda?" - Imaginava, num misto de cansaço e delírio. Lembrou-se do trato que fizera com o vizinho, para dividir as despesas da cerca. Construiriam, também, um açude para engorda de peixes. Não era coisa difícil.<br />
Parecia que as águas batiam nas pedras e árvores com mais violência. A certa altura, Caetano levou a mão direita aos lábios; sentiu-os formigando. Tratava-se de entorpecimento fruto do veneno. A perna direita, era como se não a tivesse; a esquerda doía, dor aguda, como sendo arrancada do corpo. "O veneno da vadia provoca sensações surreais!" - Esbravejou.<br />
A calça apertava a perna, estrangulando-a. Era o inchaço. O antídoto estava próximo, no posto de saúde. "Se saio daqui, as águas levarão meu corpo para Campos, em direção ao Oceano Atlântico, onde desemboca o Paraíba."- Lucubrou tenso.<br />
De repente, um estrondo de águas rebuliçosas, árvores se partindo, barreiras se rompendo nas margens e pedras se batendo. O mundo vinha abaixo. Sequer deu tempo de gritar. Havia expectativa para tudo, menos para o ocorrido. Uma enorme pedra se desprendera e rolou em direção ao ingazeiro, projetando-se sobre o corpo de Caetano, juntando-o, como num sanduíche, ao tronco da árvore. Não sobrou osso inteiro, alguns espetando a própria árvore.<br />
Ao amanhecer, ao acharem o corpo, depararam-se com os ossos moídos e a carne escurecida, efeito do veneno. A inchação deformara-o completamente. <br />
Um antigo morador observou: " Eis o destino dos descrentes. A anaconda triturou-lhe os ossos, envenenou o corpo. Chegará o dia em que todos obedecerão à serpente guardiã."<br />
<br />
</em></strong></span></div>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-28304695874231018982009-09-08T00:47:00.001-03:002009-09-08T00:49:55.142-03:00EQUÍVOCO<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Danilo era comedido na prosa. Confortava-se com o pouco e verdadeiro. Mentira não era com ele; não sabia mentir. Não se sentia bem com balaqueação. Conhecido pelos dotes morais, recebiam-no nas rodas de conversa sem reservas.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Rompido o noivado, Danilo entregou-se ao amargo da melancolia. Falava pouco, restringindo-se a respostas curtas às eventuais indagações. O motivo da tristeza era conhecido.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Numa das poucas saídas noturnas, decidiu tomar uns tragos num bar com música ao vivo, onde encontraria amigos e belas garotas. Sentou-se a um canto e logo se viu numa troca de olhares com bela moça, sentada ao lado de sua mesa. Há muito não sentia tal emoção. </em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Danilo renovava-se a cada instante, desde logo se imaginando ao lado da novel conquista. Ela, acompanhada de duas outras amigas, resplandecia. Não é difícil saber-se quando uma mulher se disponibiliza a um desconhecido, de pronto, ao tipo do amor à primeira vista.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Mulher bonita, rosto iluminado, seu sorriso mostrava um cordão de pérolas, dentes saudáveis e belos. A cor indefinida dos olhos, entre o verde musgo e o mar proceloso, encantavam-no.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Danilo convidou-a para dançar. Ela aceitou. Após as apresentações de estilo, puseram-se a divagações em torno da noite e do encontro, bem como casualidades comuns naquele tipo de lugar. Algumas esperanças movimentaram-se na alma de Danilo. A bem dizer, havia dois universos de emoções maduras, almas entrelaçadas de mistérios.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Naquela madrugada fugaz, a conversa protraiu-se ao rigor da satisfação recíproca. O encanto cresceu, ao brotarem lembranças de uma terra que lhes era comum, no Alto Uruguai. Agora, olhos nos olhos, assumiam retratos convergentes, sentenciavam princípios e acordavam sobre homens comuns e suas obras.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>De forma direta, Danilo mostrava seus sonhos e anseios, traçando as frustrações que o angustiavam, perguntando sobre os rumos do amanhã.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Eram dois mundos inteirados da realidade nua dos sentidos, enquanto a madrugada efêmera corria pelos caminhos dos milênios eternais: inexoravelmente, sem dar chances ao colóquio desejado para a resolução das aflições; a amplidão temporal era só aparência. Se o tempo fosse o pai das soluções, muito se teria resolvido no seio da humanidade, indagava-se Danilo, enquanto os segundos atropelavam os ponteiros do relógio.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Houve, é claro, o tremor da sensação sob a imaginação dos corpos nus, submetidos ao êxtase. </em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>A ambos era comum o sonho de retornar aos trigais, paragens resolutas dos campônios sensíveis. Danilo imaginava-se entregue aos ventos, vivendo as ondas largas dos verdores sob a natureza bonançosa de Campo Novo, Braga, Redentora, Tenente Portela, Humaitá, Coronel Bicaco, São Martinho, Chiapeta, Santo Augusto, Três Passos. Nesse trajetar cheio de esperanças, as mãos nas mãos projetavam desejos incontidos. O coração de Danilo fizera-se salão de festa, indiferente às dores, amarguras e angústias.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Ah, imaginava ele, nada melhor do que a transparência da palavra e da alma! Ia assim nesse enlevo, enquanto os raios da manhã despontavam nas imensidões dos pampas.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>No jogo de palavras inteiriças, Danilo tomava-se de enleio sem limites. Tratava-se de bela mulher, egressa de sua cidade natal para ganhar a vida em trabalho honesto na capital. Encontrava-se na cidade de Bagé, chefiando equipe de empresa telefônica, em serviço de captação de usuários e outras atividades.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>A claridade do dia encontrou-os no automóvel de Danilo. Já distinguiam a naturalidade que se fazia comum no processo de conquista e encantamento.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Hora de despedida. Construíra-se intimismo irresistível, amor mesclado a sentido de partida, pois a mulher viajaria para Porto Alegre naquele dia. Mas, justo na hora do adeus, Danilo sucumbiu, ao despojar sua alma preocupada diante das incertezas sopesadas pela jovem. Ofereceu-lhe dinheiro! Colocou-se ao dispor do amor nascente, caso dificuldades a afligissem! Foi aí que, resoluta, a jovem se sentiu em posição equivocada, confundida com as mulheres fáceis das noites da Capital. Fora como se Danilo jogasse um balde de água fria sobre os sentimentos nascidos daquele encontro. Um rompimento abateu-se sobre ambos, após explosão irresignada da mulher, que não aceitou as justificativas de Danilo.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Ela se foi. Ele ficou durante bom tempo dentro do carro, em lamentações. Pagava sobre o que jamais pensara; mas sofria pelo que dissera, no mais profundo engano das horas. </em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Sobre o que ele queria, ah, guardou para sempre em seu coração!</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Danilo nunca mais se enamorou de outra mulher.</em></strong></span>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-87082349053048176302009-09-05T00:27:00.001-03:002009-09-05T00:31:20.515-03:00ASAS DA ILUSÃO<div style="text-align: justify;"><span style="color: blue;">Havia muito de alucinação no que Altino falava sobre Maria da Penha, a mulher de seus sonhos. Seu corpo fora moldado com extrema perfeição; isso o afligia dia e noite. Corpo de carne e osso que nada devia às musas dos poetas consagrados, às artistas em geral e às lindas sirigaitas das capas das revistas masculinas. Era sangue verdadeiro nas veias da mulher-encanto.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue;">Porém Maria da Penha transformara-se num espectro na vida de Altino. Depois de vários anos, ei-la emergindo dos fundões de sua memória, revigorando o sentido da paixão, como se nunca tivesse desaparecido de seus sentidos, mas apenas dado um descanso à alma.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue;">Maria da Penha, Penha, Peninha, Meu Anjo, Pepê, Pê, sei lá quantos nomes mais enumeraria, tanto o amor e o poder criativo de Altino no tratamento carinhoso à bela mulher.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue;">Durante meses, Maria morou em sua companhia numa casa à beira-mar. Amor mágico, regado a vinho e passeios. Digam o sol e a lua sobre os dois nas areias beges da extensa praia. De súbito, foi-se e não mais voltou. É verdade, nunca mais!</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue;">Altino escrevia em prosa e verso sobre a beleza da amante. Suplicava seu retorno. </span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue;">Seu corpo era mistério escondido num tempo, que ao tempo se lançava entre ânsias de amor. Era a emoção atirada na areia, sereia de encantos morando no mar! </span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue;">Altino anunciava que o corpo de Maria da Penha era um brinquedo aos seus olhos de sonhos, sonhos paridos da fonte dos êxtases puros. Ele a sentia em desejos ardentes, com os dentes trincados no instante da espera, porque o corpo de Maria da Penha era a floresta, o deserto, o oceano, a festa de luzes ofuscando sua alma.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue;">- Vem, Maria da Penha, junta teu corpo ao meu. Dá vazão à minha libido. Desarrumemos o lençol de areia, enquanto a noite prateada e mágica se faça residência à nossa luxúria!</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue;">A trama envolve Altino, leva-o ao fundo do poço, morada dos desencantos. Vivia ao lado de Maria da Penha momentos de engano, olhos cerrados aos duros instantes de ausência.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue;">Altino, por que se submeter a tanto sofrimento?</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue;">Era um poeta. Conhecia a composição dos sonhos, sua textura de algodão. Ao baixar a cerração, a realidade desnudava-se inflexível. Era quando Altino indagava sobre onde andaria Maria da Penha, instantes de emoção singela, poemas aos borbotões, razão de viver aflorada, libido em alerta, enquanto jurava ânsias ciganas de ter os caminhos aos pés de seus passos, para procurá-la em todos os lugares do mundo! </span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue;">Ah, isso faz anos! Ela se foi para sempre, de repente. Aquelas coisas acontecendo no coração da mulher, sem que se explique como ou por quê. Outro amor? Cansaço? Rotina? Desejo de aventura? Sua partida resultou em perplexidade. Havia casos complexos, mas fáceis de esclarecer. Mas para o caso de Altino não havia justificativa. Ela se foi, simplesmente se foi, deixando-o aturdido. Não se curou, porque o vírus manteve-se hibernado durante vários anos. Agora, lamenta todas as ausências, em versos de todos os sentidos. Que coisa sem jeito!</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue;">Maria da Penha, esse império de cultura e de beleza, corpo misterioso, construía os poemas sofridos do poeta.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue;">As ondas milenares repetiam seu canto. Altino misturava poções, fazia preces e esperava atendimento às súplicas. Mas, oh!, iludido Altino, há quanto tempo Maria da Penha se foi!</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue;">Ao homem não importava a recomendação banal. Sua alma queimava sobre chamas teimosas de amor. Viveria feliz longe das asas da ilusão. A realidade sempre foi muito má para os poetas. Seu universo interior, a imaginação sem limites, oh, ele termina afundando nas trilhas de fuga!</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue;">Vamos em frente, Altino! A ti interessa que Maria da Penha ainda exista? Duvido. Fala a verdade! </span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue;">Ah, esses poemas que se multiplicam na alma dos sonhadores! Como são dolorosos!</span></div><div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;"></div>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-84388403286377041782009-09-04T14:42:00.001-03:002009-09-04T14:46:21.363-03:00DECISÃO<div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Estava difícil. O Homem bebia todas as noites e gritava com a mulher e os filhos. Enquanto o vômito voava dentro do banheiro, excomungavam-no. Era fedentina dos diabos, mistura de torresmo com amendoim, salsichão com salada russa, tudo regado a vinho batizado pelo dono do bar, falsificação sem freios e arreios que, por tostões, viabilizava, além de um baita porre, muitas outras desgraças.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Rosa, filha mais velha, era linda e cobiçada. Os irmãos sofriam com o bate-boca do casal, até que a manhã despontasse. O pai tomava café e rumava para o porto. As crianças, para o colégio. Rosa frequentou escola até os doze anos; para além, faltou-lhe uniforme e material escolar. À decisão de abandonar a escola, não houve resistência, pois ajudava a mãe em casa, que gostava da companhia da filha. Ao seu lado, esquecia os problemas criados pelo marido.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Um dia, o velho sentiu dores no fígado. O médico diagnosticou cirrose hepática! Seu estado levou-o à aposentadoria. Recebia proventos miseráveis; pouco atendiam à subsistência das sete bocas. De tudo por tudo, dependiam daqueles parcos recursos. Rosa resolveu trabalhar. Empregou-se no bazar de um árabe viúvo, residente nos fundos do comércio. </em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>O tempo levou Rosa a se inteirar das condições de vida do patrão. Sozinho, ele preparava suas refeições. Penalizada, Rosa colocou-se ao seu dispor para fazer o almoço. Ele exultou. Não cansava de elogiar a comida. Até engordou! Um dia, sem arreganhos, perguntou a Rosa se queria viver com ele. Ela se espantou. Virou a costa e foi para o balcão. À noite, ao deitar-se, pensou na proposta do homem solito e de razoável condição econômica. Dia seguinte, ele pediu desculpas a Rosa. Reconheceu a ousadia junto a quem tanto o ajudava.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>As coisas pioravam na casa de Rosa. A irmã mais nova menstruara. Sequer havia papel higiênico. Usavam lencinhos de roupas velhas. Três moças, eram varais e varais secando dezenas de pecinhas íntimas. A vizinhança olhava com pena. O pai, na bebida, apressava a morte.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Numa segunda-feira, Rosa foi trabalhar com um vestido sensual. Fingindo não ver o árabe, acertava o sutiã com um dos seios à mostra. De repente, sentiu-o às costas, ofegante.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Perdoa-me, Rosa, mas não resisti! É lindo!</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Oh, que imprudência! Por que não fui ao banheiro? – Disse a jovem comerciária.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Desculpa! Eu é que não podia estar aqui! Mas gosto muito de você!</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Lágrimas nos olhos, manifestando pundonor evidentemente dissimulado para aquele momento, levantou a cabeça devagar e perguntou ao constrangido patrão: </em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Verdade?</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Sim. Você tem algum compromisso amoroso?</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Não tenho. Compromisso de pobre é lutar pela sobrevivência.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Posso lhe dar o que quiser, sabe disso.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Minha idade... Tenho dezessete anos. Sou menor e virgem.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- O que tem isso? O amor não escolhe idade.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Ele precisava de alguém. Rosa sabia disso. Em diante, muita coisa mudou na vida do solitário comerciante. Passou a andar bem vestido, cabelo aprumado, barba feita. Acontece que a diferença de idade era de quarenta anos!</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Havia choro. Rosa ansiava melhor destino para seu corpo, um jovem esposo. Mas esperar essa realidade seria jogo arriscado. As emoções transluziam tristezas e mágoas. Sob sua ótica, homens e mulheres eram sombras e sonhos perdidos; transes, revoltas e vazios.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Pelas ruas, sentia o triste silêncio dos seres e das coisas; porém, não receava diante dos escuros. Leve sensação tomava-a de vez em quando, diante dos gritos interiores, indicando presságios. Rosa conhecia a gente sofrida, não curada; no entanto, não se entregava. Eram pessoas peregrinando ao longo das estradas, rumo às emboscadas da vida. Nas calçadas, sobravam lamúrias, notícias de agruras, amarguras inominadas, vontades sobre mortalhas, caminhos sem volta, gargantas sem voz. Mãos estendidas traziam </em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>remédios tardios; a reza já não curava pecados; a voz da promessa era cantiga nojenta; o gosto de sangue explodia nas bocas: era a dura sentença dos corpos marcados. Navalhas afundavam na carne trêmula, decreto fatal carcomendo esperanças, fabricando manchetes para o dia seguinte, constituindo-se no rubro limite entre a dor e a tragédia. Os golpes desferidos pelo tempo curvavam idades sem volta, forjando disfarces no espírito-pranto, à luz dos sorrisos e gestos engodatórios. </em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Rosa se envolvera em brumas. Fazia-se necessária uma decisão. Não ficaria inerme. Tomaria um norte, fatal ou aberto ao amor e à vida. Qual fosse o caminho, porém, todos a levariam a algum tipo de morte. Mas não importava, diante do que via ao chegar em casa. A mãe em desespero; o pai agarrado à aguardente; os irmãos ao deus-dará.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Não demorou, Rosa tomou a frente das decisões: </em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Creusa e Cremilda estão empregadas. Mamãe, em uma semana mudaremos desta casa. Pedro e Nataliel estudarão e trabalharão. Zezinho ajudará na casa, até se ajeitar. Eu e o patrão casaremos.</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>O pai, ouvidas as ordens da filha, gritou do corredor:</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Quem manda aqui sou eu! Ninguém vai a lugar nenhum! Você não casará com aquele turco de merda, velho nojento! Quero mais para minha filha!</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Rosa virou-se para o pai e disse:</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Esquecia, papai. O senhor será internado no Hospital de Caridade. Curaremos a bebedeira e a cirrose hepática. O resto que se falar dentro desta casa é baboseira! Já sofri as mazelas possíveis! Agora é viver! Preparar o futuro, o meu e o de vocês. Tenho dito!</em></strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Dali, foi para o quarto chorar.</em></strong></span></div>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-56665173371546329942009-09-04T11:26:00.000-03:002009-09-04T11:26:56.302-03:00SEM PEIAS<div style="text-align: justify;"><em><strong><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Zé Antônio biritava a noite inteira. Não resistia a uma porta de bar. Ao depois, perambulava madrugada a dentro, cantando velhas meretrizes e fantasmas. A barba por fazer dava-lhe ar misterioso, mas de gente relaxada, sem destino, sem família, ao modelo dos que andavam por andar, andarilhando sempre, mas sem tempo de chegar. Mantinha-se com amiudados recursos provindos da previdência estatal, que mal se arrastavam até o quinto dia do mês. </span></strong></em></div><div style="text-align: justify;"><em><strong><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Desprezava a idéia de aniquilar-se sob as regras que atavam os pés das pessoas às camas, para ensinar modos convenientes da civilização envernizada. Queria-se assim: birita, mulheres e noite, sem companheiro chato aporrinhando com histórias sem graça de culpas e pecados. Para esses, dava-se como tímido e saía fora.</span></strong></em></div><div style="text-align: justify;"><em><strong><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">No fundo, matava-se de risos ao seu jeito particular de observar as pessoas. Eram os rios caudalosos e subterrâneos dando forças à sua existência. A vida e seus penduricalhos representavam fonte inexaurível de humor e ironia. Doutra banda, o presente era seu porto real. O futuro não mexia com seus sentimentos. </span></strong></em></div><div style="text-align: justify;"><em><strong><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Quanto ao passado, dizia que as lembranças estabeleciam tentativas dolorosas de saudades. Zé Antônio ria dessas tramas enlaçadoras de gente como ele, geradoras de tristeza nas esquinas de cães, vagabundos e sonhos.</span></strong></em></div><div style="text-align: justify;"><em><strong><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Ele não ligava para o fato de ter-se acostumado à lida dos fracassos, às vitórias efêmeras, aos tombos. Sabia que o homem nascera para esse circo, onde viveria junto às feras e na corda bamba. Entre ser canalha ou bom moço, preferia o colarinho largo dos picadeiros. </span></strong></em></div><div style="text-align: justify;"><em><strong><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Camisas e calças de brim; olhos de ferro; o coração, uma coisa qualquer que não se abatia nunca. Ao enfrentar as sucessivas fronteiras de barro cru, pressentia o esvaecimento das conquistas. Assim, tocar para a frente os passos, sem esperar algo especial, tampouco o abismo. Era sua sina ser assim.</span></strong></em></div><div style="text-align: justify;"><em><strong><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Não frutificavam desejos impossíveis; exilara as utopias. Destas, ele conhecia as manhas. Despistava a memória, para não recordar prazeres realizados. Detestava sustos de reencontros. Cabelos brancos e rugas faziam parte do processo. E pronto!</span></strong></em></div><div style="text-align: justify;"><em><strong><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">O que valia para Zé Antônio era o agora sem peias ou mistérios, fosse no bar dos flagelos, ou no das imaginações, ou sobre a meretriz sem identidade garantindo-lhe êxtase e esquecimento para instante seguinte.</span></strong></em></div><div style="text-align: justify;"><em><strong><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Pensar no amanhã ou no ontem era-lhe avesso, como o era registrar o apito do guarda, o latidos da cadela no cio, o choro da mulher estranha que lhe relaxara as tensões.</span></strong></em></div><div style="text-align: justify;"><em><strong><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Indiferente aos martírios, imaginava a vida uma longa estrada - que por alguma circunstância poderia ser encurtada -, onde fatos e acontecimentos brotavam inexoravelmente às margens, materializando-se à passagem do indivíduo. Situações boas ou ruins, elas aconteciam durante a jornada, independentemente de qualquer protesto ou desejo. Nesse trânsito estranho, o engarrafamento era fato comum, endoidecendo os açodados.</span></strong></em></div><div style="text-align: justify;"><em><strong><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Não era um trouxa. Sabia despistar sofrimentos. Pouco se enrodilhava nas rmadilhas. O amor, por exemplo, jamais fora proposta de vida ou morte.</span></strong></em></div><div style="text-align: justify;"><em><strong><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Zé Antonio despediu-se da existência, quando sua própria natureza decretou-lhe inteira consciência das coisas.</span></strong></em></div>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-22475184931559231362009-09-02T17:25:00.001-03:002009-09-28T12:17:27.720-03:00O DESEMPREGADO<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Não trabalhava fazia dois meses. Recessão pesada, havia poucos empregos no mercado. Corria os classificados do jornal todos os dias. Tânia, equivocada, taxara-me de pós-graduado em ociosidade. Era certa uma coisa: eu não me cagaria de graxa por nada nesse mundo! Merecia coisa melhor, como um escritório. Pensei em montar negócio próprio, mas não tinha dinheiro nem pro cigarro. </span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Atendendo a anúncio, compareci ao departamento de pessoal de um indústria moveleira. Exigiam do interessado letra boa, segundo grau e boa aparência. Trabalharia no setor de expedição. Quando criança, vovó me castigava sobre cadernos de caligrafia. Um passo à frente, imaginei. Na verdade, minha letra era invejável, tipo letra de professora primária!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Atendeu-me uma senhora muito séria, de óculos. Mandou-me aguardar na saleta ao lado, onde já havia cerca de dez pessoas. Perguntei a um rapaz se atendera ao mesmo anúncio. Confirmou. Entre os candidatos, havia três mulheres. Pretenderiam a mesma vaga? O anúncio falava em “chefe de expedição”. Indaguei-me sobre a expressão. Tinha um sentido forte, parecia cargo destinado a macho. Sim, “chefe de expedição” era coisa para homem! Curioso, perguntei às moças se buscavam a vaga, porque, após a minha chegada, duas outras entraram na saleta, àquela altura entupida. A resposta foi positiva: disputavam a vaga de “chefe de expedição”. Então, me toquei. Nunca ouvira mulher sendo chamada de chefa, o que, com licença do vernáculo, seria um termo para lá de sacal. Lembrei-me do substantivo comum de dois gêneros: o chefe, a chefe. Pensei: trumbique-se o pavio, a bomba explodirá mesmo! E esperei o chamado. </span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Olhava para a cara das pessoas; todas precisavam do emprego. Um esfregava as mãos sem parar. Vez que outra, passava o lenço no pescoço. Tirou o maço de cigarros do bolso várias vezes. Se fumasse ali, apanharia. A saleta estava abafadíssima. Uma loira gostosona lia sem parar um livro de bolso, dobrando as páginas como se lesse uma revista. Era desses livrinhos populares, descartáveis, onde os amantes brigam durante cento e noventa e nove páginas, dão tiros um no outro, corneiam-se a valer, para, depois de tudo, reconciliarem-se na penúltima página, testando a capacidade de condescender do leitor. Ao chegar à metade, o tal livreco se quebra; lido, vai ao lixo. </span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Um cara sentado na cadeira do canto não desviava o olhar da parede. Parecia hipnotizado. Usava aliança de noivo. Parecia decorar um texto. Coisa de louco. Ali, cada qual merecia um manicômio diferente. Somando todos aqueles desejos, levantaríamos edifícios de fumaça. Ou explodiríamos sob miríades de esperaças. </span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Uma vaga e um exército rezando. Nessa hora, a oração é geral. Deus pra lá, Deus pra cá, com quem ele está? Um rápido bate-boca entre dois mijões deixou-me pateta: um sustentava que era rezar; o outro, orar. Reza-se o que já está escrito, sacramentado; orar é improvisar o conteúdo da súplica ou algo parecido. Liguei-me por alto na filosofia do embate. Estava atento à tensão formada por causa da discussão. O cacete não comeu, porque um sujeito nervosão pediu um ponto final na encrenca, senão ele ia se meter a jeito! Rezando ou orando, ao chegar a frustração manda-se tudo às favas. O homem é assim. Medroso, perde a vergonha vez que outra. Eu não rezei. Deus não escolheria todos, embora todos rezassem. Isso passava na minha cabeça, no momento em que apareceu um rapaz na porta, calça azul marinho, camisa branca de mangas compridas, gravata preta, sapatos engraxados.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- O primeiro.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Entreolhamo-nos. Quem era o primeiro?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Eu... Fui a primeira a chegar. - Disse uma senhora, uns quarenta e cinco anos.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Sim. O primeiro é... tá aqui, dona Edeltrudes Ananias Rizoletta Oliveira Alves e Silva.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Pô, pensei, nome de aristocrata, sobrenome de presidente da república, atrás de um empreguinho mixuruca daqueles!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Sou eu mesma. Cheguei primeiro e não abro mão.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Então, entre.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Ao se apresentar, o candidato deixava o nome com a tal dona de óculos. Bastava o rapazinho chamar pelo nome, na ordem de chegada. Mas... começa aí a minha aporrinhação. Quando ironizo certas coisas, ou banco o cínico, não me entendem. Estão vendo o exemplo? Aliás, com aquele nome compridão, por que acrescentar "...e não abro mão?" Coisa de gentinha.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Dona Edeltrudes não demorou três minutos. Chorava como carpideira bem recompensada. Nessas horas, pensamos bobagens. Pior se saísse peidando ou reclamando de cantada mal dada. Quanta besteira! Mas era sinal da minha tranquilidade, naquele brete de gente nervosa.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Isso é discriminação. Registrarei queixa no Escritório de Defesa dos Direitos Humanos, em Brasília e na ONU! - Vociferava a candidata recém entrevistada.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">A idéia de todos era de que passaram a mão em suas coxas. Mas olhei a figura e descartei a hipótese. Ela cruzava, quando um candidato perguntou o ocorrido. Respondeu:</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- A idade! Essa maldita idade! O vagabundo quer guriazinha nova! Perdi a manhã inteira, para ouvir que minha idade poderia atrapalhar. Se eu fosse um mulherão, peitinho duro e cintura fina, esqueceria da idade! Mas, depois de cinco filhos, tudo cai! Esse babaca é um pedófilo graduado! </span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Emílio... Emílio Santelmo.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Eu!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Entra.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">E o Emílio? O que seria dele? O entrevistador perguntaria: Nome completo. Lugar e data de nascimento. Ele responderia: Pindamonhangaba, São Paulo. Não sei por que pensei nisso. Num buraco daqueles, mil bobagens afloram. Ainda bem que fica tudo guardado com a gente, exceto quando a curiosidade cutuca forte. Emílio saiu. Como chamavam pela ordem de chegada, eu não seria o próximo. Segui Emílio.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Emílio!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Oi! Você me conhece?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Não. Também sou candidato. Ouvi seu nome. Só por curiosidade: Você nasceu onde?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Por que quer saber?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Curiosidade, só.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Nasci em Formiga, Minas Gerais.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Pô, cara, legal! Me desculpe. Tinha quase certeza de que você nascera em Pindamonhangaba. Me desculpe. Gostou da entrevista?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Acho que me dei mal. O entrevistador é um babaca engravatado, assessorado por uma morena gostosa. Quer saber o calibre das perguntas?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Sim.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Se eu já tive gonorréia! Pô, cara, isso é pergunta que se faça?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- O que tem a ver chefe de expedição com gonorréia?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- É o que quero saber. Acho que na cabeça daquele medíocre haja alguma relação de causa e efeito, entre o cargo e a gonorréia. Talvez trauma de infância, coisa de mãe tomada de males, zona do meretrício, sei lá!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Me desculpe ter parado você. Eu vou pra lá, senão me chamam e..</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Passe bem. Boa sorte!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Voltei para meu lugar. Parecia um hospício. Eu já não queria nem boa nem má sorte. Desejava ir para casa. </span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Jerônimo.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Lembrei de Jerônimo, o herói do sertão. Minha mãe passava roupa, eu me apoltronava para ouvir as aventuras da radionovela. Era empolgante. Criança se emociona à-toa. Adulto, só quando o emprego tá ameaçado. Mas eu tava cagando e andando. Até me divertia! Corria-me a sensação de que perdia tempo. Era a única coisa terrível que sentia. Perder tempo!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Jerônimo saiu com cara de esperançado. Chegou na saleta de volta, parou, suspendeu a calça, acertou a camisa, balançou o corpo e seguiu. Tinha cara de burocrata. Acho que gostaram dele, da sua elegância. Todos da empresa usavam uniforme. Na vida comum também deveria ser assim. Acabaria com a babaquice da discriminação por causa de roupa.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Marlene!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Marlene lembrava uma pá de coisas, de cantora de rádio a empregada doméstica, de médica a balconista. Mas resolvi lançar para escanteio aquele jogo. Cansara-me de analisar as pessoas, imaginando besteiras. Todos se esperançavam com miséria. O salário não passava de meia-dúzia de cascalhos, merrecas insuficientes para atravessar os primeiros dias do mês. Pior que eu estava sem dinheiro até para o cigarro, pedindo algum emprestado a mamãe todos os dias, feito pinto novo com frio.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Astrogildo!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Chegara minha vez, finalmente! Levantei-me e atravessei várias salinhas. Lembravam-me as pocilgas de uma fazenda que visitara. Em cada uma, dois a três empregados de calça azul marinho, camisa branca e gravata. Passei por uma garota compenetrada, conferindo notas. Imaginei-a na cama, depois de três uísques. O homem é assim: trás uma cara para sustentar as aparências, uma para enfrentar as paredes e outra para encarar as circunstâncias. Prefiro a última, onde até senadores da república engatinham.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Surpreendi-me com a ausência da secretária. Ia perguntar o porquê, mas... </span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Boa tarde, senhor!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Olá! Sente-se. O senhor é gaúcho?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Não. Mas morei treze anos no Rio Grande do Sul. Só na cidade de Santa Vitória do Palmar, fronteira com o Uruguai, terra mui buena, foram seis anos. Representante de laboratório. Vendia xarope à base de mel e ervas.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- E daí? - Perguntou o poderoso chefão.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- O quê? O xarope?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Não. O emprego.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Gaúcho não é de tomar xarope. Quando a coisa enfeia, ele vira uma cachaça azulada do 5º distrito de Canguçu. Depois, lasca uma colherada de mel campeiro lá do Alegrete, com umas ervas estranhas. É receita que cura a gripe mais resistente! Havia mês que a comissão não comprava um cachorro-quente. Pedi as contas, pois não aceitaram meu pedido para trocar de região. Desejava Duque de Caxias, no Estado do Rio, onde o tal xarope faria bastante sucesso.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Você vendeu xarope durante treze anos?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Não. Em diante, vendi desde planos de aposentadoria de uma instituição de Santa Maria, parece-me que negócio de instituição militar. Quase me enrolei, pois o tal plano levou a breca. Também me meti com um tal de "Bolon de la Suerte", que se dizia garantido pelo Governo Uruguaio, com sorteio semanal pela televisão. Tudo mentira! Tratava-se de modelada picaretagem, sabe? Ao tipo de certas garantias dadas pelo governo brasileiro e depois, ó! Só que eu acreditava que a coisa era séria e me dava mal. A única atividade positiva foi a de vendedor de pêssego, morango e maçã numa banca do mercado municipal de Pelotas. O resto só me trouxe problemas. Quer saber a verdade? Pedi dinheiro emprestado para minha viagem de volta. Foram anos jogados no lixo, sentindo cheiro de churrasco e lambendo os beiços. Dei muito de frente com piratas! </span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- É. O senhor traz leve sotaque.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Mas foram treze anos! Nasci em Santa Maria Madalena.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Mas veja! Terra da dona Dercy Gonçalves!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Sim. O senhor a conhece?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Quem? A dona Dercy ou Santa Maria Madalena?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Os dois.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Nenhum dos dois. A dona Dercy, só na televisão. Saí de Madalena bem novinho.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Ela é boa artista, não acha?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Tem lá seu valor, pois vive sendo homenageada, fazendo anúncio na TV e xingando todo mundo nos programas dominicais. </span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Fiquei na minha. Falar mais o que de Dercy Gonçalves? Uma humorista reconhecida. Ao demais, não entendi aquela de chamá-la de “dona”. Vai ser respeitoso assim nos quintos do inferno!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- O senhor sabia que nossa empresa tem uma tradição de mais de cinquenta anos?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Pois não.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- E que nosso lema é "Honestidade e Trabalho"?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Pois não.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- E que aqui todos vestem a camiseta?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Pois não.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Qual a sua idade?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Faço quarenta daqui a um mês.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Quarenta? Desempregado?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Como lhe contei. Ao chegar do Sul, empreguei-me numa fábrica de cera. Só que pegou fogo. Deixou todo mundo na mão. Foram três anos jogados fora. Depois, entrei noutra empresa.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Esta outra tocava o quê?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Transporte. Eu trabalhava no escritório. Certo dia, apareceram policiais e oficiais de justiça. Prenderam o gerente, lacraram os arquivos e o cofre. Mandaram os empregados aguardar em casa. Até minha indenização foi pro buraco. A empresa não depositava fundo de garantia. Tudo errado. Trabalhavam com mercadorias roubadas de caminhoneiros.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- O senhor ficou com um pé na frente e outro atrás?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Exato. Felizmente, solteiro.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- É contra o casamento?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Não. Mas hoje tá difícil casar. Já pensou se eu fosse casado? Estaria... ralado.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Quase falei um palavrão. Seria minha desgraça. Ele se parecia com um papa-missas, tipo irmão mariano.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- O senhor é simpático. Tem conta em banco?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Não. Não tenho dinheiro, não tenho conta.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Cartão de crédito?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Não.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Poupança?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Não.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- O senhor não tem nada?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Coragem e disposição. Garanto-lhe que me saio bem como chefe de expedição. Diga-me uma coisa: qual é o salário?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- O senhor se preocupa com o emprego ou com o salário?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Confesso-lhe que me preocupo com os dois.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Gostei da sinceridade. Passaram bons candidatos por aqui, mas nenhum se encorajou de falar em salário.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">O dia que estourasse uma revolução, pensei com meus botões, aquele velho safado seria o primeiro a se esconder debaixo do penico.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Colocarei duas cruzes ao lado do seu nome. Tem enorme significado na seleção. No setor de recrutamento, você não imagina o simbolismo dessas duas cruzes colocadas aqui. Eu sou diretor da empresa, você sabe, não é? Mando e desmando nessa joça!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Muito obrigado. Como saberei do resultado?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Tem telefone?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Tenho, da minha tia. Todos os dias nos vemos.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Ótimo. Escreva na ficha, nessa linha em branco.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Escrevi o número e fui dispensado. Aguardasse pelo resultado uma semana.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Despedi-me. Quando saía, me chamou.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Mais um pouquinho. Tenho uma última pergunta. Já teve doença venérea?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Pensei um pouquinho e lasquei:</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Já. Gonorréia.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Curou?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Sim. Só que, depois, peguei um tal de cancro mole.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Cancro mole? </span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Exato. É uma doença venérea causada pelo estreptobacilo de Ducrey. Quase perdi o pênis, senhor. Mas me salvei e estou aqui, inteirinho da silva. Já perdi a conta de quantas dei, depois da cura. A libido ficou até mais apurada, por incrível!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Muita sorte sua! Já pensou perder o pênis?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Quer saber de uma coisa, senhor? Há milhares de homens no Brasil que vivem sem esse apêndice. Doença mal curada, câncer, por aí.E passam a não sentir falta dele. Mais alguma coisa, senhor diretor?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Não. Está dispensado.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Quando alcançava a porta de saída, o velho chamou para uma última pergunta.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Joga no bicho?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Que bicho?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Jogo-do-bicho.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Pensei rápido e disse que não, ao que o velho lascou:</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Pois então tente! O número do telefone de sua tia é muito bonito. Até lá!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Senti que o velho era um baita sacana, irônico para mais de metro. Gozava com a minha cara. Só podia. Mas eu não deixei por menos.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Retornando à saleta, observei as cadeiras tomadas. Era uma vaga para muitos candidatos. Cruzei por uma fêmea exuberante. Se fosse eu o responsável pela entrevista, tava resolvido. Sentaria ao meu lado todos os dias, no final do expediente. Tinha uma cara de quem gostava de bolinagem.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Quando atingi o térreo e coloquei o pé na rua, virei para mim mesmo e disse:</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Tu és um babaca!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Ao chegar em casa, Tânia estava uma fera.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Você se meteu aonde?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Atrás de um emprego, pô! Entrevistou-me o gerente de uma empresa. Um cocô empalhado. Dezenas de candidatos para uma vaga. Pensei não mais existisse lugar igual aquele. Todos vestindo calça azul, camisa branca e gravata. As mulheres uniformizadas, saia azul e blusa branca, com uma fitinha vermelha amarrada no pescoço. Pareciam colegiais. Ninguém calçava tênis. Era silêncio de cemitério. Concentração geral. Todos escreviam, conferiam notas e batiam carimbos. Nunca vi tanto carimbo! Era plac pra cá, era ploc pra lá, era pluc pracolá. Senti-me dentro do ninho da burocracia nacional. O entrevistador era um coroa, bigode fininho, cara larga; vestia um terno pesadão, gravata do início do século; dava ordens atrás de uma mesa que teria, no mínimo, cem anos. Eu queria ver aquele sujeito dentro de um quarto com uma mulher nua, do tipo capa de revista! Acho que ele me fez de bobo. Escuta bem, Tânia: ele me fez de bobo!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- É assim mesmo, Astrogildo. Essa gente precisa escolher bem seus empregados. Afinal de contas, quem te conhecia lá? Concorda? Você chega com esse jeitão de indiferença e termina se ralando! Aliás, quem está por baixo, precisando, sempre acha que é feito de bobo. </span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Se me conhecessem, tudo seria diferente. Vejo-me sentado e aquele cara chamando Dercy Gonçalves de “Dona Derci”. Olha, se eu tivesse tomado uma boa dose, mandaria ele se cagar. Fui educado. Aliás, tava difícil superar sua hipocrisia, seu deboche, sua ironia, seu cinismo. Ao me dar conta, estava lá fora, na calçada, com um tremendo peso na cabeça, como se tivesse levado um chifre. Arrependidão de não tê-lo mandado às favas!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Eles são assim mesmo.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Escute, Tânia. Aceitarei qualquer emprego, inclusive de vendedor de Carnê da Felicidade. O dinheiro da entrada é do vendedor e é pago na hora?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Ninguém tá mais nessa de comprar Jogo da Felicidade. Tá faltando dinheiro até pro pão! Essa gente anda numa merda que faz gosto. Rico não compra carnê, para depois trocar por panelas, frigideiras e copos superfaturados.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- É verdade. Só pobre se mete nessa. E pobre tá ralado. Mal consegue uma galinha no final da semana. Mas meu caso é trabalhar. Provarei isso. Desfolharei os classificados, enquanto meus dedos suportarem. </span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- E eu te sustentando!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Pô, você me ama ou engana?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Amar um cara igual a você cansa. Nunca me deu boa vida. Jamais me convidou para jantar fora. Sequer pagou um pastel com caldo de cana. Com você, é só na base do venha a nós!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Escuta uma coisa, Tânia, se eu tivesse seu corpo, estaria independente. Como é que você ganha dinheiro? Não é tirando dos otários? Você não faz força. Aliás, a força que faz é tirar a roupa e aguentar um vagabundo alguns minutos em cima de você. Traz para casa dinheiro limpinho, com imposto de renda descontado na fonte e tudo mais.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- O corpo é meu e eu sei como faço as coisas. Não há prazer nessas relações. Não o traio, você sabe. Trabalho por necessidade, minha e sua.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Só não tenha prazer com esses vagabundos! Se isso acontecer, quebro-lhe a cara!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Pare de ameaças e vá trabalhar. Com que moral você diz isso? Me dê um tapa que eu largo tudo. Aí, sim, você verá o que é bom!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Me desculpe. Ando nervoso. Tomemos uma cervejinha. Amanhã, enfrentarei um calhamaço de classificados.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Desisti de vender carnês, verdadeiros blocos de algodão doce para cima do pobrerio. Ele não cai mais na esparrela de acreditar em prêmios fabulosos, tipo casas, carros, passeios, terrenos, barras de ouro e dinheiro. Uma senhora idosa disse-me que não era à-toa que o troço tinha o nome de Jogo da Felicidade. Era verdade. O Brasil estava atolado de arapucas, do Oiapoque ao Chuí.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Naquele morrer de tarde, depois de rodar mais que pião em mão de moleque arteiro, cheguei em casa morto de cansado, mas feliz por uma coisa: jogara toda a papelada do Jogo da Felicidade dentro de um valão. Não passaria incautos para trás. </span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Tânia saíra para o trabalho. Trabalho, nada! Fornicar, divertir-se e ganhar dinheiro! Sentei na varanda e tomei todas que pude. Depois, comi um angu frio com ovos e feijão e dormi. A manhã seguinte esperava-me com uma porrada de ofertas de emprego. Eu tinha que agir, senão a Tânia me mandaria para a casa da mamãe, como fizera da outra vez. Ela não acreditava no meu empenho para arrumar emprego decente.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Por volta das nove, chegou um moleque correndo e gritando meu nome.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Seu Astrogildo! Seu Astrogildo!</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Que merda. Eu estava no melhor do sono, as pernas enroscadas nas pernas de Tânia, que chegara quase de manhã da boate. Não houve jeito. Parecia que o mundo acabaria. Levantei e o atendi.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- O que é, moleque?</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">- Venho a pedido de sua tia. Toma o bilhete.</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Agradeci. Abri o papel de embrulhar pão e li o bilhete:</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">"Caro sobrinho, há pouco recebi um telefonema da Empresa Mundial de Exportação e Importação. Falava o Diretor, um tal de dr. Durval, dizendo que você foi classificou em primeiro lugar para a vaga de Chefe de Expedição. Fiquei tão feliz, meu querido sobrinho, que quase tive um troço. Sempre acreditei em você. Boa sorte. Mostre para essa gente que você é da família dos Talarico Bravo da Silva! Um beijo, da sua querida tia."</span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Que porcaria. Acabou a sopa! Já não sei como agir para me afastar desses compromissos desagradáveis! Tânia se esbaldará com a notícia! </span>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-30211365233736262952009-09-02T16:16:00.001-03:002009-09-02T16:17:35.081-03:00O CIUMENTO<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Zeca Barros roía-se de ciúmes. Mas suportava o tirão diante dos rabiscos de olhos atirados para cima de sua linda mulher. Disfarça daqui, disfarça dali, aparentava seriedade de zorrilho atolado. No verão, Dolores viajava para o Balneário do Rio Camaquã, onde inaugurava biquínis sumaríssimos. Aí, a coisa enfeiava!</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Quando o uso de calça comprida para mulheres se tornou comum, ele quase morreu. Como pedir-lhe para não usá-la? Mortificava-o vê-la desfilando com a roupa grudada ao corpo, exibindo as formas tintim por tintim, despertando a imaginação luxurienta dos homens e, quiçá, de alguma duvidosa. </em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Ele sabia que ciumeiras abalavam o casal. "Sei que ciúme além da conta faz as mulheres enjoar dos homens" - pensava. Essa a razão de aguentar o tranco, triste que nem carneiro abichado na guampa.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Na época da anágua, piscava para Dolores, indicando-lhe a ponta da veste interna ressumbrando fora do vestido. Nunca se sofreu tanto, por causa do desgraciado sentimento! Sua alma era um caldeirão de amargores. Avolumava-se a cada decisão de não demonstrar ciúme.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>A coisa era tão forte, que até de febre de origem desconhecida ele padecia. Professores secundários, ambos recebiam muitos amigos em casa. Era raro não aparecer visitas nos fins de semana. Zeca desconfiava até da sombra. Ficava zureta com Dolores, quando lhe aplicavam beijos de cumprimento. Reclamar, como? Cairia no ridículo, caso se irresihnasse diantes de tais manifestações de carinho. Já ele não cumprimentava as amigas com beijinhos. Fazia-o de propósito. Era uma forma de mostrar seu contragosto às intimidades com sua mulher. Não adiantava. Tanto foi que, como a calça comprida, passou a aceitar tais cumprimentos como normais. Ele mesmo passou a receber as colegas com um beijo na face. Nada de três beijinhos - para casar, como diziam. Nas reuniões sociais, não desgrudava da mulher. Ai se ela conversasse a um canto com alguém! Não dormiria à noite.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Dolores conhecia o marido que tinha, mas não imaginava a intensidade do ciúme. Bonita, professora de história requisitada, excelente mãe, dona de casa e boa amante, Zeca não desgrudava.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Não bastassem os transtornos do cotidiano, Zeca desconfiava que a mulher mantinha relações íntimas pensando noutros homens. Essa idéia tornou-se fixação. </em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Como acontece, novela tem sempre um galã, o bonitão conquistador, ideal, forte, valente, protótipo do amante mais-que-perfeito, do marido que as sogras desejam para suas filhas. Como não dava aulas à noite, Dolores acompanhava a novela das oito com atenção. Como se diz, era fissurada por uma novela. Zeca não suportava. Certo sábado, após o noticiário, Zeca permaneceu defronte à televisão e acabou assistindo à novela. Pra quê?! O galã, jovem empresário e solteiro, relacionava-se com uma mulher casada. Zeca assistiu logo os capítulos mais quentes, quando o casal se apresentava em encontros ardentes, na cama de casal da infiel. A cara do ciumento esquentou; o coração descompassou; a cabeça era um redemoinho. Naquela noite, fingiu-se com dor de cabeça e não quis intimidades com Dolores. Só cara feia. "Certamente, ela pensa naquele cafajeste, enquanto o boboca aqui é corneado descaradamente. Comigo, não!" - Pensou ele, com a alma cheia de grilos. Aqueles pensamentos não ficaram por ali. Reforçaram-se no dia seguinte. Teve vontade de tirar uma peça da televisão, avariando-a, até terminasse a novela. Porém, pensou nas crianças, nos programas infantis e por aí afora. Ao demais, teria que levar a televisão para conserto e o dinheiro estava curto. Por outro lado, levantaria suspeitas, caso ele mesmo mesmo encontrasse o "defeito" algum tempo depois. Ainda por cima, Dolores sabia que Zeca não entendia nada de nada, quando se tratasse de aparelho elétrico ou eletrônico. Durante toda a semana, Zeca se furtou a qualquer contato mais aproximado com Dolores. Ora alegava cansaço, ora dor de cabeça, ora preocupação com as prestações da geladeira. </em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>No sábado seguinte, resolveu permanecer e assistir aos capítulos daquela noite. Lá estava o gostosão! De seu personagem, ninguém sabia a profissão, o que tocava, donde provinha a grana do feijão com arroz. Estava sempre atrás de uma enorme mesa, ao lado de belas secretárias. Era empresário, ninguém sabia de quê. Passava a novela inteira bolando um meio de fornicar com a amante casada. </em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Ela, a infiel, cheia de cinismos, servia o café da manhã ao marido, dava-lhe beijinhos quando este saía para o trabalho, enfim, uma grande mulher na idéia do guampudo. </em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Zeca imaginava Dolores dando-lhe beijinhos pela manhã, ao sair para dar aulas! Também aquela noite foi de solidão para Dolores. A cabeça de Zeca fervia. Nem se quisesse conseguiria algo na cama. Andava mais cego que gato embolsado. </em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Pela manhã, apanhou o jornal, sentou-se na varanda, acendeu um cigarro e percorreu o noticiário. Na capa, uma chamada interessou-lhe: "Marco Coralles e Suas Confissões Íntimas - Caderno da TV". Não perdeu tempo, buscando a notícia. De repente, suas feições transformaram-se. Encheu-se de estranha felicidade. Ali, Marcos Coralles, o machão da novela das oito, dizia-se homossexual, acrescentando que era muito feliz ao lado de seu homem, há mais de dez anos. Zeca levantou-se e saiu gritando pelo nome de Dolores.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Dolores! Dolores! Onde está você?</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Logo surgiu a mulher, tomada de espanto.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- O que houve, Zeca?</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Resfolegando, soltou a voz:</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Olhe aqui! Não disse que esse cara era bicha? Logo que o vi, senti que não gostava de mulher!</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- O que está dizendo? Nunca falou nada sobre isso.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Nunca? É... acho que só pensei! Tudo bem.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>- Ao demais, que Marcos Coralles seja boiola, já é coisa antiga. E quer saber, Zeca: sinto nojo desse cara!</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Dolores olhou para o marido se afastando com o caderno da TV apertado nas mãos, vibrando da mesma forma quando seu time faz um gol. Fazer o quê? Voltou para a cozinha para terminar o prato predileto de Zeca: bucho com batatas e agrião. Afinal, agradá-lo era preciso, pois fazia uma semana que estava a pão e água. Pela cara do Zeca, acreditou que o jejum terminaria naquela noite.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>E foi o que aconteceu. Pareciam em lua-de-mel.</em></strong></span><br />
<span style="font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><br />
<strong><em><span style="color: blue;"></span></em></strong></span>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-13110873832614010272009-09-02T15:56:00.000-03:002009-09-02T15:56:48.472-03:00O MORALISTA<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Alfredo recebera educação esmerada. Cumpria com seus deveres, respeitador, bom marido, enfim, um homem de bem. Mas o instinto trazia lá reminiscências do animal irracional, como ele mesmo dizia, montando violações clandestinas na área da libido. Por essas e outras, todas as vezes em que via Doralice, o coração disparava, o sangue ardia de sensualidade, os olhos faiscavam. </em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Era a mulher de seu amigo e vizinho, Ronaldo Diaz, um descendente de peruano alto, cabelos negros e bastos, inteligente e de bem com a vida. Visitavam-se com frequência. A atração de Alfredo por Doralice, porém, ia um pouco além do que se permitiria nas circunstâncias. E ele não se sentia bem com isso. Afinal, tratava-se de mulher fiel ao marido. Acima de tudo, pensava, o respeito ao lar, à mãe, ao vínculo matrimonial.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Depois de questionar bastante, incapacitado de amainar as vivas emoções, diminuiu as visitas à casa dos amigos. Ao ser visitado, tinha sempre uma desculpa na ponta da língua para sair. Não estragaria a antiga amizade, nem destruiria uma família. Sua mulher notara diferenças, tanto que lhe perguntou o que acontecia. Tranquilo, respondeu que não era nada. Apenas andava atarefado com os relatórios da empresa.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Em decorrência da situação criada pelos sentimentos luxuriosos, abriu mão de uma série de outras visitas, inclusive à sua mãe e irmãos.Quanto às desculpas para ausentar-se, quando Ronaldo e esposa chegavam, dizia à mulher ser pura coincidência. </em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Já não suportava tanto engodo! Tanto foi que, certo dia, </em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>anunciou que o transferiram para outra cidade. Não adiantaram os lamentos da mulher inconsolada. Em duas semanas, mudaram-se. Ela esbravejou, ameaçando com a separação. Mas partiram. Antes, contudo, não fugiu à festa de despedida em sua casa, onde reuniu vários casais com ele bem relacionados. Naquela noite, Alfredo testificou seu intenso desejo de possuir a mulher de Ronaldo. Somente não se lançou à empreitada de conquista, porque era sério, senhor de senso ético forte. </em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Respeitava as famílias; movia-o fé fervorosa. Era homem de ir à missa e comungar aos domingos. Para dizer bem de sua carolice, foi o fiel da paróquia que mais protestar, quando mexeram no molde confessional da igreja. Gostava de ajoelhar-se diante do padre e abrir o jogo. Nunca escondia nada. Sua inteireza moral era louvável. Por tudo e mais um tanto tramado no seu ardor concupiscente, afastar-se-ia do casal amigo. Já não suportava as impulsões desnorteadoras.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Contudo, sua mulher não conseguia ficar longe dos parentes e dos amigos. Fazia viagens frequentes à antiga cidade, onde os visitava, bem como assim aos amigos. Retornava para casa feliz, relatando os encontros, inclusive com Doralice e Reinaldo. No fundo, Alfredo gostava que sua mulher visitasse o casal. Não pretendia, era evidente, o rompimento da amizade, só porque o pecado lhe rondasse a porta. Não, isso não. Seria infantilidade.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Alguns meses depois, Reinaldo e Doralice aparecem de surpresa. Tudo bem. O tempestuoso sentimento dera uma trégua, aquietara-se. Manter-se-ia aquietado durante um fim de semana. </em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Conversaram muito, colocando a agenda em ordem e, à noite do primeiro dia de visita, sentaram-se para uma partida de buraco. A felicidade de sua mulher transcendia, bem como assim a das visitas. </em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Lá pelas tantas, flagraram Cidinho, filho de Alfredo, garoto mais que levado, empurrando um enorme vaso sobre um tripé. Colocava-se em visível estado de perigo; poderia lhe cair o objeto sobre a cabeça, com consequências imprevisíveis. Foi só um grito de Doralice e a mulher de Alfredo se levantou de súbito. Entretanto, ela não se livrou do cipó entrelaçado do assento da cadeira. Sua calcinha ficara presa numa ponta dele, no beiral da cadeira. Todos presenciaram a cena, inclusive Alfredo, que se levantara para acudir o menino. Inexplicável o fato de a calcinha ficar presa na cadeira, justo pelo elástico da cintura. Só se estivesse arriada até o meio da coxa. Criou-se situação desconfortável, mas ela se ajeitou e o jogo prosseguiu meio sem graça, mais por parte de Doralice e Alfredo; pela cara, Reinaldo não se abalara, dizendo, inclusive, que aquilo acontecia com cadeiras populares, farpadas, constituíndo-se, algumas vezes, em fonte de lesões. Só não explicou como a calcinha se prendeu pelo elástico da cintura... </em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Alfredo foi dormir sem graça. Não tocou no assunto com a mulher. Remoeu o acontecido. No dia seguinte, não muito tarde, o casal se foi.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>A vida seguiu. Na semana seguinte àquela visita, a mulher de Alfredo aprontou-se para uma visita aos parentes e amigos. Nessas ocasiões, passava de dois a três dias em andanças. No mesmo dia de sua saída, à noite, Alfredo recebeu um telefonema. Era o detetive particular contratado para seguir sua esposa. Afinal, quando eram noivos e jogavam cartas, ela gostava que Alfredo colocasse o dedão do pé nas suas intimidades. Para tanto, arriava as calcinhas até o meio da coxa. Do telefonema, não colheu notícia boa: sua mulher encontrava-se num motel, em companhia de um cidadão de nome Reinaldo Diaz. Alfredo foi ao desespero. </em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>De madrugada, a pressão era insuportável. Após breve leitura de textos bíblicos, sua força moral levou-o a tomar atitude extrema. Dirigiu-se à garagem e apanhou o recipiente com veneno destinado a ratos. No seu entender, comprava passagem para uma vida melhor.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Para sua mulher, não havia necessidade de bilhetes. Sua família, porém, recebeu uma carta, onde, ao fim, dizia que enterrariam um corpo moralmente falido, diante do acontecido nos bastidores de seu casamento. Disse, ainda, que tudo mudara e que só ele ficou a ver navios.</em></strong></span><br />
<span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong><em>Para essa tragédia, quem apontaria culpados?</em></strong></span><br />
<span style="font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><br />
<strong><em><span style="color: blue;"></span></em></strong></span><br />
<span style="font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><br />
<strong><em><span style="color: blue;"></span></em></strong></span>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3196353443820770094.post-16421226368981093612009-09-02T14:48:00.002-03:002009-09-02T15:24:51.812-03:00O ATORMENTADO<div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong>Pedro ouvia vozes, um burburinho estranho. Muito pouco identificava frases inteiras, apenas palavras soltas, lamentosas, pedindo ajuda. Passou a enfrentar essa situação depois de moço, 19 ou 20 anos. Antes, a vida transcorria normalmente; agora vivia sob o jugo de terríveis apreensões. Ao que apurara, detinha poderes de salvar almas penadas ou coisa parecida. "Dá-me tua mão! Dá-me tua mão!" Quer dizer, não era simples assim. A voz surgia gemebunda, arrastada e bem próxima. Com o tempo, acostumara-se aos calafrios. A dor maior era a de manter silêncio sobre tudo o que ouvia, sem poder compartilhar com parentes ou amigos. Temia ser chamado de louco e ser levado para o hospício. Ser-lhe-ia como a própria morte, ser tachado de esquizofrênico. Seria pior, muito pior, entregar-se a confidências com quem quer que fosse. A princípio, imaginou que tudo seria questão de tempo. Chegou a pensar em alucinações e que, em breve, se livraria do pesadelo. Qual nada! Passaram-se dois anos e ele definhava, pouco saía de casa. Às vezes, faltava o trabalho durante dias, entregando-se ao quarto fechado, sob lençóis ou cobertores. A situação recrudescia, quando eram muitas as vozes, em coro, donde se destacavam intensas súplicas: "Salve-me, pelo amor de Deus!"; "Já não suporto as chamas deste inferno!"; "Estão me levando, socorro, tirem-me daqui!"; "Não fiz nada, não fiz nada. Deixem-me em paz! Socorro!"; "O que fiz para sofrer tanto assim? Ai, meu Deus! Afaste esse abismo de meus passos!" Isso era todo dia. Já não comia direito. Seus pais, preocupados com sua saúde, não sabiam mais o que fazer. Certa noite, pela madrugada, ele despertou ouvindo uma voz diferente. Disse-lhe: "Sei que seu desespero é grande. Muitas vezes, fica a pensar sobre a desgraça que se abate, sem saber a razão. Fique certo, porém, que não há mal algum no que lhe acontece. São espíritos que encontraram um canal aberto que atinge direto sua existência. O normal é não ouvirmos esses lamentos." Pedro Perguntou quem era ele e porque lhe dava aquelas explicações. A voz prosseguiu: "Não sou do bem nem do mal, não conheço o céu, nem o inferno. Vago a milhões de anos pelos universos habitados e sei o que acontece dentro de cada um dos seres vivos. Quando alguma coisa foge da normalidade, isto é, quando há alguma interferência entre a vida espiritual e a material, como no seu caso, fico observando e me divertindo, até entrar em cena para tentar afastar a tormenta do sofredor." Pedro agradeceu e perguntou quando se livraria daquelas vozes. O estranho respondeu que Pedro deveria, dentro de sete dias, visitar o cemitério municipal, à noite, e desenterrar o corpo de um homem sepultado na carneira número 1236. Após, pedir-lhe que o ajudasse a se livrar dos espíritos que o perseguiam. Realizada a tarefa, diria ao morto: "Vá com Deus! Vá com Deus! Vá com Deus!" Tudo muito simples, mas que teria de ser feito, para salvá-lo da multidão de espíritos que invadira sua privacidade - transmitiu-lhe a voz.</strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong>Pela manhã, Pedro estava em dúvida a respeito do que acontecera. Não sabia se sonhara ou se realmente uma voz recomendara-lhe a tarefa de ir ao cemitério para fazer o trabalho recomendado. Aquele contato conturbara-o. Soubera, certa feita, que o espírito saía do corpo enquanto a pessoa dormisse. Estaria ele recebendo a visita de espíritos, cujos corpos se entregaram ao sono? Seria de gente conhecida, pretendendo ajuda? Mas, e a ida ao cemitério, para desenterrar um corpo e pedir-lhe ajuda? Pensou em conversar com seus pais, mas estava com medo de intranquilizá-los.Tais os conflitos, que terminou perdendo o emprego. Os estudos, abandonara-os fazia alguns meses. Trancado em casa, ouvia as vozes indesejadas, algumas ameaçadoras: "Se não me ajudar, eu buscarei você para caminhar pela eternidade." Pedro não tinha a menor idéia de como ajudar àqueles espíritos, ou pessoas, não sabia ao certo a quem. Aos clamores e súplicas, devolvia silêncio e medo. Achava-se perdido! O único aceno de ajuda partiu daquela voz que determinou fosse ele ao cemitério desenterrar um determinado corpo. Mas praticaria o crime de violação de cadáver! Falaria com o delegado? Não, não falaria com ninguém!</strong></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="color: blue; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><strong>Os dias se passaram e, na véspera do sétimo dia, preparou uma pá e uma enxada. Duante a manhã seguinte, visitou o cemitério, para identificar a cova. Não indagou da administração o local. Resolveu ele mesmo peregrinar pelos estreitos caminhos do campo santo, até encontrar a cova 1236. Duas horas depois, encontrou a fila que daria nela, pois acompanhava os números 1221, 1222, 1223... 1228, 1229... 1233, 1234... 1236. Ali estava a cova... vazia! Ficou sem saber no que pensar. Naquele dia ou no dia seguinte seria enterrado ali o defunto, com o qual falaria, segundo a voz lhe revelara naquela madrugada. Resolveu passar a tarde na volta do cemitério, para ver se o enterro seria naquele dia. Nada! Foi para casa, tomou banho, jantou e foi dormir. Não bem se sentou na cama, sentiu uma forte dor no peito e gemeu. Sua mãe, ao chegar, encontrou o filho sem condições de falar, espumando a um canto da boa. Sofrera um enfarto fulminante, nada adiantando ser levado para o hospital. Foi velado em casa. A mãe dizia que, nos últimos meses, seu filho não estava bem. Com certeza, escondia algo importante da família. No dia seguinte, por volta das l6 horas, o corpo baixou à sepultura. Cova nº 1236! Em diante, um espírito cheio de revoltas desencarnou, juntando-se aos demais. Agora alma errante, passou a compreender o desespero que ressumbrava daquele vozerio todos os dias. Eram espíritos inconformados com a morte, enganados por um ente maquiavélico que prometia salvação, mas que, no fundo, sabia do destino das pessoas. Pedro assistiu a muitos casos como o seu. Ele gemia, mas não variava nas suas súplicas: sempre pediu justiça aos pecadores e não pecadores.</strong></span></div>Antonio Kleber Mathias Nettohttp://www.blogger.com/profile/03217417725170086187noreply@blogger.com0